Sexo, drogas e academia

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia do IFRN

No verão de 1995, eu tive a oportunidade de conhecer a USP. Viajei a São Paulo com estudantes do curso de jornalismo da UFRN para participar de um encontro nacional de estudantes de comunicação social.

Foram dois dias de estrada. Atravessamos um sertão baiano que mais parecia a porta do inferno de tão quente e seco. E o pior: o ônibus não tinha ar-condicionado e o suposto frigobar apodreceu depois que alguém empurrou junto com o gelo e as latinhas de cerveja uma pataca de salame estragado. Não fosse uma providencial fita cassete com uma seleção sonora de Bob Marley, não teríamos conseguido chegar vivos a Vitória da Conquista, embalados por uma cortina de fumaça e suor.

O fato é que quando cheguei ao Conjunto Residencial da USP (o Crusp) fiquei espantado com a transcendência etílico-farmacológica do ambiente. A USP, segundo informou meu amigo Robson Braga (que se exilou em São Paulo desde de metade dos 90), parecia uma ilha em meio a urbe tresloucada de prédios, carros e cheiro de oficina mecânica.

Essa é uma característica curiosa das universidades do século passado (ao menos as que fazem realmente jus a esse nome). Era como se tivessem muros invisíveis. Como se, na sua formatação, houvesse uma espécie de licença ontológica para que os ritmos do mundo se suspendessem e o fluxo do pensamento e da criação humana pudessem apresentar seus frutos.

E isso não é uma característica do Brasil ou da USP. Um amigo norte-americano me contava dia desses o assombro que teve ao ser convidado para a primeira festa no câmpus de sua universidade em Nova York. Ele, um cara que tinha crescido em uma cidadezinha no interior de Nova Jersey, perto das comunidades amish, não sabia o que fazer quando entrou na cobertura da república de estudantes e viu todo mundo nu, pintado com tintas fosforescentes, ouvindo músicas hipnóticas com batidas eletrônicas exóticas, temperadas por ácidos, alcaloides e etílicos variados.

A escola, formatada no século XVI para retirar do interior das corporações de oficio os filhos da emergente classe burguesa, se estruturou na Modernidade como instância de controle e disciplinamento social, com suas carteiras dispostas em ordem, suas fardas homogêneas, suas fotos 3x4; as universidades, por sua vez se constituíram como espaços de resistência e de experimentação social, intelectual, existencial. Elas eclodiam no horizonte como instâncias de suspensão da ordem comum, como confrarias secretas, com regras e rituais próprios, que, a despeito de não estarem imunes aos mecanismos de poder, criavam certo vazio normativo, capaz de oferecer aos membros da sua comunidade a liberdade necessária que as dimensões criativas da experiência humana exigem.

Por isso eu não estou minimamente preocupado se a turma da USP está fumando maconha, fazendo sexo pelas escadas, viajando em doutrinas e experiências políticas heterodoxas ou mesmo praticando filosofia explícita em público. Para mim, isso não é problema. Nem tenho dados para julgar se o ato de ocupação dos prédios daquela instituição tinha objetivos políticos viáveis e justificados ou foi um simples ato de vandalismo, como dizem alguns.

O que me preocupa, amigo velho, é saber que tem gente dentro da própria comunidade universitária que anseia pela presença da polícia naquele ambiente. O discurso da violência e da insegurança anda tão em alta no Brasil destes dias, com dados estatísticos que fazem os jornais pingarem sangue e os programas de TV popular gritarem o fim do mundo como nós o conhecemos, que paira sobre nosso belo país tropical aqueles auspícios sombrios de outras épocas, em que armas e agentes da inteligência militar entravam nas universidades para ordenar seus espaços e preencher seus porões com o mesmo silêncio que impunham às ruas solitárias.

Acho que foi Walter Benjamim que disse que todo totalitarismo (seja ele fascista, nazista, stalinista ou maccarthista) é sinal de uma revolução fracassada.

A revolução democrática brasileira, prometida com a abertura da década de 1980, permitiu que a minha geração crescesse em universidades livres (mesmo que no meu caso tenha sido o rural, quase neoclássico, Setor II da UFRN). É justamente essa revolução eternamente inconclusa que começa a dar sinais de profunda fragilidade.

De todo coração, amigo velho, eu tenho medo de que algum dia essa revolução sucumba ao peso de seus próprios impasses, ao medo da violência social, à desilusão com as instituições, temperada por alguma sacudidela econômica que venha comprometer o consumismo narcótico da nossa santa classe média.

Quando isso acontecer, pode ter certeza: as universidades públicas (se ainda existirem) serão as primeiras a ser ocupadas com armas e fardas, clamores e gritos de ordem e de progresso.

Publicado em 18 de agosto de 2015

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