Abismo de classe, abismo de gênero

Cristiane Brasileiro

Doutora em Letras (PUC-Rio), professora de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, coordenadora da área de Letras na Diretoria de Extensão

Outro dia fiz o que quase nunca faço, porque em geral não tenho ninguém com quem deixar meu filho pequeno: fui ao cinema. Fui ver Que horas ela volta?. E fiquei louca pra conversar com mais gente a respeito.

Talvez eu nunca tenha assistido a um filme nacional em que as tais “questões sociais” estivessem representadas com tanta fineza e precisão, com tanto senso de passado e de futuro. E tanta atualidade.

Porque o filme, como muita gente já disse, é um drama social que expõe tensões de classe potencialmente explosivas, mas que vinham sendo mascaradas pelo nosso velho jogo da cordialidade. E faz isso olhando para dentro do espaço doméstico, no qual essas relações são mais tão dramáticas quanto encobertas – esse espaço no qual gente considerada “fina” e “sensível” ainda costuma viver boiando num aquário protegido, enquanto marca com leveza férrea o lugar sempre apartado dos subalternos.

Partindo desse cenário, no entanto, o filme também capta linhas de uma revolução social que vem sendo cavada neste tempo histórico “pós-Lula”: a filha da empregada, que havia sido deixada no interior aos cuidados de uma outra mulher, volta a viver com a mãe porque vai pra cidade grande fazer vestibular ao mesmo tempo que o filho da patroa também tenta entrar na universidade. E essa pequena chance de ascensão social – ainda que tão incerta – vai desconcertando todo o esquema hierárquico anteriormente dado, ameaça macular com novas alegrias a piscina dos ricos, provoca o bendito estranhamento em relação ao abismo de classe que até então parecia intocável.

O filme, no entanto, faz mais do que isso. Faz o que a crítica especializada, ao menos no Brasil, sintomaticamente não tem comentado: expõe um abismo que não é somente de classe, mas também de gênero.

Senão, vejamos: já na cena inicial, um menininho pergunta à sua babá a que horas a mãe dele volta; como num jogo das cadeiras, a filha ainda pequena dessa mesma babá também repetia, de longe, a mesma pergunta a respeito da própria mãe. A impressão que temos é que todos ali estão deslocados, todos vivendo uma falta fundamental. E a corda estoura, como sempre, no lado dos mais fracos. É lá que estão as crianças que ficam (ainda mais) abandonadas. É lá que estão as mulheres que não têm outra coisa a vender além da velha e “desqualificada” habilidade de cuidar da casa e dos filhos (especialmente os dos outros).

Nesse ponto, precisamente, o filme me impressiona ainda mais, ao mostrar que essa “dança das cadeiras” parece sempre confinada às mulheres que estão em cena, e apenas a elas. E ao mostrar, ao final, uma certa reparação que desloca a babá do início do filme para a posição de cuidar, enfim, do próprio neto – e, assim, se reconciliar com a filha da qual viveu afastada. Porque essa filha, também tendo precisado se responsabilizar sozinha pelo próprio filho que havia tido, não poderia cuidar dele enquanto fizesse a tal faculdade. De novo, então, estaríamos diante de uma conta que não fecha: tirando a avó/babá da criança, a moça não tinha com quem dividir a responsabilidade pelo filho.

Porque os homens, no filme, são os mesmos personagens que estamos tão acostumadas a ver, quando se trata disso: vivem à margem dessas “demandas domésticas” porque continuam protegidos até mesmo de uma mínima consciência a respeito das implicações políticas dos privilégios de que desfrutam tão confortavelmente. E vivem empenhados demais em corresponder às expectativas de que façam qualquer tipo de sucessinho mais público e epidérmico. Eles ficam, então, como no poema de Pessoa: na hora do soco, têm se esquivado para além do alcance do soco.

Vejamos mais de perto a ciranda desses lugares vazios. O pai da filha da babá não parece ter jamais se responsabilizado pela filha gerada; é mencionado apenas como um problema a mais para constranger a ex-mulher. O filho dos patrões, ao final do Ensino Médio, ainda vive como um bebê adulado pela babá/mãe, sem qualquer ligação mais íntima com os próprios pais. O pai do neto da empregada, aparentemente, também não existe. O dono da casa, por sua vez, diante da filha da empregada (que tem a mesma idade do seu filho), sequer cogita assumir uma posição mais paternal: ele regride a ponto de disputar a menina com o próprio filho, e não pode imaginar nada mais interessante pra fazer na própria vida do que tentar conquistar uma nova namoradinha pra espantar o indisfarçável tédio no qual dormita.

E, reparando bem, ele havia revelado que estava sem pintar quadros (o único “trabalho” que havia chegado a ter) havia exatos 10 anos – não por acaso, o mesmo período em que a babá estava sem conseguir se afastar do trabalho pra ir ver a filha. Apesar disso, durante todo esse tempo em que a mulher dele esteve trabalhando fora e a empregada cuidava de todo o resto, ele não havia se disposto a aprender sequer a pegar sorvete na geladeira por conta própria. Cuidar da própria casa ou do próprio filho, então, nem pensar.

E aí está, a meu ver, um trunfo menos percebido do filme: ele mostra que, mais fundo que o abismo de classe, ainda está o maldito abismo de gênero. E que, na base das opressões de classe que começam a ser revistas, ainda permanecem essas outras opressões ainda tão assustadoramente naturalizadas. Nem mesmo as crianças perguntam hora nenhuma, a respeito dos seus pais: “Que horas ele volta?” Tal expectativa parece inimaginável ou irrelevante, e de fato qualquer demanda nesse sentido não chega a se erguer no horizonte. Porque enquanto todo o trabalho de cuidar de casa, das crianças e dos velhos continuar sendo brutalmente invisibilizado e reduzido a uma espécie de “batata quente” que ninguém poderia em sã consciência desejar assumir, essa conta não vai fechar.

E, no entanto, reconheçamos... Se isso não é um sintoma especialmente bizarro do fenômeno que chamam de “alienação”, então nada mais é. Se dedicar uma atenção mais séria a esse universo das responsabilidades que nos desafiam a todos da porta de casa pra dentro não for, afinal, um ato profundamente revolucionário, nada mais será.

Porque, como disse a diretora do filme, Anna Muylaert, numa entrevista dada fora do Brasil, “eu não tenho dúvidas de que educar uma criança é cem vezes mais difícil e importante do que fazer qualquer filme. Você não fica rico ou poderoso fazendo isso, mas fica mais forte, mais sábio, mais real”. Há outros valores aí, enfim, que se afirmam ao arrepio da lógica do dinheiro, do sucesso, das glórias vãs.

Não por acaso, enquanto tantos fingem desconhecer esse universo, as crianças vão sendo entupidas de Ritalina (o consumo da “droga da obediência” já cresceu, no Brasil, 1.500% nos últimos 15 anos). Haja remédios de tarja preta para tapar os gritos das mulheres que continuam a viver sufocadas, isoladas e sobrecarregadas e que percebem na carne que alguma coisa está fora de ordem (elas são, em nosso país, 74% dos usuários de medicamentos psiquiátricos).

E, enquanto há gente que finge que está tudo bem, em termos de gênero, mulheres continuam ganhando menos do que homens, mulheres com filhos ganham ainda menos do que as sem filhos, e – surpresa! – as mães solteiras continuam formando o grupo disparadamente mais pobre entre todos.

Não por acaso, foi uma mulher solteira, mãe de dois filhos, que fez esse filme. E é outra dessas que encontrou uma brecha para escrever, aqui.

Publicado em 13 de outubro de 2015

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