A Filosofia no ProEMI encontra o pensamento radical

César Lapa

Professor de Filosofia da rede estadual de ensino

Apresentação: as estratégias do aprendizado

É preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante
Nietzsche, Assim Falou Zaratustra

A presente exposição tem uma tese central: o magistério de Filosofia no Ensino Médio tende a uma orientação muito pouco questionadora, embora se enuncie o contrário. Para realizar um aprendizado efetivamente inovador, a dinâmica pedagógica precisa romper com padrões do “bom senso” trivial e se aliar ao germe de um pensar mais radical com a filosofia, com a ciência e com o aprendizado. Esse apelo remonta às origens da Filosofia, mas exige um diferencial atual de superação da consolidada tradição metafísica.

Para apreciar essa tese insolente sem cair no lugar comum das palavras, será preciso examinar algumas experiências do ensino de Filosofia empreendidas no âmbito das escolas públicas. A démarche desta análise se pontua em três abordagens:

  • uma problematização do estilo filosófico mais tradicional em confronto com uma postura mais exigente com a vida;
  • comentário das investigações efetuadas em domínio específico, a saber, nas aulas de Filosofia ministradas para a turma 1001 do Colégio Estadual Canadá, em Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro, no ano letivo de 2015;
  • análise dos resultados teóricos inovadores suscitados por tal prática pedagógica.

As investigações realizadas com os alunos envolveram três temas: a “questão do mito”, a “consistência da filosofia do período arcaico” e a “decadência do racionalismo clássico”.

O método do círculo hermenêutico foi desenvolvido a partir da interpretação de Hans-Georg  Gadamer da “compreensão”  no interior da filosofia existencial de Heidegger. Ver Gadamer, 1999.

Esses temas são aqui analisados em um grau de reflexão superior, dado o gabarito da revista. Porém é preciso advertir que todo o investimento teórico exposto é derivado de um esforço cotidiano de sala de aula, em que se pratica a dinâmica do “círculo hermenêutico” virtuoso. Isso significa dizer que existem níveis diferenciados de compreensão do conteúdo ministrado. O papel do docente foi de animador e orientador das investigações, contornando as aporias e oferecendo esclarecimentos para que não se perdesse o eixo estruturador da “produção de conhecimento”. Procura-se evitar aqui um vocabulário “empresarial”, que venha comprometer o entendimento mais libertário. Embora não caiba explicar o quanto esse tipo de linguagem tem se infiltrado nas relações pedagógicas, produzindo significações temerárias à liberdade, a advertência é conveniente. “Produção de conhecimento” significa construção de novas sínteses do pensamento. Não tem nada a ver com a produção do capitalismo.

Se é possível dizer que nem todo o potencial teórico foi integralmente assimilado por todos os alunos, não é menos verdadeiro que o essencial (o caráter contestador e criativo do pensamento artístico, científico e filosófico) foi generosamente saboreado. O almejado foi a atitude de investigação e pensamento. Portanto, toda a reflexão que se segue, ainda que exposta em linguagem acadêmica, está baseada em uma vivência prática e partilhada com alunos secundaristas.

Os referenciais programáticos do ensino da Filosofia

Uma das ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) do Governo Federal foi criar o Programa Ensino Médio Inovador (ProEMI), pela portaria nº 971/09. Constitui uma iniciativa que visa promover uma ação inovadora, oferecendo aos estudantes, em tempo integral, com formação por meio de metodologia participativa e desafios extraordinários em termos culturais. No intuito de garantir a formação integral, com a inserção de atividades que tornem o currículo mais dinâmico, o programa apoia e fortalece o desenvolvimento de propostas curriculares inovadoras nas escolas de Ensino Médio. Enfim, procura atender às expectativas de transformação dos estudantes e às demandas da sociedade contemporânea.

O ProEMI, compreendido como um projeto de ambições inovadoras, acaba por deparar-se com um obstáculo problemático advindo da própria constituição cultural de nossa tradição filosófica. Embora se proclame que a Filosofia desempenhe como um saber questionador por muitas razões históricas, seu potencial contestador encontra-se mitigado ou comprometido com uma orientação tradicional, que não oferece sinais de tamanha emancipação crítica como se poderia esperar.

Porém a situação é bem complexa e exigente com o professor. Mesmo numa realidade em que vigora a deficiência do esforço crítico, o discurso professado no interior do ensino indica se o perfil seria ou não um esforço libertador das condições sociais.

Para estudo das relações de poder, as investigações de Michel Foucault são prestigiosas em obras como Vigiar e punir, História da sexualidade e outras, incluindo suas entrevistas. Mas o artigo Governamentalidade é esclarecedor do presente trabalho. FOUCAULT, 1992.

Até que ponto o cultivo da Filosofia nas escolas deve significar o exercício de uma plataforma ilustrada da boa razão conduzindo os homens à sua emancipação? A que modelo de civilização o ensino de Filosofia serve? Essas questões são fundamentais para traçar paradigmas do processo educativo. E não se restringe a uma só área do ensino como um todo, mas incide tanto na prática docente quanto na administração escolar. Conscientes ou não, os profissionais estão adotando uma atitude interceptada pelas relações “saber-poder”.

É bem verdade que as orientações do MEC para o ensino de nível médio, no que diz respeito ao ensino de Filosofia (MEC, 2006), alargam as possibilidades para que o docente tenha a prerrogativa de ministrar uma prática pedagógica em conformidade com sua visão filosófica. Há uma vasta gama de escolas, sistemas, orientações à escolha do professor. Os PCN, em boa hora, evitaram restrição a qualquer linha de pensamento e apoiam a adoção de qualquer estirpe filosófica, de acordo com a formação do docente.

No que diz respeito especificamente ao material didático publicado, não convém aqui tecer acusações minuciosas aos autores, mesmo porque não enunciam orientações incorretas, mas sim comprometidas com a tradição.

Porém essa diversidade fica mitigada na medida em que há uma forte tendência metafísica na cosmovisão geral da Cultura Ocidental, no histórico da formação acadêmica do docente e nos recursos que ele tem à disposição. Logo, aquela pluralidade de tendências filosóficas que os Parâmetros Curriculares viabilizam aos professores se reduz a ponto de conduzir o docente a uma atitude mais conformada aos apelos tradicionais do Ensino.

 

Aspectos da Filosofia tradicional

Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer e matar de fome de raiva e de sede são tantas vezes, gestos naturais. Caetano Veloso

A obra de Heidegger denuncia esse aspecto vil da concepção humanista. Para tanto ver Heidegger (1995).

Em seu desempenho metafísico, a “Filosofia tradicional” almeja uma emancipação racionalista do ser humano. É raro um questionamento radical ao “humanismo”, que foi assimilado como um patrimônio inconteste da sociedade moderna. Porém é justamente um tema central da tradição metafísica. O conceito de “humano” como modelo civilizacional esconde uma série de padronizações pouco elevadas em termos de vitalidade. Assim, o humanismo moderno reforça categorias de personalidade majoritárias: moderno, urbano, branco, masculino, racional, consumidor etc. Tal anseio se dissemina numa cultura massificada que reforça o senso comum, o dogmatismo e seus resultados nefastos no campo social, como a intolerância, o fanatismo, o racismo, a homofobia, a injustiça econômica etc.

Em que é possível reconhecer a filosofia que tem mantido essa hegemonia? A dificuldade de uma análise desse tipo esbarra na ambiguidade e nos velamentos de uma linguagem que mantém tácito seu predomínio. A título de exemplo: muitas vezes, quando, no âmbito escolar, um professor decide abordar a filosofia “crítica” de Sócrates, o apego a um caráter messiânico logo se insinua. A analogia a um martírio (Sócrates-Cristo) representa a tomada de escolha de um modelo “patriótico”, abnegado e até vaidoso sobre a figura do filósofo e do professor de modo geral. No fim das contas, a atividade que pretendia pensar uma atitude crítica já tomou posição ameaçadora à experiência democrática (seja em Atenas do século V a.C. ou nas nações modernas do século XXI). A postura de Sócrates, na realidade, não representa outra coisa senão um incentivo à tirania da razão.

A interpretação deleuziana esclarece nitidamente os polos de uma rivalidade cósmica entre duas potências axiológicas (Deleuze, 1985).

Nesse ponto, uma demonstração do litígio entre duas concepções se faz necessária. É preciso que o docente tome uma posição cônscia da rivalidade entre duas potências que qualificam a vida em “ativa” e “reativa”. Há, segundo essa ótica, forças ativas que inspiram pensamentos afirmativos da vida, ao dizer sim à diferença, e há forças reativas que propagam pensamentos com disposição contrária, típicas das filosofias da identidade, da consciência, da transcendência, que se opõem explícita ou implicitamente à diferença, à vontade de potência, à imanência.

O mundo ocidental há 26 séculos se geriu dentro do pensamento em que vigora um critério seletivo de avaliação de todas as coisas que povoam o convívio dos homens. Ele se pauta por um mundo imaginário, transcendente: mundo além da história, além do tempo, contra a vontade de viver em virtude de um “tempo” inalterado, do platonismo, em que a mutação é repelida.

A filosofia tradicional, que remonta ao platonismo, é fruto de uma decisão: tomar como critério de pensamento a cosmovisão em que se opera um dualismo subordinativo, que qualifica a identidade sobre a diferença, o uno sobre o múltiplo, a essência sobre a aparência, a transcendência sobre a imanência, o Absoluto sobre o relacional, e, resvalando para o plano moral, o pacificado sobre o agitado, o casto sobre o viril, o cívico sobre o audacioso, enfim, o mau sobre o bom. Não é que a polaridade não exista, mas a classificação padece de um critério torpe: dizer não ao vigor vital das forças ativas.

No ProEMI, um pensamento radical contra-ataca

Incrivelmente laboriosa apresenta-se a tomada de decisão reversa. Não é fácil se libertar de amarras históricas tão amalgamadas. Não é tarefa fácil esboçar em poucas linhas as características fundamentais de um pensamento que pretende transgredir a tradição filosófica. Uma via que facilita essa compreensão encontra-se justamente no propósito do presente artigo: comentar as experiências como “desconstrutoras” daquela visão hegemônica.

Porém poder-se-ia resumir a perspectiva do “pensamento radical” em linhas gerais. O principal aspecto é o prestígio que ele concede ao “plano de imanência” (campo de manifestação existencial entre os entes). Entretanto, entende mal o questionamento quem pensa numa oposição aos elementos transcendentais. Imanência e transcendência (que no dualismo platônico se opõem) aqui são grandezas complementares.

Do mesmo modo, a concepção de categorias como tempo e eternidade, movimento e estabilidade, corpo e espírito, forças e formas, vida e morte conflui mutuamente sob critérios de valores da exuberância do existir. Alegria, vontade de ser, criatividade e demais potências passam a ser novos critérios do conhecimento, da moral e da sensibilidade.

Em consequência disto, esse filosofar ao romper com o “bom senso comum” rescinde com a visão totalitária do humanismo moderno. Sua pretensão fundamental é superar o racionalismo. É dentro desse esboço que perfilam as experiências surgidas na prática da referida turma do ProEMI.

As experiências inspiradoras de uma filosofia radical

No Colégio Estadual Canadá, os coordenadores, ao privilegiar o ProEMI sobre suas demais atividades, exortaram sua equipe de professores à tarefa de desenvolver projetos de investigação com máxima participação estudantil. O que se expõe aqui são práticas ordinárias do cotidiano escolar, assim como atividades extraclasse. Foram realizadas exibições de filmes pertinentes aos temas, experimentaram-se ensaios cenográficos, incentivou-se participação efetiva em eventos científicos e experimentos de “disputa filosófica”.

A aurora do filosofar

A primeira prática a se destacar ocorreu no âmbito de sala de aula. Foram encontros para a compreensão inicial do fazer filosófico. Realizou-se a projeção de um curta-metragem sobre “um decisivo encontro de um menino com a filosofia”. Trata-se do filme Meu amigo Nietzsche (Silva, 2012). Em poucos minutos, foi possível reconhecer o poder do pensamento sobre a vida simples da periferia urbana. A partir dessa obra, os estudantes conversaram sobre o esforço pessoal que os motiva a estudar e, assim, mudar o próprio ser. Falou-se ainda sobre a recusa do conformismo com o mundo, e as novas visões que o conhecimento pode proporcionar. De fato, o filme tem o mérito de não se vincular obrigatoriamente ao pensamento nietzscheano (ainda que pese o título), ao procurar indicar como a filosofia, qualquer que seja, pode provocar transformações nas pessoas. Ninguém faz nada com a filosofia. Ela é que faz com a vida algo diferente.

Revisando a mitologia

Outra prática notável se deu quanto à resolução de estudar a “narrativa mítica” (tema compulsório do Currículo Mínimo). Como de praxe, a problematização pendeu para a ruptura histórica que representou o nascimento da Filosofia frente aos mitos. Mas o que exatamente a história buscou superar daquelas formidáveis narrativas?

Mais uma vez, um filme foi recurso didático para debater-se o assunto: uma produção recente, Hércules. Esse filme foi exibido com objetivo de estimular a visão do aspecto mítico ontem e hoje. Ele tem vários méritos. Em termos imagéticos, é sedutor do público infantojuvenil, pois atrai pelo panorama de figuras de guerreiros, feitos, lutas, armas, amaduras, enfim, tudo que costuma atrair os jovens mais agitados. Na prática, todos se concentram bem.

Em termos didáticos, trata o tema do mito de um modo “realista”. É que não apresenta nada de fantástico nem mágico. A personagem Hércules é um mero mortal, mas com uma força descomunal. Essa habilidade verossímil começa a ser exaltada e ampliada em histórias exageradas que acabam por gerar certas mitificações populares, que passam a associar suas realizações como manifestações divinais.

Assim, os alunos refletiram o modo como os mitos foram (e são) gerados e propagados. Não se trata mais de tomá-los como meras ficções, mas de um modo poético, como um estimulo ao povo para a coragem, para a bravura, para o heroísmo e para outras virtudes mais que na época proporcionaram o sentimento de participação das nações da Hélade Grega.

Desse modo, viu-se a importância do mito no passado e sua presença na atualidade, por exemplo, na publicidade. Os alunos pesquisaram como o mito está presente em celebridades da TV, nos espetáculos esportivos, na visão popular de certos homens públicos, como empresários ou políticos.

Focalizando essa contribuição do mito à Paideia (formação do povo), os alunos esboçaram encenações. Foi sugerido, com o intuito de promover o protagonismo estudantil, o drama em torno do conformismo a partir da história do Minotauro. Na peça, foi trabalhado o tema do conformismo e da coragem (Perseu, príncipe de Atenas, reage contra a situação de opressão imposta por Minos, rei cretense). O debate levou a pensar como o povo deve reagir contra certas condições institucionalizadas e lutar por um mundo novo.

Esse sentimento de insubordinação deve ser a tônica de um curso de Filosofia com pretensões inovadoras: levar ao questionamento sempre foi o mote do pensamento filosófico. Desse modo, o “mito” deixa de ser algo ultrapassado pela racionalidade; ao contrário, é um modo extraordinário de pensamento. Enfim, o mito deixou de ser encarado como um engodo ou uma deficiência arcaica já superada, mas sim como uma expressão formidável do pensamento.

Chave de leitura radical sobre os originários

A abordagem que se seguiu incidiu sobre o aparecimento da Filosofia na época arcaica da sociedade grega. Foi preciso realizar um novo deslocamento contra a concepção tradicional. O momento de problematização destacou um certo dilema a essa altura: se o mito era positivo, e educativo, em que medida a Filosofia nascente vem substituí-lo? A abordagem dessa delicada questão foi favorecida por um acontecimento na própria vida escolar.

A convite da professora de Física, Adriana Oliveira Bernardes, os professores de Filosofia das turmas do 1º ano do Ensino Médio participaram da I Semana de Física do ProEMI do Colégio Estadual Canadá. Nessa atividade efetuaram-se diversos estudos sobre modelos astronômicos, assim como sobre visões cosmológicas na história do conhecimento científico.

Nesse evento, além da participação efetiva do alunado na promoção de trabalhos e pesquisas no campo da Física, da Literatura e da Filosofia, os professores puderam expor deslocamentos criativos, ensaios teóricos e práticos e toda sorte de ações acadêmicas necessárias a uma escola que almeja o protagonismo e a inovação. A proposta da organizadora da Semana foi proporcionar investigações interdisciplinares sobre o mundo e o modo como o conhecimento pôde abordá-los. Tanto a Ciência quanto a Arte e a Filosofia precisam romper a estagnação do “bom senso” para gerar algo de fato inovador.

Em parceria interdisciplinar com a disciplina de Física, a prática docente em Filosofia procurou o quanto possível libertar-se do jugo metafísico tradicional para investigar, unido com o empenho de alunos e professores, um olhar incomum sobre o horizonte dos “pensadores originários”, conhecido classicamente como “filósofos pré-socráticos”.

Inscrevendo a participação da Filosofia, essa experiência do ProEMI buscou desempenhar um lampejo, uma centelha de pensamento que procurou fugir do habitual, e isso se consolidou em torno da investigação sobre os “pensadores originários”. Nesse sentido, a disciplina de Filosofia teve o papel de fomentar a pesquisa em três linhas mestras:

  • o viço extraordinário do pensamento arcaico;
  • a complementaridade entre narrativas míticas e a filosofia nascente; e
  • a luta contra o ranço de dogmatismo na religiosidade antiga.

Parece certo que uma primeira expressão da filosofia tenha se dado no período arcaico (em torno dos séculos VIII e VI a.C.). Ela é bem distinta da filosofia clássica de Sócrates, Platão e Aristóteles no século V. Mais uma vez, é Nietzsche que vai inovar na pesquisa em dois registros surpreendentes para sua época: O nascimento da tragédia (1992), em que fala dos estilos estéticos da arte grega, e O pensamento na época arcaica (1978), no qual se revela a riqueza peculiar da obra daqueles autores.

Junto aos alunos, partiu-se de certos paradigmas de investigação no terreno do pensamento dos poetas e pensadores gregos, que podem ser resumidos assim:

  • é difícil recuperar o vigor do pensamento daqueles pensadores devido à distância temporal e à escassez da literatura que deles foi resgatada;
  • mas eles não são filósofos primitivos, e sim pensadores da “origem” (começo e comando do real);
  • além do mais, não foram cientistas da natureza em oposição ao humanismo que viria compor-se com o socratismo posterior;
  • o pensamento originário se inscreve nas fileiras das forças ativas da vida. Trata-se, antes de tudo, de um pensamento radical, arraigado na existência;
  • três termos se articulam virtuosamente nesta meditação: arkhé, physis e logos.

De fato, a considerar o abismo quase intransponível à literatura resgatada, o sentido genuíno desse pensamento permanece enigmático ao pesquisador moderno, inclusive levando em consideração que a doxologia foi formada a partir de citações no interior de obras com consistências teóricas muito distintas, como as referências advindas de autores cristãos. A referência é imensa. Mas há versões que se popularizaram no Brasil, como se destacam: Bornheim, (1977); Burnet (1994). Cumpre ressaltar o singular esforço em termos existenciais de Carneiro Leão (1999). Ainda assim, o desafio do estudo sob um apetite mais existencial arrebata convicções sedutoras.

Normalmente os pensadores são apresentados como “filósofos pré-socráticos” ou “filósofos naturalistas”, cujo intuito seria explicar os fenômenos naturais sob critérios racionais, e não mais no registro mítico, entendimento fantasioso e alegórico. Esse tipo de visão é patente na abordagem do ensino de Filosofia porque está comprometida com a concepção de que os pensadores podem ser enquadrados na linhagem de Sócrates, Platão e Aristóteles, ainda que de modo primitivo.

Combatendo essa visão, a linha adotada pelas investigações dos alunos do ProEMI produziu os seguintes deslocamentos:

  • renunciou-se a considerar os pensadores como estágio pretérito do socratismo, sequer “filósofos” no sentido tradicional. Tratava-se de um pensamento singular com estatura própria e convicto de suas máximas;
  • recusou-se igualmente o codinome de “naturalistas”, colocado em oposição a “humanistas”. A impressão que transparece com noção “filósofos da natureza” é de empiristas debruçados sobre fenômenos da biosfera. Seriam como uma espécie de cientistas modernos lá no passado;
  • abandonou-se também a dicotomia “mito-razão” por não conservar a dignidade do discurso narrativo. Como já se aludiu, a poética a que os mitos estão associados é uma das maiores realizações do engenho racional. O poetar pensante tem um alcance extraordinário, além da mera produção de conhecimento.

Para uma noção do lugar que o mito e a tragédia ocupavam no mundo grego, a referência são as investigações de Vernant (1992).

Os mitos pensam a condição existencial na tensão entre vida e morte. Eles operam a realização de mundo dos homens em dissídio hostil com as forças extraordinárias. Por isso, tudo é tão trágico, tudo é tão divino e tão fatal. Porém não significa sujeição do imanente ao transcendente, mas tensão complementar.

Portanto, a mítica não significa aqui “alegoria”, de modo algum. A atitude dos pensadores conserva esse viso ao pensar o Ser das coisas “sendo” e deslocando-se além do aspecto conceitual das representações. O foco é mais radical.

Quanto à compreensão do significado de Physis ver Heidegger (1999).

Eis que vem daí a compreensão vigorosa de physis, princípio de brotação . A tradução deste termo por “natureza” é reducionista. Physis significa muito mais a experiência fundamental do Ser, facultada pela poesia e pensamento, como vigor do que faz brotar e ainda conserva.

Pensar e filosofar não são sinônimos. É preciso exigir da Filosofia um empenho superior. Um filósofo ganha dignidade na medida em que pensa o sentido do existir como origem (arkhé). Nos poemas homéricos, arkhé tem sentido de começo, mas em Píndaro significa o que está no comando, que governa e organiza. Os pensadores conjugam physis com essa acepção de arkhé. Trata-se do fundamento, princípio de tudo o que existe (Chauí, 2002, p. 46).

Para aprofundamento da dimensão trágica nos pensadores originários, ver Melo e Souza. Atualidade da tragédia grega, em Rosenfield (2001).

Eis por que os originários não estão em dissídio com o trágico das narrativas míticas. Para esse universo mental, a totalidade existencial, cuja vivência emerge na linguagem poética, é um mundo que se entrega à legislação dos deuses, compreendidos aqui como manifestações prodigiosas do real (não no sentido sobrenatural).

Entretanto, pode-se falar numa ruptura (isto sim!) com o sentido dogmático do poder do antigo sábio-religioso, conforme escreve o helenista Marcel Detienne (1988). O “vidente” se apoderava do mito como palavra mágica. Mas esse perigo, que a Filosofia nascente quis transpor, não é adstrito ao mítico. O risco é a submissão servil ao uso sacerdotal do mito.

Versão livre do fragmento 123 de Heráclito: “Surgimento já tende ao encobrimento”, conforme Carneiro Leão (1999, p. .91).

Nesse sentido, a Filosofia significa um olhar transcendental em respeito à imanência: “o princípio que manifesta tende ao encobrimento”. Se o plano imanente abriga o mistério, ele se revela de algum modo aos homens. Ao termo physis se aproxima outro de semelhante parentesco semântico: logos.

A obra de Heidegger apresenta exaustiva pesquisa neste sentido. Aqui basta indicar Heidegger (2001).

Vindo do verbo legein, logos tanto significa coletar quanto o que é coletado, mas também é “contar”, “dizer”.

Heráclito. Fragmento 45. In: Carneiro Leão (1999, p. 71).

Em Heráclito encontrou o sentido próprio do que tanto manifesta quanto ocultam os sentidos da vida: “Não encontraria a caminho os limites da vida mesmo quem percorresse todos os caminhos, tão profundo é o logos que possui”.

O risco da tradução de logos por “razão”, “cálculo”, “medida” é imenso dentro da sedução metafísica, mas aqui o ânimo radical traz outra compreensão: logos é o princípio que reúne dinamicamente a dispersão da physis. Aos estudantes pôde ser vislumbrada a necessidade originária dos seus estudos, de qualquer aprendizagem, de toda a ciência, de toda a criatividade. A cultura, o conhecimento, a invenção são descobertos, assim como resultados de uma força transformadora da paisagem da natureza em edificações extraordinárias da arte presente nos homens. Todo corpo é tomado como causa – não efeito – do conhecimento.

Assim, o empenho originário não consistiu numa pesquisa científica (na acepção moderna) sobre os fenômenos físicos, e que em dado momento foi suspensa pelo período clássico de Sócrates e Platão (chamada segunda navegação). Nada disso! A meditação se concentra em interpretar a existência fatídica que engloba e atravessa o mundo dos mortais. Trazer essa interpretação à tona leva o estudante a uma mais exigente com a época atual. Nessa ótica radical, a segregação, os preconceitos, a intolerância, a massificação são questionados na sua base reativa.

Dinâmica do tribunal

Essa expressão constitui um posicionamento característico da especulação socrática em se afastar da pesquisa cosmológica e voltar-se para problemas de ordem “ética” e “política”. Sobre essa noção, ver Reale e Antiseri (2003, p.138).

No evento citado, portanto, desenvolveram-se diversas investigações de cunho científico e filosófico sobre os modelos cosmológicos, assumidos pelos estudantes como organização do mundo. Mas a problematização seguiu seu curso, mais uma vez, nas dinâmicas convencionais das aulas regulares: dentro do pensamento platônico, o mito foi totalmente abandonado? Aos estudantes foi sugerida uma nova retomada do pensar radical. Se o próprio Platão considerou seu trabalho como uma “segunda navegação”, aquela em que a intuição dos pré-socráticos seria superada, significa um engrandecimento? Ou, ao contrário, o platonismo representou uma decadência?

O docente, mesmo mantendo sua perspectiva consolidada, deve respeitar o esforço próprio do aluno e demonstrar uma postura aberta (nunca neutra) para que a turma alcance suas sínteses por si mesma. Nesse sentido, o professor forneceu os subsídios para a dialética do pensamento. Assim, estruturou-se em sala de aula um debate do tipo “tribunal”, como foro de disputa de ideias.

Alguns alunos acusaram Platão de ter rompido inteiramente com a sabedoria dos antigos sábios quando engendrou uma filosofia nos moldes do racionalismo socrático. Essa atitude perdeu o vigor trágico dos mitos, que o pensamento originário conservava.

Está em “Recuperação e novo significado do "mito" em Platão” (Reale, 2003, p. 135).

Outros estudantes se encarregaram de argumentar que Platão ainda conservou em sua literatura o referencial mítico (Mito da Caverna, Mito de Er, Mito da parelha alada etc.), então o racionalismo dele não foi tão rígido como se poderia supor. Ofereceu-se bibliografia subsidiária ao argumento.

Evidentemente os alunos não fizeram uso de linguagem muito acadêmica, mas seu sentido foi assim ministrado: em Platão perdeu-se inteiramente a filosofia existencial? Concluiu-se que não, ou melhor, pelo menos, não totalmente. Mas o desdobramento do platonismo na história, principalmente com Aristóteles, comprometeu seriamente a força do que ainda restava de poético na filosofia.

Sem dúvida essa experiência educou para a capacidade argumentativa dos estudantes, além de proporcionar o exercício de uma análise perspectiva sobre um dado tema, uma vez que se procurou observar o problema por diversos ângulos.

Considerações finais

As metas alcançadas com essas experiências podem ser resumidas como se segue. Em primeiro lugar, o protagonismo levou os alunos ao gosto pela investigação, à pesquisa e ao questionamento radical. Por sua vez, a experiência com a arte cênica demonstrou como o conhecimento se alinha com as expressões artísticas. E, por fim, superou-se qualquer tese sobre o antagonismo entre Filosofia e Ciência moderna. O primado do saber não é privilégio de nenhuma dessas atividades que compartilham a luta contra o dogmatismo, a superstição, o senso comum e toda forma de obscurantismo.

Cabe retomar a advertência inicial quanto à assimilação desse conteúdo. Tal visão não é simples nem fácil de ensinar. O fato de este artigo utilizar uma linguagem mais formal pode parecer uma “falsificação dos fatos” a fim de gerar uma espécie de “ficção pedagógica”.

Em outras palavras, é óbvio que os alunos não obtiveram nitidez integral da problemática na mesma proporção em que foi enunciada pela linguagem deste documento. O que ocorre é que o complexo exercício do magistério, na prática, enfrenta dificuldades psicológicas do aprendizado. A clareza, maior ou menor, vai se engendrando na compreensão da vida de forma dinâmica. Essa concepção navega contra a corrente de uma postura que construiu 26 séculos da civilização ocidental. Se nem tudo pode ser assimilado, ao menos o projeto procurou mostrar aos estudantes um outro horizonte possível, sem se enredar num reducionismo comprometido com a massificação cultural dessa época de informatização. Ainda que escassa e complexa, a filosofia radical se inscreve na tentativa de pensar que enaltece a diferença.

Referências

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Publicado em 02 de agosto de 2016

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