Um exercício reflexivo-argumentativo: a escolha de um modelo historiográfico dentro das possibilidades mais utilizadas na academia

Fábio Souza Lima

Historiador (UFF), filósofo (UFRJ), pós-graduado em Políticas Públicas em Espaços escolares, mestre e doutorando em Educação (UFRJ)

Sonia Lopes

Licenciada e mestre em História (UFRJ), doutora em Educação Brasileira (PUC-Rio), pós-doutora em História da Educação (Univ. Lisboa), professora do PPGE/UFRJ, coordenadora do Programa de Pesquisa e Documentação Educação e Sociedade (Proedes-UFRJ)

O presente trabalho, parte das reflexões realizadas por conta da dissertação de mestrado em Educação no PPGE/UFRJ em 2015 sob o título As normalistas chegam ao subúrbio – A história da Escola Normal Carmela Dutra: da criação até a autonomia administrativa (1946 – 1953), orientada pela Profª. Drª. Sonia de Castro Lopes. visa estimular um exercício de reflexão-argumentação em que levantaremos os prós e os contras de duas teorias historiográficas para análise de um objeto, considerando, a partir daí, qual seria a mais interessante para o desenvolvimento de um trabalho acadêmico. Dessa forma, faremos uso de autores do campo da História, da Educação, da História da Educação e autores que se articulam na discussão e construção de uma ciência pedagógica e/ou de uma filosofia da educação.

Sobre o princípio científico-filosófico da pesquisa

Todo início de busca por algum conhecimento deveria começar pelo princípio. Essa frase pode parecer um pleonasmo à primeira vista, mas o saber, seja ele construído, descoberto ou revelado, grande ou pequeno, completo ou fracionado, exige que aquele que tem disposição de espírito para buscá-lo tenha também o cuidado de revelar os caminhos que percorreu para que os seus passos possam ser seguidos, comentados e até contestados.

Ainda na primeira década do século XX, quando iniciávamos o curso de História na Universidade Federal Fluminense, jovens que éramos, bradávamos alto o tom da candura em cada palavra que soltávamos. Lembramo-nos da primeira vez, quando ao encontrar uma colega de classe pelos corredores da Academia afirmamos categoricamente que os princípios da história residiam verdadeiramente na cultura. “Ela influenciava tudo”, apontávamos peremptoriamente, enquanto alguns colegas respondiam: “É a economia”, emendando seus argumentos de forma igualmente categórica. Essas discussões continuaram frequentes até decidirmos, à época, adotar a economia e a política como base de nossa forma de ver a realidade. O amadurecimento, no entanto, juntamente com novas perspectivas, nos ofereceram outros questionamentos sobre como enxergar o que considerávamos ser a Arkhé, o princípio de um saber real e da construção das relações humanas.

Reclamávamos agora pelos corredores que nos eram apresentadas poucas variações das formas de ver o mundo ou, em outras palavras, dizíamos que as ideias eram sempre as mesmas para examinar os objetos de estudo. Ainda não sabíamos, mas o fato de não serem dispostas ideias diferentes fechava-nos em apenas uma ou duas ideologias. Isso correspondia exatamente ao significado do sufixo ismo em nossa língua portuguesa: um sistema fechado de ideias. Sistemas estes que pareceram nos sufocar durante muitos anos, pois clamávamos por conhecer mais e mais pensamentos, novas interpretações, novas formas de ver o mundo.

Ainda no mesmo período ingressamos no curso de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nesses anos, as possibilidades se multiplicaram. Não porque consideremos uma cadeira melhor do que a outra, mas porque é próprio da Filosofia lidar com as correntes de pensamento. E nesses anos de investigação filosófica, estabelecendo contato com as mais diversas formas de apreciação do real – e também do ideal –, descobrimos que o princípio não está na adoção dos métodos de análise econômica ou cultural como achávamos. O princípio (a arché/arkhé/ἀρχή) está na consideração, reflexão e adoção daquilo que é Verdade. E este é o ponto pelo qual iniciaremos a nossa busca, isto é, explicando o conceito que aplicamos do que é ou não Verdade.

Há ao menos dois conceitos de Verdade: o imanente e o transcendente. Quanto ao imanente, o conteúdo do pensamento não se relaciona com qualquer coisa fora de si mesmo, isto é, algo é Verdade no pensamento quando concorda consigo mesmo (Hessen, 2003). Isso acontece porque o investigador/pesquisador que adota a imanência adota também o idealismo, em que não há objeto fora do sujeito, constituindo assim um monismo em que toda relação se dá no interior do pensamento do próprio sujeito. O critério usado para estabelecer o que é Verdade neste caso é o de ausência de conflitos e discordâncias, o que inicialmente é muito profícuo, não fosse por um problema: os objetos de estudo, neste caso, devem ser sempre ideais, ou seja, devem estar sempre em nosso pensamento (tal como acontece nos estudos de lógica e de matemática). Em nosso trabalho pessoal, como melhor desenvolveremos logo a seguir, o objeto que analisaremos se encontra – também – fora do nosso pensamento, isto é, a Escola cuja história estudamos é uma entidade real, passível de apreciação por outros pesquisadores. Isso, de fato, impossibilita a adoção desse critério idealista de Verdade.

Por outro lado, admitindo a Verdade como transcendente, estamos afirmando que colocamos em análise um objeto que está fora de nós mesmos, estamos afirmando que a referida Escola é um objeto real com o qual o nosso pensamento se relaciona, estabelecendo, assim, uma relação sujeito-objeto. Assim sendo, a distância entre o nosso pensamento e o objeto com o qual nos relacionamos é, neste caso, um elemento que nos obriga a abraçar critérios específicos para o estabelecimento da Verdade em nosso trabalho. Queremos dizer com isso que consideraremos como Verdade o que o objeto revelará como certeza imediata, tratando evidentemente de problematizá-la segundo os preceitos que discutiremos nos próximos parágrafos. Por ora, admitiremos aqui então o caminho da empiria, a despeito de um racionalismo absoluto de impossível aplicação ao nosso objeto real, no caso, uma Escola, um prédio, autoridades públicas, professores, alunos, entre outras entidades envolvidas com a sua história.

Dessa forma, optamos por não acolher quaisquer verdades a priori, isto é, doutrinas anteriormente estabelecidas que fatalmente engessariam o esforço de nossa análise. Enveredar por tal caminho poderia velar o objeto, ainda pouco estudado, diante das múltiplas possibilidades de investigação, o que fatalmente empobreceria o nosso trabalho.

Por outro lado, entendemos também que empregar o relativismo absoluto de algumas concepções mais radicais da história como ciência não nos levaria a conhecimento algum, posto que, sem bases ou sem princípios que usem a busca pela Verdade como elemento motor, não pode haver construções mais sólidas do que a metáfora do castelo de cartas. Uma construção enigmática e linda, aparentemente sólida, feita sobre bases que levam o mesmo material usado nas lajes e torres superiores da construção do fato educacional. A metaforização aqui se faz necessária devido ao momento relevante para a definição do objeto e das metodologias de investigação (Quine apud Mazzotti; Oliveira, 2000, p. 15).

A metáfora, ou algo semelhante, governa tanto a aquisição quanto o desenvolvimento da linguagem. O que vem a seguir como refinamento é mais um discurso cognitivo, no seu sentido mais literal.

O que queremos dizer, mais diretamente, é que o relativismo imanente não se relaciona com o objeto, como já apontamos, pois para os que o adotam não há objeto além do próprio sujeito, restando apenas uma análise essencialmente subjetiva. E o nosso objeto, o nosso fato educacional, como veremos, necessita de uma análise circunspecta como a que queremos propor.

Concluímos que, diante de um objeto não explorado, seria interessante uma maior amplitude de sua análise, mesmo frente às dificuldades de falta de tempo e de recursos que muitas vezes acometem um pesquisador. E assim refletimos: se o dogmatismo encobre mais o objeto do que o expõe e se o relativismo simplesmente desconsidera qualquer Verdade que nele possa ser apreendida, nós decidimos por tomar o prudente – e ético – caminho do meio1, como tanto apontou Aristóteles, em Ética a Nicômaco (2006), para sabermos qual paradigma devemos adotar. Servimo-nos, então, do ceticismo médio ou ceticismo acadêmico de Arcesilau e Carnéades (apud Hessen, 2003), segundo o qual a Verdade o é quando temos uma proposição que dela se aproxima. Isso quer dizer que consideraremos verdadeiro aquilo que se revelará no decorrer de nossa pesquisa como Verossimilhante.

Um projeto como exemplo

Em nossa dissertação de mestrado, tivemos como objeto a história da Escola Normal Carmela Dutra (ENCD), criada em 1946 no Rio de Janeiro (então Capital Federal), no bairro suburbano de Madureira. O modelo para criação de tal escola foi o renomado Instituto de Educação (IE), pensado e erigido por Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo em 1932. A ENCD esteve submetida ao IE desde o período de sua criação até 1953, quanto conquistou autonomia administrativa e passou a responder diretamente à Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal.

Consideramos, a partir desse evento, que o surgimento da referida escola é um marco na expansão da formação de professores primários no Brasil, bem como um evento de consolidação dos valores republicanos e capitalistas no país, pois foi por conta de sua criação, na então zona suburbana remota2 – o bairro de Madureira – que as crianças do sertão carioca3 (Corrêa, 1936) puderam ser mais bem servidas das professoras dos primeiros anos do ensino público e gratuito oferecido pelo Estado.

Esse trabalho, defendido em março de 2015, cujo título As normalistas chegam ao subúrbio – A história da Escola Normal Carmela Dutra: da criação à autonomia administrativa (1946 – 1953), a nosso ver, poderia ser tratado sob dois aspectos: por um lado, as políticas públicas e a situação econômica do país tornar-se-iam mais relevantes ao focarmos a macro-história dessa instituição, ressaltando a importância da difusão de novos valores em uma nação de pensamento reconhecidamente rural na época. Por outro lado, diante do contato que tivemos via entrevistas com os primeiros alunos dessa escola, o contato com o cotidiano das suas memórias e com a informação de que eles se tornaram os primeiros alunos normalistas do subúrbio – o que conferia um alto grau de status nos anos 1940 –, temos a história em sua dimensão micro, analisada em outra escala (Revel, 1998) e, talvez, mais próxima daquilo que nossas representações aceitam como “realidade”. Começamos então a pensar como deveríamos proceder diante dessas possibilidades.

A nossa opção, ao final, não consta simplesmente como historiográfica, mas como uma decisão de como realizar uma investigação de História da Educação, uma vez que as ciências pedagógicas ainda não têm bem definidas as suas fronteiras quanto às disciplinas que dialogam dentro dela. Não se trata aqui de estudar o que Laélia Moreira, em sua tese de doutoramento Pedagogia e Educação: a construção de um campo científico (2007) realiza ao adentrar pela discussão teórica da construção do campo, mas de abordar como as discussões sobre determinados paradigmas históricos podem e devem ser travadas dentro do campo por uma questão ética do próprio pesquisador.

Os paradigmas em questão para análise do fato educacional

Tais explicações que realizamos, de certa forma, antecipam as reflexões que desenvolvemos diante da escolha do método de análise historiográfica que buscamos usar. Encaminhados dessa forma, podemos finalmente apontar como problematizaremos os saberes com as quais tivemos e teremos contato neste estudo.

Em nossos estudos de pós-graduação no CESPEB/UFRJ e no curso de mestrado em História da Educação, linha de pesquisa na qual se insere este trabalho, estivemos novamente à frente das discussões acadêmicas que circundam o uso do economicismo ou o uso do culturalismo como abordagens de análise historiográfica. Por mais uma vez voltamos nossas ponderações sobre qual modelo deveríamos empregar em nosso projeto. Contudo, desta vez, como já expusemos, chegamos um pouco mais armados sobre qual caminho da verdade (alethéia) empregaríamos. Restou-nos, portanto, expor os porquês de nossa escolha.

Ciro Flamarion Cardoso, historiador de grande produção marxista e que marcou nossa formação desde o princípio na apresentação do livro Domínios da História (2011), organizado por ele e por Ronaldo Vainfas, destacou a mediação entre o sujeito e o objeto dentro do modelo chamado teoria modificada do reflexo apontando a responsabilidade do sujeito que analisa os eventos passados. Como o passado não pode ser modificado, o que altera esta dinâmica é a visão do historiador no tempo em que ele vive.

Deve notar-se que isto não se confunde com o relativismo dos historicistas, já que a teoria marxista do conhecimento é um realismo (o objetivo do conhecimento histórico não é constituído pelo sujeito: a práxis atual intervém na apropriação cognitiva de algo que existe por si mesmo e pode ser conhecido): trata-se, mais exatamente, da concepção da verdade científica como limite absoluto a que tendem verdades relativas ou parciais cujo alcance maior ou menor depende do tipo de conhecimento histórico que permite a prática social de cada época ou fase (Cardoso, 2011, p. 5).

Cardoso (2011) começa a tratar assim do Paradigma da pós-modernidade, no qual toda e qualquer base estável e segura de conhecimento – ou possível verdade – passa a ser questionada. Momento no qual também surgem as primeiras críticas mordazes ao marxismo como modelo.

Ronaldo Vainfas, em artigo de 2011 intitulado História das Mentalidades e História Cultural, por outro lado, aponta que o culturalismo também sofreu críticas no sentido de como ele começou a ser usado no Brasil:

Entre nós, historiadores brasileiros, a crítica só veio no final da década [1980], porque foi também tardia a difusão das mentalidades na pesquisa universitária nacional. Foi Ciro Flamarion Cardoso que a fez de maneira mais aguda em um de seus Ensaios racionalistas, acusando os historiadores das mentalidades de se dedicarem ao estudo do periférico, de iluminar fantasmas e, sobretudo, de negar as totalidades sintéticas da história, renunciando a posturas explicativas e propagandeando uma história “reacionária” desprovida de contradições (Vainfas, 2011, p. 117-118).

A despeito das acusações trocadas sobre a qualidade da produção desses dois modelos metodológicos, o próprio Cardoso termina seu artigo apontado algo que nos interessa como posicionamento: “Aquilo, porém, em que me recuso firmemente a acreditar é que erros e exageros passados justifiquem erros e exageros atuais de signo contrário” (Cardoso, 2011). E Vainfas ainda afirma:

Ciro Flamarion Cardoso, em artigo citado anteriormente, viu na crise do racionalismo a brecha por onde as mentalidades invadiram o território dos historiadores, retirando-lhes o afã explicativo e inibindo-os quanto ao compromisso social e crítico inerente ao métier de l’historien (Vainfas, 2011, p. 131).

Sem negar a contribuição da história cultural na expansão da historiografia, após as postulações do paradigma da pós-modernidade, a historiografia foi repensada à luz de filosofias como as de Nietzsche e Heidegger (de onde se serviram Foucault, Deleuze e Derrida).

O primeiro ponto, se aplicado à história-disciplina, levaria a afirmar que os pretensos centros (entenda-se: lugares de onde se fala) a partir dos quais se afirmariam diversas posturas diante da mesma não são lugares legítimos ou naturais, mas são universais: são sempre particulares, relativos a grupos restritos e socialmente hierarquizados de poder (em outras palavras: não há História; há histórias “de” e “para” os grupos em questão). O segundo ponto significa que, no mundo em que agora vivemos, qualquer “metadiscurso”, qualquer teoria global, tornou-se impossível de sustentar devido ao colapso da crença nos valores de todo tipo de hierarquização como sendo universais, o que explicaria o assumido niilismo intelectual contemporâneo, com seu relativismo absoluto e sua convicção de que o conhecimento se reduz a processos de semiose e interpretação (hermenêutica) impossíveis de ser hierarquizados de algum modo que possa pretender ao consenso (Cardoso, 2011, p. 14-15).

Diante dessa História e paradigmas rivais (para citar o título do texto de Cardoso, 2011) e com a intenção de melhor localizar nosso projeto de estudos, colocar-nos-emos diante de algumas das diferenças apontadas mais didaticamente por Peter Burke (1992) quando compara a historiografia tradicional à nouvelle histoire.

Segundo Burke (1992), o paradigma tradicional aponta que a história diz respeito essencialmente à política, enquanto o relativismo cultural abriu caminho para pontos a serem estudados como a infância, a morte, a loucura, o clima, os odores, a sujeira, a limpeza. Tais assuntos, caros ao culturalismo, dependendo da perspectiva do pesquisador, podem ser classificados como importantes ou frugais por conta da ideologia usada. Também contam para a realização de um julgamento sobre a relevância ou não da forma com que abordamos o objeto, a influência do meio acadêmico e a pressão de órgãos supra-acadêmicos (Moraes, 2013) para produção de artigos e pesquisas relacionados a assuntos que, por muitas vezes, estão alheios aos temas de interesse dos alunos.

Ora, como poderíamos abrir mão da importância da política no processo de expansão de uma rede inteira de ensino?, ainda mais se considerarmos que o Rio de Janeiro que estudamos é nada menos do que a capital federal, e a Escola modelo, da qual é criada a primeira Escola normal suburbana – com o nome de uma primeira-dama4 ainda viva – é também o modelo de Escola Normal para o restante do Brasil. Entretanto, como deveríamos avaliar a riqueza das entrevistas com os ex-alunos da instituição que nos insere em um universo subjetivo de experiências individuais, em que a infância, o clima, os odores, entre outras coisas, aparecem como os eventos mais significativos de suas histórias de vida? Como deixar essa exuberância de experiências e detalhes de lado?

Justamente por causa das experiências narradas por quem viveu aquela época e dos documentos históricos oficiais com que tivemos contato, ficamos diante do que talvez seja a mais marcante diferença entre a nova história e a tradicional: a preocupação com a história vista de baixo, característica da primeira, ou a história vista de cima, característica tradicional do fazer historiográfico.

Ao abrir mão de uma perspectiva ou de outra, perderíamos questões importantes para a História da Educação, seja de uma política nacional de educação, seja de impressões legítimas de como tal política de educação tem efeito na sala de aula e no cotidiano da vida dos jovens. Laélia Moreira aponta que Anísio Teixeira, educador de importância para a História da Educação brasileira e da Escola que tratamos como objeto, aposta na Educação como Arte.

Anísio Teixeira define a educação como arte. Apenas concebida nesse sentido é que pode ser considerada autônoma, como autônomas são todas as artes. Diferentemente do Direito, que é uma arte formal, a educação é uma arte material, à maneira da Medicina e da Engenharia. E, assim como não há ciência nem de curar nem de construir, mas arte fundada em conhecimentos de várias ciências, o mesmo ocorre com a educação. Trata-se de submeter essa prática, que antes do método científico progredia por tradição, ao crivo do estudo objetivo e promover o desenvolvimento cumulativo e contínuo do ato de educar. Desse modo, educar tornar-se-ia uma atividade menos empírica e intuitiva por meio dos conhecimentos das “ciências-fonte” que estabelecem as condições científicas para o tratamento dos currículos, dos métodos de ensino e da administração de escolas. A proposta principal do autor consiste em tomar os resultados do progresso da Antropologia, da Sociologia e da Psicologia como instrumentos intelectuais para elaborar técnicas, processos e modos de operação apropriados à função prática da Educação (Moreira, 2007, p. 56).

O expressivo pensamento de Anísio Teixeira de que a educação é arte não deixaria de lado qualquer das duas perspectivas historiográficas que trouxemos à baila, principalmente que nenhuma delas pode oferecer uma verdadeira perspectiva holística do objeto. Assim, ainda no caminho do meio, definimos por abordar nosso objeto usando o modelo historiográfico que julgamos trazer melhor contribuição para a Academia.

Destarte, vale a pena ressaltar que nunca antes, pelo menos não academicamente, havíamos realizado um exame aprofundado de nossas próprias influências; refletindo sobre quem somos para nós mesmos e para a sociedade em que vivemos. Estivemos, neste tempo de autoanálise, mais submetidos à batida frase do pórtico do templo de Delfos propagada pelo filósofo Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo!”. E continuamos a nos perguntar: deveríamos nos concentrar na fartura dos documentos oficiais ou na fartura das experiências contadas pelas memórias dos ex-alunos da escola?

Tomando o nosso objeto de análise como exemplo, podemos dizer que este é o tipo de dilema teórico no qual todo historiador que avalia o seu percurso deve se debruçar. Enfim, seria melhor o objetivismo político-econômico de caráter ideológico, que ignora as várias faces possíveis da Verdade histórica, ou o relativismo cultural radical, igualmente ideológico, que já parte do pouco razoável princípio de que não pode sequer tanger a Verdade?

Événementielle ou nouvelle histoire?

A política é para o nosso estudo algo essencial apenas porque encontramos em nossas pesquisas fontes oficiais importantíssimas? Ora, a história de uma escola construída em uma zona suburbana remota para atender à parte rural da população não teria sentido se não fosse a descoberta de tais documentos chancelados pelo Estado. Além disso, estudar a ENCD nos obrigou, necessariamente, a conhecer a vida da primeira-dama e o contexto histórico do país nos anos de 1940 a 1950. Assim, a política é fundamental para o nosso estudo.

A cultura, de outro modo, mostrou-se igualmente interessante ao nosso estudo, uma vez que decidimos não abrir mão das memórias que nos foram confiadas pelas ex-alunas da primeira turma da escola que tivemos o privilégio de entrevistar. Deveríamos deixar de lado as suas histórias cotidianas, os relacionamentos com as alunas do Instituto de Educação, com os professores e com as demais autoridades envolvidas na criação e manutenção da escola?

Descobrimos então que a intersecção problematizada da história oficial política com a história cultural das pessoas que viveram a criação do ENCD tornou o nosso estudo não apenas mais complexo, mas também mais rico e – certamente – também mais prazeroso. Sem dúvida, essa escolha levou em consideração o objeto como real, bem como a postura do pesquisador como ente ético que parte do princípio de que existe Verdade.

Despojada de radicalismos ideológicos ou metodológicos, a história cultural ofereceu, a partir da promessa que lemos em Peter Burke e Ronaldo Vainfas (2011) de que poderíamos transitar entre o político, o econômico e o saber em sua dimensão micro, um leque maior de análise e possibilidade de contribuição para a História da Educação como campo de estudo.

Depois da avaliação que fizemos da melhor forma de abordagem de nosso objeto, percebemos a oportunidade de tratar não apenas de política e economia, mas também de aspectos de formação da identidade da escola e dos alunos na década de 1940. Como afirma António Nóvoa, uma instituição deve ser analisada como um todo.

As escolas constituem uma territorialidade espacial e cultural onde se exprime o jogo dos atores educativos internos e externos; por isso, a sua análise só tem verdadeiro sentido se conseguir mobilizar todas as dimensões pessoais, simbólicas e políticas da vida escolar, não reduzindo o pensamento e a ação educativa a perspectivas técnicas, de gestão ou de eficácia stricto sensu (Nóvoa, 1995, p. 16).

Tomamos, portanto, o posicionamento de trabalhar com a perspectiva macro quando tratarmos de políticas públicas educacionais, um assunto imprescindível para entender a instalação da ENCD, e com a dimensão micro ao trabalharmos com a memória dos alunos das primeiras turmas da escola. Por conta disso, no que diz respeito ao objeto que escolhemos como exemplo, decidimos proceder nossa pesquisa dentro do escopo de instrumentos que nos é oferecido pela história cultual, pois desse cruzamento de dados e olhares pretendemos contar de forma mais interessante, agradável e consistente história da Escola Normal Carmela Dutra.

Considerações finais

Tal caminho interdisciplinar está posto não apenas em nossa formação de graduação e pós-graduação, mas também em nossos estudos do curso de mestrado e, atualmente, doutorado em educação na UFRJ, em que, além das disciplinas de nossa formação em História e Filosofia, a Sociologia, a Geografia e a Antropologia, assim como a Lógica como conteúdo filosófico-matemático presente em estudos quantitativos, entre outras áreas da ciência e campos filosóficos, se fazem presentes. O que avaliamos diante disso é a nossa tentativa de evitar um conhecimento recortado, impróprio do que consideramos pertinente às ciências educacionais.

Como as diversas ciências que tomam a educação escolar por tema a examinam com base em suas teorias, elas recortam a prática docente e discente de tal maneira que ficamos sem saber o que fazer com os conhecimentos que cada um alcança. Assim, para nós, os conhecimentos apresentados pelas diversas ciências que tratam da Educação nos parecem um caos, uma multidão de informações que dificilmente conseguimos coordenar. Frente a essa situação ficamos perplexos, e com razão, uma vez que vamos buscar algum conhecimento que oriente nossas práticas e deparamo-nos com a multiplicidade, com diversidades muitas vezes antagônicas (Mazzotti; Oliveira, 2000, p. 29).

Referências

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BURKE, Peter. Abertura: a Nova História, seu passado e seu futuro. In: ______ (org.) A escrita da História - novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. p. 7-37.

CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 1-23.

CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1936.

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Trad. Antônio Correia. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

LE GOFF, Jacques ; NORA, Pierre. História: novos problemas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p. 11-15.

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MORAES, Alex Martins. Revistas científicas ou túmulos do saber? 8 de janeiro de 2013. Disponível em: http://outraspalavras.net/destaques/revistas-cientificas-ou-tumulos-do-saber/. Acesso em 10 jan. 2013.

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Meio digital

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Acervo de teses e dissertações da UNIRIO. Disponível em http://www2.unirio.br/unirio/cla/ppgcla/ppgac/banco-de-teses-e-dissertacoes. Acesso em 23 ago. 2013.

1  A doutrina do meio-termo de Aristóteles condena os extremos. A falta de coragem é a covardia, bem como o excesso da coragem é caracterizado por ser uma temeridade. É usado o clássico exemplo do soldado que foge de sua função em comparação ao soldado que corre para provar seu valor diante de outros soldados; incorre nos casos de covardia e temeridade, respectivamente, pois nos dois casos todo o batalhão de soldados é colocado em risco por conta do comportamento de apenas um soldado (2006).

2  A região de Madureira, mais especificamente a Estrada Marechal Rangel, onde foi instalada a ENCD, era classificada como “2ª Zona Suburbana Remota e de difícil acesso” pelo Secretário Geral de Educação e Cultura, conforme mostraram as publicações de variados jornais, dentre eles o Correio da Manhã de 29 de dezembro de 1949, p. 12, e o Diário de Notícias de 30 de dezembro de 1949, p. 3-5. Disponível em http://hemerotecadigital.bn.br/. Acesso em 14 mar. 2014.

3  A palavra “sertão” significa região do interior, longe da costa e das povoações. Utilizamos neste trabalho a expressão “sertão carioca”, com base no livro de título homônimo, de Armando Magalhães Correa. Contudo, vale ressaltar a origem do termo: o primeiro uso da palavra teria sido feito no primeiro documento literário do Brasil. Pedro Vaz de Caminha, ao se referir ao território a ser colonizado pelos portugueses, usou o vocábulo “saartão”. Nos anos 1930, 1940, Madureira era considerada zona fronteiriça à região rural do Distrito Federal.

4  Dona Carmela Dutra era a esposa do então presidente da República, Eurico Gaspar Dutra.

Publicado em 14 de abril de 2016

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