A possibilidade de um Ensino Religioso que ensine sobre religiões, orientado por valores democráticos

Heiberle Hirgsberg Horácio

Professor da Universidade Estadual de Montes Claros-MG

Em tempos de violências e conflitos ocasionados por intolerâncias religiosas, debates sobre o lugar da religião no espaço público e propostas epistemológicas relacionadas à perspectiva intercultural se tornam cada vez mais necessários. Necessárias também são reflexões sobre a função do Ensino Religioso nos colégios públicos e reflexões sobre os tipos e modos de execução desse Ensino Religioso. Este ensaio visa, assim, exibir apontamentos que possam colaborar com essas reflexões. Designadamente, apresentar-se-ão, pela perspectiva de diferentes autores e de alguns modelos de Ensino Religioso, os modelos mais indicados para um Ensino Religioso que possa ensinar as religiões, norteado por valores democráticos.

Muitos são os trabalhos que alimentam o debate sobre a melhor forma e modelo de Ensino Religioso. Entre eles destacam-se os trabalhos do pesquisador João Décio Passos, que reconhece a existência de três modelos de Ensino Religioso: um que ele chama de catequético, outro que ele classifica de teológico e o modelo das Ciências da Religião.

A respeito do primeiro modelo, João Décio Passos considera que “a prática catequética faz parte da vida das confissões religiosas quando elas se sustentam na transmissão de seus princípios de fé, de suas doutrinas e dogmas” (2007, p. 30). A denominação ‘modelo teológico’ é adotada “porque se trata de uma concepção de ER que busca uma fundamentação para além da confessionalidade estrita, de forma a superar a prática catequética” (2007, p. 30). Nesse modelo, a religiosidade é “uma dimensão humana a ser educada, o princípio ‘fundante’ e o objetivo fundamental do ER escolar” (2007, p. 31). No modelo das Ciências da Religião, o mais indicado, segundo Décio Passos, reconhece-se “a religiosidade e a religião como dados antropológicos e socioculturais que devem ser abordados no conjunto das demais disciplinas escolares por razões cognitivas e pedagógicas” (2007, p. 32). No modelo das Ciências da Religião,

não se trata de afirmar o direito do cidadão em obter, com o apoio do Estado, uma educação religiosa, uma vez que ele confessa uma fé (pressuposto político do ER), nem mesmo de afirmar o pressuposto da religiosidade que, por ser inerente ao ser humano, deve ser aperfeiçoada no ato educativo, ou, ainda, de postular a dimensão religiosa como um fundamento último dos valores que direcionam a educação. Trata-se de reconhecer, sim, a religiosidade e a religião como dados antropológicos e socioculturais que devem ser abordados no conjunto das demais disciplinas escolares por razões cognitivas e pedagógicas (Passos, 2007, p. 32).

Desse modo, se o modelo catequético, privilegiando a dimensão religiosa do ser humano no Ensino Religioso, é baseado na perspectiva de aprimoramento de uma confissão de fé e o modelo teológico observa uma “dimensão antropológica a ser aprimorada pela educação religiosa”, o modelo das Ciências da Religião sustenta-se em pressupostos educacionais e “toma como pressuposto a educação do cidadão” (2007, p. 33).

Vale destacar aqui que mesmo o modelo das Ciências da Religião sendo o mais indicado e melhor atualmente nos meios acadêmicos, há também um debate sobre a melhor sistematização de Ensino Religioso com base nas Ciências da Religião. Nessa discussão, há pesquisadores que defendem uma “transposição didática da Ciência da Religião para o Ensino Fundamental” (Costa, 2015), enquanto há pesquisadores que defendem um modelo de Ensino Religioso amparado pelas Ciências da Religião, mas sem necessariamente defender uma transposição didática.

O pesquisador João Décio Passos também se ocupa de reflexões que levem em conta um Ensino Religioso articulado com a mobilização de alguns valores para a formação de uma prática cidadã integral. Ele afirma, como já fora mencionado, a importância de o Ensino Religioso ser estruturado por uma perspectiva que se aproxime das Ciências da Religião e que se sustente sobre pressupostos educacionais (não por pressupostos religiosos e confessionais), visando a uma educação para a cidadania plena (Passos, 2007, p. 34).

Outro pesquisador de destaque no debate sobre a melhor forma e modelo de Ensino Religioso é o professor da PUC Sérgio Junqueira. A respeito das diversas concepções, ele localiza três delas.

Segundo ele, duas reconhecidas pela LDB, classificadas também por ele como confessional e interconfessional, e uma inter-religiosa, formalizada a partir dos PCNER de 1997, elaborado pelo Fonaper (Junqueira, 2013, p. 609). Na concepção confessional, “o professor é um missionário, responsável por fazer novos fiéis, sendo a escola considerada um dos espaços privilegiados, visto que as novas gerações obrigatoriamente estariam concentradas” (Junqueira, 2013, p. 610).

De acordo com Junqueira, existem propostas para mais dois modelos. Um classificado como modelo de ensino da história das religiões, “cujo objetivo é instruir sobre a história das religiões, assumindo a religião como fenômeno sociológico das culturas”, e outro classificado como modelo transcofessional (Junqueira, 2013, p. 249).

Na concepção interconfessional, a intenção não é de um ensino de uma religião, mas de “uma evangelização ampla e rica de valores existenciais, da pessoa humana, que, por sua vez, é sujeito e agente inserido em uma comunidade de fé e dela participa”. Nessa concepção, “o objeto a ser trabalhado é a religiosidade desse ser humano, compreendida como a atitude dinâmica de abertura ao sentido radical da existência humana” (2013, p. 610). A concepção inter-religiosa foi organizada

a partir das orientações do Conselho Nacional de Educação (CNE) para a estruturação das ‘diretrizes curriculares’, implicando a definição de um objeto e objetivos do componente curricular do ensino religioso. Para essa organização, optou-se por uma leitura do religioso na sociedade, pois o desenvolvimento da disciplina escolar deveria considerar duas áreas em conjunto em que esse componente está envolvido: educação-ensino (escola) e religião (religiosidade); cada uma dessas áreas é, na verdade, uma constelação de aspectos (Junqueira, 2007, p. 611).

Sérgio Junqueira chama a atenção para a necessidade de se assumir o Ensino Religioso a partir das disciplinas científicas que o estruturam, objetivando o desenvolvimento das linguagens, de conhecimentos e de saberes, vislumbrando uma escola voltada para a formação de cidadãos, em que “assumir o ensino religioso como uma das áreas de conhecimento do currículo brasileiro é estruturar os marcos de leitura e interpretação da realidade, essenciais à participação do cidadão na sociedade de forma autônoma” (2007, p. 613).

Elisa Rodrigues, também pesquisadora de destaque nessa área, reflete sobre a importância da centralidade da noção de valor e da formação de uma cidadania completa. Em seu trabalho, a pesquisadora lança mão inclusive de uma resolução do Conselho Nacional de Educação para estruturar sua argumentação de que, “por meio do ensino reflexivo sobre o fenômeno religioso, é possível tematizar valores e princípios desejáveis para a formação de um cidadão pleno” (Rodrigues, 2013, p. 226).

Para a autora, superando a visão do cidadão ou educando como cliente, “trata-se de restituir tanto ao cidadão quanto ao educando a percepção de que certos valores/princípios como a tolerância, a compreensão, o respeito, o reconhecimento, a solidariedade etc. são absolutamente necessários para a realização de projetos individuais e coletivos” (2013, p. 25). Vale destacar que a perspectiva aberta pela autora se opõe a uma “educação religiosa que quer catequizar e fundar uma moral religiosa no educando” (2013, p. 226). No trabalho da pesquisadora há uma proposta de Ensino Religioso não proselitista, que procura

fazer do conhecimento da religião um instrumento para a cidadania ativa que compreende: a capacidade de formular e manifestar opiniões sobre suas preferências, participação na vida política e econômica do Estado brasileiro, participação nos debates articulados no âmbito da esfera pública, o conhecimento dos seus direitos e deveres e o reconhecimento da alteridade e da diversidade (cultural e religiosa) para a convivência social respeitosa (2013, p. 226, grifo nosso).

Consta no trabalho de Elisa Rodrigues que, de acordo com a Resolução nº 7 do Conselho Nacional de Educação, que: “Esses valores [os valores mencionados] são transversais a todas as áreas de conhecimento: I – linguagens (Língua Portuguesa, Língua materna - para populações indígenas, Língua estrangeira moderna, Arte e Educação Física); II – Matemática; III – Ciências da Natureza; IV – Ciências Humanas (História e Geografia); e V – Ensino Religioso” (Rodrigues, 2013, p. 225).

Por fim, vale destacar que em nenhum momento esse trabalho propôs um Ensino Religioso como alguns chamam de “formação de valores” ou “formação humana”. Uma vez que a grande crítica sofrida por essa perspectiva está relacionada à maneira como tem sido, em alguns casos, a execução do trabalho orientado para tal formação, pois existem pesquisas que apontam que a execução desse trabalho privilegia exclusivamente os “valores cristãos” e carece de sistematização adequada (Boniolo, 2011).

O que se procurou exibir aqui foram perspectivas que reconhecem que o Ensino Religioso pode, de algum modo, contribuir para a elaboração de um ensino que, por sua vez, acione conteúdos e estratégias que possam possibilitar o trabalho com a “mobilização” de “valores” sem reduzi-lo exclusivamente a essa competência, sem privilegiar uma visão simplista, exclusivamente cristã ou maniqueísta e procurando respeitar as peculiaridades do ensino e dos conhecimentos sobre as religiões. Concordamos com Elisa Rodrigues, que diz que

o Ensino Religioso, na condição de componente curricular reconhecido como área de conhecimento na educação pública, é um meio, um instrumento pedagógico para o oferecimento de conteúdos explícitos por meio dos quais se objetiva: 1) mapear as tradições religiosas em seus valores e projetos; 2) compor narrativas sobre essas tradições religiosas que destaquem sua coerência; 3) tecer análise comparativa das diferentes religiões conexões e relações que possibilitem construir uma rede de significados entre elas e, finalmente; 4) mediar a construção da argumentação, do discurso sobre essas tradições, sem desconsiderar os conflitos, as objeções, as críticas e a positividade de cada expressão religiosa (Rodrigues, 2013, p. 226).

Desse modo, esperamos ter demonstrado a possibilidade de uma orientação para um Ensino Religioso que, mesmo tratando e exercendo um conhecimento sobre religiões, mobilize valores para uma formação democrática, possibilitadora de uma cidadania plena e inibidora de violências causadas por intolerâncias religiosas.

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Publicado em 02 de fevereiro de 2016

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