Considerações sobre o ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para alunos surdos

Alessandra Gomes

Licenciada em Letras (UFRJ), mestranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio); professora de Educação Básica do Instituto Nacional de Educação de Surdos

As palavras só têm sentido se nos ajudam a ver o mundo melhor.
Aprendemos palavras para melhorar os olhos.
(Rubem Alves)

Este trabalho tem como objetivo discorrer sobre as particularidades que envolvem o ensino de Língua Portuguesa para alunos surdos, sobretudo os usuários da Língua Brasileira de Sinais (Libras), pois tais alunos apresentam características especificas em seu processo de aprendizado da leitura e escrita, uma vez que transitam por, pelo menos, duas línguas e devem ser tornar bilíngues. Desse modo, algumas informações básicas a respeito da condição de aprendizagem desses sujeitos podem se tornar importantes para educadores que nunca tiveram contato com esses alunos e passam a recebê-los em suas salas de aula.

Sempre que se estuda a história da Educação de surdos, pode-se notar que durante muito tempo a dificuldade linguística tem sido apontada como o principal problema enfrentado pelas pessoas surdas. Voltando a discussão para o caso específico do Brasil: com a publicação da Lei de Libras (2002), ela agora tem status de língua; reconhece-se, por conseguinte, o direito de o surdo ter acesso a uma língua que seria sua língua natural como primeira língua, ponto de partida para qualquer outra aprendizagem. Libras é a abreviação utilizada para designar a Língua de Sinais do Brasil. A Libras foi oficializada pelo Decreto-Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, regulamentado pelo Decreto nº 5.626, publicado em 23 de dezembro de 2005, no Diário Oficial da União.

Sabe-se que a aprovação de uma lei por si só não é garantia de possibilidade efetiva de acesso do surdo à Libras. Considera-se, no entanto, que tal lei representa a legitimação do uso de uma língua própria de um grupo social, deixando de considerá-la apenas como linguagem gestual, mímica ou outras denominações, quase sempre de caráter depreciativo.

Nesse contexto, os alunos surdos passaram a ter direito a um aprendizado bilíngue, ou seja, são usuários da língua de sinais e devem aprender a modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua. Ao menos dois fatores tornam-se importantes quando analisamos a questão do bilinguismo para os surdos: o primeiro é que, para tais sujeitos, o aprendizado da língua portuguesa é compulsório, ou seja, eles são obrigados a aprender a língua portuguesa (língua majoritária do Brasil) e a se tornar bilíngues; o segundo diz respeito ao fato de que o bilinguismo não corresponde a uma metodologia especifica, mas sim a uma condição de quem deve transitar por dois sistemas linguísticos.

Em decorrência dessa situação e uma vez que, na maior parte das vezes, os surdos são filhos de ouvintes, ocorre a primeira grande dificuldade do surdo para o aprendizado escolar e para sua inserção plena na vida social: o contato com a Libras. Vários pesquisadores, como Pereira, apontam que

uma análise do processo de ensino da leitura e da escrita de alunos surdos leva a acreditar que muitos dos resultados insatisfatórios, obtidos com a maior parte dos alunos, não decorrem de dificuldades de lidar com os símbolos escritos, mas da falta de uma língua constituída com base na qual possam construir a escrita (2009, p. 12, grifos nossos).

Isso significa ressaltar a importância de um investimento na língua de sinais que não deve se restringir somente ao aluno surdo e sim transitar entre os diferentes setores que envolvem a escola.

Zeni (2009) relaciona alguns dos desvios mais encontrados por ela como inadequações na produção escrita de alunos surdos:

  1. Inadequação ou omissão do artigo:
    ...também trabalhar um faculdade...
  2. Inadequação ou omissão da preposição:
    Eu gostaria... conseguir...
  3. Inadequação em gênero e número:
    ...conseguiu uma trabalho...
  4. Inadequação na conjugação dos verbos e aspectos verbais
    Eu trabalha...

Nesse contexto, podemos destacar, assim como a autora, a predominância de verbos no modo indicativo, com poucas utilizações de imperativo e subjuntivo. Compreende-se ainda que haja necessidade de estratégias especificas para o aprendizado da língua portuguesa por esses alunos.

Por isso, passamos a relatar práticas que envolvem o processo de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa em uma escola pública do município do Rio de Janeiro que ministra aulas para alunos surdos na Educação Básica. Nossas reflexões terão como base fundamentalmente aulas para turmas segundo segmento do Ensino Fundamental. Nesse contexto, a produção de texto realizada visava produzir um comentário sobre o Dia da Consciência Negra a partir da discussão de charges sobre o tema e relacionando a questão do preconceito. Foi destacado a seguir um trecho da produção de nossos alunos surdos para análise:

Os negros tem história sobre o preconceito.
Ele Zumbi ajudar salvar muito com escravos.
Porque soldado anterior mandar escravos força no trabalho.

Logo de início, podemos notar na primeira frase a inadequação de concordância verbal entre sujeito e predicado. Chama-nos a atenção, no entanto, a disposição das palavras na oração; elas aparecem com um sentido um tanto truncado, em comparação com o que seria esperado em língua portuguesa. Uma possibilidade a ser explorada na reescrita do texto foi “Os negros sofreram historicamente com o preconceito”. Tais modificações foram discutidas com os próprios alunos em sala, já que a reescrita é um dos recursos mais utilizados durante as aulas, buscando uma reflexão sobre a língua, tendo como base as próprias produções dos alunos. Para isso, são retirados, como estratégia de reescrita, fragmentos dos textos e copiados no quadro para que pudessem ser discutidos sem menção ao autor do texto. Assim, podemos contemplar todos os educandos sem que a atividade se torne cansativa ou disperse os alunos.

Na segunda frase, podemos perceber que há o uso de dois referentes simultaneamente, sem que haja necessidade do pronome “ele”, pois há a palavra “Zumbi”. Outros desvios seriam a falta de flexão do primeiro verbo utilizado na segunda frase, que deveria estar na 3ª pessoa do singular, no pretérito perfeito do indicativo, além do uso da preposição a; o trecho ficaria: “Zumbi ajudou a salvar”. Na mesma frase, notamos o uso desnecessário da preposição com e a necessidade da concordância do adjunto muito com o substantivo escravos, ficando muitos escravos.

Por fim, a terceira frase também precisou ser reescrita já que se torna dificultosa a compreensão do modo como está escrita. Do ponto de vista do sentido, até é possível inferir o conteúdo que o aluno pretendia transmitir, mas, analisando estruturalmente, a sentença teria uma possibilidade de reescrita: “Porque os escravos eram forçados a trabalhar”.

Finalizando o relato, gostaríamos de destacar que houve necessidade de priorizar alguns dos aspectos básicos que envolvem a aprendizagem da escrita desses alunos, já que o espaço do texto é limitado. Assim, frisamos mais uma vez a importância da língua de sinais como base para a aprendizagem da Língua Portuguesa como segunda língua para esses alunos. Outra questão importante é o uso de textos autênticos e de relevância social, uma vez que promovem o contato desses alunos com assuntos do cotidiano e, fundamentalmente, proporcionam contato com a língua em uso.

Referências

PEREIRA, M. C. C. (org.). Leitura, escrita e surdez. São Paulo: FDE, 2009.

ZENI, J. M. A análise do erro na produção escrita do português como segunda língua por alunos surdos. Disponível em http://www.celsul.org.br/Encontros/04/artigos/131.htm. Acesso em 18 jun. 2015.

Publicado em 13 de outubro de 2015

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