Educação para que(m)? Lições do modelo finlandês para a escola pública brasileira

Prof. Dr. Ricardo Correia Miguez

Neurolinguista, doutor (UFF) e mestre (UERJ) em Letras, professor do Instituto Federal de Educação Técnica e Tecnológica Colégio Pedro II e líder do Núcleo de Pesquisa em Educação, Tecnologia e Inovação (CPII/ CNPq).

A pesquisa que resultou neste trabalho foi realizada na Tampere University of Applied Sciences (TAMK) na Finlândia, financiada pelo CNPq por uma Bolsa de Desenvolvimento Tecnológico (DEJ) com o apoio do programa “Professores para o Futuro” da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação.

Introdução: O Ensino Público que Temos

Duas décadas após a implementação da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), antigos desafios persistem nas escolas públicas brasileiras e dificultam nossa capacidade de responder a novas demandas que não foram previstas na lei, mas que se configuraram nesse período. A chamada “Nova LDB” prestigiou modalidades profissionalizantes de ensino, em sintonia com o direcionamento neoliberal então em voga na política brasileira. O documento legal também reforçou o caráter humanista da educação em nosso país ao introduzir, por exemplo, os temas transversais. O ensino voltado para competências amplas e organizado em torno de grandes áreas curriculares foi, sem dúvida, um passo progressista na direção de um rompimento parcial com paradigmas conteudistas e propedêuticos então prestigiados.

As palavras de abertura dos Parâmetros Curriculares Nacionais, do então ministro da Educação, refletem bem a sua dualidade de propósitos:

O papel fundamental da educação no desenvolvimento das pessoas e das sociedades amplia-se ainda mais no despertar do novo milênio e aponta para a necessidade de se construir uma escola voltada para a formação de cidadãos. Vivemos numa era marcada pela competição e pela excelência, em que progressos científicos e avanços tecnológicos definem exigências novas para os jovens que ingressarão no mundo do trabalho. Tal demanda impõe uma revisão dos currículos que orientam o trabalho cotidianamente realizado pelos professores e especialistas em educação do nosso país (Brasil, 1998, p. 5).

A escola, por essa ótica, deve preparar cidadãos capazes de atuar diante dos progressos científicos e dos avanços tecnológicos no “novo milênio” que se descortinava. Pois o novo milênio já se iniciou e estamos em um momento privilegiado, com distanciamento histórico suficiente para avaliar o resultado do nosso trabalho: seja pesquisando o sucesso profissional das gerações já integralmente formadas sob a égide da LDB de 1996, seja analisando o desempenho acadêmico dos nossos alunos atuais, fruto das práticas então previstas na lei e que já estão consolidadas pela nossa experiência ao longo dos anos.

Como as escolas públicas brasileiras não têm, como prática, a avaliação e o acompanhamento de seus egressos, é difícil avaliar o desempenho dos nossos ex-alunos que prosseguiram para o ensino terciário ou daqueles que optaram por ingressar no mercado de trabalho após o término do ensino secundário. Talvez o indicador empírico mais próximo de capturar os sucessos e percalços na implementação da LDB de 1996 sejam os alunos daquela época que, hoje, já tiveram tempo para terminar seu curso superior e ingressaram, como docentes, no magistério. A multiplicidade de experiências a que esta geração de professores foi exposta ao longo de sua formação talvez tenha deturpado um pouco suas recordações escolares mais antigas, mas arrisco-me a afirmar que (ao menos) um aspecto une a geração anterior à LDB de 1996 às gerações subsequentes (a dos nossos alunos atuais, inclusive): continuamos a nos perguntar, em muitas ocasiões, “para que serve este conteúdo?” ou “por que eu quero aprender isso?”. Essas são perguntas típicas de um paradigma de ensino propedêutico ainda distanciado do mundo concreto dos alunos e pensado “da escola para os discentes”, sem que a realidade exterior aos muros escolares e os próprios alunos fossem consultados durante o planejamento.

No âmbito de avanços, nestas duas últimas décadas nossas escolas absorveram mais valores democráticos e uma preocupação maior com a formação dos nossos jovens para exercer plenamente sua cidadania. Também desenvolvemos um olhar mais atento para o trabalho com questões de exclusão social e preconceitos em nossas salas de aula, assim como caminhamos para uma maior inclusão dos alunos com necessidades específicas. As grandes áreas previstas nos PCN, por outro lado, ainda preservam seus status de disciplinas, quiçá um pouco menos herméticas, reproduzindo a lógica da segmentação de conhecimentos que ainda permeia a formação de professores no ensino superior. As tecnologias da informação e da comunicação, que mereceram um capítulo inteiro dedicado a elas nos já citados PCN, são gradualmente mais presentes em nossas aulas, apesar de o seu emprego em sala ainda depender da familiaridade dos próprios docentes com o seu uso, uma vez que docentes que não utilizam tecnologias em sua rotina diária sentem menos necessidade de inseri-las em seu plano de curso.

No que tange ao uso dessas tecnologias, contudo, muitas escolas públicas brasileiras ainda não dispõem de recursos materiais e de núcleos docentes voltados para a disseminação e organização de iniciativas de inclusão digital na prática escolar, como seria desejável para a plena integração do trabalho previsto na legislação vigente à nossa rotina. A mesma falta de recursos, humanos e materiais, afeta o trabalho de inclusão ao nosso trabalho didático de alunos portadores de necessidades específicas. Muitos professores ainda buscam a inclusão “na boa vontade”, em um trabalho quase voluntário e voltado para alunos específicos com necessidades mais proeminentes.

Dificilmente é facultado ao docente recorrer a outras esferas de profissionais especializados e a materiais de apoio que, por vezes, são desenvolvidos em determinadas instituições, mas não costumam ter uma política oficial para a sua difusão por toda a rede pública de ensino. A questão da inclusão nas escolas públicas brasileiras assume diversas vertentes (social, racial, cognitiva, de gênero) que não foram textualmente contempladas pela legislação maior e precisaram ser agregadas por leis adicionais e portarias ministeriais que, na maioria das vezes, não possuem a preocupação pedagógica de estar em consonância com o trabalho originalmente previsto na LDB: são obrigações adicionais para o docente e suas escolas, algumas gerando custos não previstos nos orçamentos das instituições e outras demandando a contratação ou a qualificação de profissionais para atuar de forma mais especializada e para a qual a formação universitária dos docentes não seria suficiente.

Outra questão importante de ser abordada em uma discussão sobre o magistério público em nosso país é, sem dúvida, o plano de carreira e a remuneração docente. A LDB superficialmente aborda a questão da qualificação dos professores, mas não institui uma política de incentivo à formação continuada do docente da educação pública, seja encorajando sua progressão de níveis na carreira de forma mais acelerada, seja criando uma política nacional de acesso facilitado a programas de (re)qualificação profissional (com os afastamentos de sala de aula necessários para a dedicação integral do docente à sua formação). Não é razoável que o legislador esperasse que o docente, muitas vezes atuando em dois ou três empregos para complementar sua renda, pudesse manter-se academicamente atualizado quando o acesso a cursos de pós-graduação geralmente envolve uma dedicação pregressa dos candidatos à pesquisa acadêmica ou, posteriormente, disponibilidade de tempo integral para cursar as disciplinas previstas.

Embora pudéssemos argumentar que uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional não devesse se ater a questões puramente trabalhistas, não haveria impeditivo formal para a inclusão dessas questões, se fosse do interesse do legislador apresentar um documento de abrangência nacional para pautar o desenvolvimento da educação atrelado a uma reorganização da carreira docente.

A visão a respeito da atuação profissional do docente que poderia ser extraída da LDB de 1996, e que não foi substancialmente alterada por nenhuma legislação subsequente, parece sugerir que, uma vez graduado em um curso superior, o docente já dominaria os conhecimentos necessários para o exercício de sua profissão para o resto de sua carreira. Hoje, com a redução da duração dos cursos de licenciatura (em geral, encolhendo de quatro ou cinco anos para três anos), percebemos que a pressa na ampliação do número de profissionais da educação agrava os problemas que já eram presentes na formação superior de licenciados. Ampliaram-se também as vagas para licenciandos em cursos a distância e, se considerarmos que o professor é um profissional cuja atuação prevê a reflexão contínua a respeito de sua prática e a capacidade de dialogar com seus pares em prol de um trabalho coletivo, podemos nos perguntar se a formação a distância (ou em tão pouco tempo) permite que o docente desenvolva suas habilidades para o exercício da profissão. O magistério não é uma carreira puramente técnica, e nossa atuação profissional não se resume a soluções lógicas e racionais. Nossa atuação exige a capacidade de identificar e buscar os novos conhecimentos exigidos pela nossa experiência diária, cada vez mais complexa.

Cabe destacar que, dentre as profissões especializadas no mercado de trabalho, a docência é uma das poucas que não possui o seu próprio conselho profissional, a exemplo de Psicologia, Engenharia, Administração, Medicina, Farmácia, Fisioterapia e Veterinária, entre outras. Não possuímos uma representação nacional que atue em benefício da regulamentação da nossa profissão. Geralmente encontramos alguma organização coletiva em torno de sindicatos de professores que, por definição, não substituem a atuação de conselhos profissionais.

Retomando a discussão pela vertente do nosso trabalho pedagógico, a escola pública de hoje precisa encontrar respostas para questões que ganharam proeminência nas últimas décadas, embora ainda não tenha superado, em todo o território brasileiro, os desafios para a educação que se pretendeu contemplar com a elaboração da LDB de 1996, dos PCN e dos temas transversais. Estamos em um momento na história da educação brasileira no qual precisamos optar entre insistir em continuar aprimorando o modelo de escola previsto naquela Lei de Diretrizes e Bases ou ingressar em um novo paradigma de ensino e aprendizagem que se assemelharia mais a uma redescoberta da função da escola em nossa sociedade.

O avanço tecnológico atual, com sua influência direta em nossa interação social e no acesso ao conhecimento, demanda repensar nossas escolas e nossos currículos. Nossa LDB já não corresponde às expectativas que a sociedade tem de nossas escolas e, aos poucos, nos tornamos um registro histórico de práticas ultrapassadas de sala de aula e de programas de ensino anacrônicos.

Se olharmos para a nossa legislação educacional vigente e para os recursos e as demandas do mundo exterior às escolas, veremos um descompasso muito grande. Essa diferença afeta a valorização social de nossas instituições de ensino público e a motivação de nossos docentes, além de limitar a atualização e a amplitude da formação que seríamos capazes de oferecer aos nossos alunos.

A escola que não evolui com a sociedade perde sua capacidade de reter e interessar o seu corpo discente. A instituição escolar se transforma em um registro inerte de demandas do passado e fica incapaz de atuar no hoje com um olhar para a vida futura do aluno. Para ser uma agente de mudança na sociedade e para contribuir significativamente para a inserção social de nossos jovens, como previa a LDB de 1996, a escola deve atuar, conforme discutiremos na sequência, na berlinda e não na retaguarda da sociedade.

Por que a Finlândia?

O sistema educacional finlandês vem recebendo o (merecido) status de modelo para outros sistemas educacionais ao redor do mundo. Governos de diferentes países geralmente citam os sucessos dos alunos finlandeses em exames internacionais como algo a ser perseguido em suas realidades domésticas. Anualmente, centenas de profissionais da educação desembarcam na Finlândia ou participam de cursos de capacitação a distância para “aprender” como a educação finlandesa funciona e “copiar” seus segredos em suas respectivas redes de ensino.

Há uma crença, estimulada por burocratas da educação, de que o chamado “modelo finlandês” seria uma fórmula quase mágica que os finlandeses são generosos o suficiente para compartilhar com os estrangeiros que os visitam. Artigos de jornal, noticiários televisivos, sites de internet, autoridades governamentais mal informadas, todos reforçam essa noção de que os finlandeses estão sentados em uma mina de ouro e, talvez inocentemente, estão dispostos a permitir que todos explorem seus tesouros.

Essa visão quase mística desaparece quando sentamos para conversar com um educador finlandês. Não há truques mágicos, nem fórmula secreta, tampouco conselhos de autoajuda: o mérito todo recai sobre os avanços sociais do povo finlandês como um todo. O crescimento da Finlândia para o status de um país exemplar é um fenômeno bastante recente. É fácil identificar, até meados do século XX, as origens rurais daquele país nórdico. Após sucessivas invasões de suecos e russos, a industrialização se estabeleceu e o país investiu na educação pública como ferramenta para o seu crescimento social e econômico. A educação é vista como “projeto para o país” e não como apenas um plano ou uma promessa de um governo em particular.

Adotando políticas agressivas de bem-estar social muito próximas das encontradas em seus vizinhos escandinavos e investindo alto em inovação e empreendedorismo, a Finlândia ostenta, no século XXI, um dos melhores índices de desenvolvimento humano (IDH), de acordo com levantamentos feitos pela ONU. A educação é apenas a ponta de uma realidade muito mais ampla e complexa que ostenta estatísticas invejáveis em quesitos como inovação e ambiente de negócios. A Finlândia hoje, segundo dados da OCDE (2014), está entre os países com o maior número de registro de patentes do mundo. Esse conjunto, para nossa infelicidade, não é tão facilmente exportável como seriam algumas sábias palavras motivacionais ou dicas de atividades didáticas para aprimorarmos nossas aulas.

Ao chegar à Finlândia, um desânimo recai sobre os enviados estrangeiros mais desavisados que visitam, em vão, escolas e universidades em busca dos segredos que irão exportar. Pior talvez seja a incansável boa vontade dos finlandeses de abrir suas salas de aula e disponibilizar suas autoridades educacionais para serem inquiridas pelos visitantes. A Finlândia, um dos últimos países do norte da Europa a se industrializar, tem uma população etnicamente homogênea e seu idioma principal, o finlandês, surgiu isolado das principais famílias linguísticas europeias. Toda a atenção e as visitas que os finlandeses têm recebido são bem-vindas, pois contribuem para a internacionalização do país, que tem os menores percentuais de imigração e diversidade étnica quando comparados com seus vizinhos escandinavos.

Dizer que o modelo educacional finlandês é excelente por causa dos seus resultados no PISA (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), organizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), deve ser encarado como um reducionismo. A educação finlandesa nunca se propôs a ter bons resultados nesses exames e os próprios finlandeses se surpreenderam quando foram alçados ao pódio em algumas edições da prova. Desde então, os finlandeses continuam não direcionando sua educação de modo a permanecer no topo do ranking daquela avaliação.

Alguns países asiáticos, por outro lado, passaram a devotar seus programas de ensino para galgar bons resultados nas últimas edições do PISA. Esses países, recentemente, suplantaram os finlandeses quantitativamente no exame, baseando sua educação na repetição massiva de questões similares às propostas na avaliação internacional. Entretanto, qualitativamente, a educação do país nórdico continua sendo a referência a que devemos almejar no Brasil, pelos motivos que exporei mais adiante neste trabalho.

O resultado dos alunos finlandeses no PISA caiu algumas posições nas últimas edições, embora ainda estejam entre os dez melhores do mundo. O sistema educacional que ofertam gratuitamente aos seus jovens apresenta resultados invejáveis: há grande preocupação com a qualidade do ensino em todas as regiões do país, da cosmopolita capital Helsinki até as pequenas vilas que pontuam o norte da Lapônia. A noção finlandesa de igualdade social defende que todos os alunos tenham acesso às mesmas oportunidades na escola, independentemente de onde estudem no seu território.

Esperar que os finlandeses sustentassem seus bons resultados no PISA em todas as edições do exame parece ser uma preocupação apenas para os países estrangeiros. Afinal, pautar a educação escolar em exames padronizados contraria os princípios do modelo finlandês: os alunos são preparados pela escola para atuar de acordo com suas necessidades na vida real e não para atender ao que uma banca internacional entende como sendo necessário para os jovens em determinada faixa etária.

As soluções prontas e rotuladas como modelo finlandês, cada vez mais difundidas em palestras e publicações ao redor do mundo, dificilmente atenderão as necessidades no ensino público brasileiro. Entretanto, quando conhecemos a realidade educacional finlandesa in situ, desvendamos que o seu maior potencial de contribuição à educação brasileira não advém do que eles se sentem preparados para vender, mas do que eles consideram tão corriqueiro que não valorizam o suficiente para mostrar.

Atualmente, o país nórdico tem um intercâmbio crescente de docentes brasileiros em programas de capacitação para o magistério da educação básica e profissionalizante. Duas edições do programa Professores para o Futuro, promovido pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC/MEC), com o apoio do CNPq, contemplaram com cursos de formação docente, em universidades finlandesas, mais de três dezenas de professores brasileiros dos Institutos Federais de Educação Básica, Técnica e Tecnológica (EBTT).

O magistério na Finlândia é uma profissão socialmente prestigiada, e a seleção para o ingresso nos cursos de licenciatura é bastante concorrida. Uma vez docente, o profissional finlandês terá uma autonomia de atuação muito maior do que a geralmente atribuída aos docentes brasileiros. Os cursos de licenciatura são muito valorizados e, por isso, professores que atuam em escolas de ensino médio profissionalizante e cuja formação superior não ensejou o título de licenciado, como engenheiros, por exemplo, também precisam lograr aprovação em um curso especial de licenciatura chamado de treinamento para a educação vocacional (o ensino vocacional equivale ao ensino médio profissionalizante brasileiro) (cf. AEDEE, 2014).

O ensino público que queremos: contribuições da Finlândia

Qualquer trabalho no campo da educação comparativa deve considerar as peculiaridades de cada país envolvido, de modo a apresentar com mais acurácia os elementos presentes na organização social, cultural e econômica de um país que podem ter influência sobre suas iniciativas educacionais. O apoio do governo e da população a iniciativas que buscam mudanças significativas em paradigmas educacionais é fundamental para promover inovações e melhorias duradouras em sistemas de ensino público.

Uma discussão de modelos educacionais sempre deve encorajar uma avaliação dos objetivos da educação em uma comunidade. Professores, por vezes, acreditam que a educação seria um fim em si mesma, ou seja, o objetivo dos nossos alunos seria receber a educação que oferecemos. Entretanto, seria mais apropriado adotar a crença de que a educação é apenas um meio pelo qual o aluno chegará a um objetivo pessoal próprio: nós educamos porque a educação é necessária para que os novos conhecimentos a que o aluno é exposto lhe permitam identificar ou modificar seus objetivos pessoais e profissionais ao longo de se seus anos de formação.

A forma como o planejamento curricular costuma ser desenvolvido em nossas escolas públicas parece pressupor que os professores são os responsáveis por criar as prioridades que seus alunos devem considerar importantes. Em geral, na primeira aula de uma disciplina, o professor informa aos alunos tudo o que eles precisam fazer para conseguir uma média para a sua aprovação. No modelo finlandês, por outro lado, o professor pergunta o que os alunos desejam saber dentro de determinado curso e o que os alunos gostariam de apresentar como forma de avaliação final.

Nossos programas de ensino no Brasil não costumam ter espaço para a discussão com os alunos a respeito dos conteúdos dos cursos, das formas de avaliação dos estudantes e, muito menos, dos métodos e estratégias de ensino que serão adotadas pelo docente. Confunde-se, muitas vezes, esse distanciamento dos alunos em relação ao planejamento com “autonomia docente” quando, na realidade, a autonomia deveria ser mais bem compartilhada entre professores e alunos: sem a autonomia discente desde os primeiros anos da formação escolar, como poderemos esperar que nossos alunos despertem seu senso de responsabilidade e sua motivação intrínseca em relação ao seu rendimento acadêmico e ao seu próprio futuro como cidadãos e como profissionais?

Interessante notar que as escolas brasileiras estão acostumadas a ter seus alunos se organizando em grêmios estudantis e, por vezes, até permitem que os alunos atuem sobre o espaço concreto da escola, exibindo seus trabalhos em murais ao redor da instituição ou mesmo permitindo que os alunos se expressem artisticamente com pinturas e desenhos em paredes e muros.

Do mesmo modo, é comum, em um número crescente de escolas, defender a participação dos alunos em decisões coletivas sobre a gestão escolar e a administração de sua instituição (em diversas, por exemplo, os alunos têm o direito assegurado de votar em cargos de direção).

Contudo, causa estranheza nesse contexto que dificilmente um aluno teria o direito a voz ativa para solicitar que um professor modificasse sua forma de lecionar ou o currículo de uma disciplina ou, inclusive, que determinado tipo de avaliação fosse aplicado para aferir o seu rendimento em um período escolar. Muitos professores certamente já possuem suas iniciativas individuais para integrar a voz de seus alunos ao seu próprio plano de curso, mas esta ainda não é a regra predominante, pois um grande contingente de docentes ainda opta por centralizar as decisões a respeito da condução de sua disciplina.

A cada ano, várias centenas de professores são diplomados no Brasil sob o paradigma de que lecionar é a função do professor na sala de aula. Os estudantes são os responsáveis por uma segunda etapa nesse processo antiquado: estudar o que lhes foi apresentado em sala. Nosso sistema escolar é baseado em conteúdos, matérias, conhecimentos, por vezes sem qualquer utilidade prática, mas que devem ser absorvidos pelos discentes em longas horas de estudo. Alunos que não sejam capazes de reproduzir de forma correta os conteúdos a que foram apresentados serão reprovados para que façam o mesmo ciclo uma segunda vez.

A distância entre os cursos de licenciatura nas universidades e os desafios concretos que a vivência em sala de aula na escola pública de educação básica nos apresenta faz com que o ensino superior, às vezes, se torne excessivamente teórico e idealizado. Os alunos de cursos de licenciatura ainda são formados em um modelo curricular organizado em uma progressão vertical do conhecimento, com cursos identificados por numerais crescentes, por vezes seguindo uma estrita ordem cronológica, dentro dos limites quase impermeáveis de cada disciplina (que repetem a estrutura segmentada de departamentos da própria organização dos funcionários nas instituições). O aluno universitário é capaz de, desde o primeiro dia de aula, olhar adiante e enxergar como será o resto de sua vida acadêmica naquela instituição. O seu percurso educacional já fora organizado antes e independentemente do seu ingresso naquele curso. Mudanças ocorrerão dependendo mais do estilo individual de cada professor do que de intervenções dos alunos a respeito do que já está previsto para eles no programa. Seria utópico pensar que esses futuros professores optariam por um modelo diferente quando tivessem que planejar suas próprias disciplinas.

Por essa ótica, seria correto afirmar que o modelo atual da educação pública brasileira é um fracasso irremediável? Não. Nosso modelo educacional público tem sido capaz de garantir alguma educação a uma grande parcela da população bastante heterogênea do nosso país. Contudo, o percentual de alunos “deixados para trás”, desistentes ou faltosos em excesso, não é desprezível e o país precisa de um número crescente de trabalhadores para continuar o seu desenvolvimento social, econômico e industrial. A questão que devemos considerar para a próxima década é como educar nossos jovens em escolas públicas com um mínimo de desistências e de modo que eles sejam capazes de assumir empregos cada vez mais qualificados e, por conseguinte, mais bem remunerados.

O sistema educacional finlandês já superou os dias difíceis em que o país era uma economia agrícola devastada pela Segunda Guerra Mundial. Hoje, a Finlândia tem uma população de quase cinco milhões e meio de pessoas e não pode se permitir não educar uma parcela dessa pequena população: toda a mão de obra será necessária no futuro. O incentivo ao empreendedorismo também é bastante difundido desde o ensino básico, como uma ferramenta para a criação de empregos que absorvam a mão de obra qualificada que as escolas devem preparar. Essa é uma relação importante para o desenvolvimento econômico finlandês.

Com esse objetivo, a Finlândia experimentou diferentes enfoques para a educação até começar a sua mais perceptível reforma educacional, na década de 1980. Gradativamente, a educação finlandesa incorporou uma combinação eclética de métodos que remodelaram profundamente a sua filosofia do ensino.

Para entender como os finlandeses abordam a educação, é importante mudar o nosso vocabulário desde o início: os professores na Finlândia nos corrigiriam se disséssemos que “ensinamos nossos alunos a resolver problemas” ou “os estudantes aprenderam muito de mim na aula”. Aqui começa uma significativa mudança de paradigma: a palavra “professor” (e seu equivalente em inglês e em finlandês) oculta uma referência a um ato quase impositivo, como aquele que “professa” unilateralmente; por isso, já fora substituída (principalmente em países de influência anglófona) por “facilitador”. As escolas finlandesas depuraram essa nomenclatura ainda mais e denominam seus docentes “conselheiros” ou “coaches” (líderes).

Muito da inovação pedagógica finlandesa surge da interação entre docentes preparados para lidar criativamente com os desafios propostos pela rotina escolar, aliados a discentes proativos e interessados em discutir sua própria aprendizagem, em um ambiente escolar propício à experimentação e com programas de curso bastante flexíveis.

Os estudantes finlandeses aprendem, desde o início da escola primária, que não haverá aprendizagem a menos que eles estejam engajados a aprender por conta própria: não é função do professor fazer com que os estudantes aprendam. Os finlandeses entendem a importância de assegurar certos hábitos desde muito cedo na vida dos alunos e talvez parte do sucesso de seu modelo educacional esteja calcado nessa atribuição quase precoce de responsabilidade aos alunos. Afinal, a educação é uma questão de construção de hábitos: os estudantes que estão iniciando sua vida escolar não possuem preconceitos à inovação metodológica ou hábitos ruins fossilizados com os quais os educadores precisam lidar de antemão. Os alunos costumam ser bastante receptivos à experimentação com diferentes estratégias de ensino e muito suscetíveis à consolidação de bons hábitos educacionais.

O sistema finlandês é contrário à ideia de “transferência de conhecimento” do professor para os alunos; poderíamos resumir este ponto da divergência entre os modelos finlandês e o tradicional com uma comparação bastante generalista: no modelo mais tradicional, os professores usam o tempo em sala de aula para “falar” sobre o conhecimento que já possuem diante de uma audiência passiva, procurando transferir para a turma o vocabulário e a conceituação teórica que farão os alunos capazes de reproduzir aquele conhecimento mais adiante em uma avaliação. Os professores finlandeses, por seu lado, procuram “discutir” o conhecimento com os alunos. Desse modo, o conteúdo surge nas discussões envolvendo as leituras preparatórias dos alunos e a orientação discreta do docente, que elaborará estímulos para incentivar a participação da turma nas atividades de sala de aula.

Na Finlândia, assim como costuma ocorrer no Brasil, as famílias dos estudantes são sempre encorajadas a participar do processo educacional de seus filhos. Os responsáveis pelos estudantes podem se engajar por meio de reuniões regulares com os professores e auxiliando a escola a lidar com eventuais casos de mau comportamento, de absenteísmo, de desrespeito às normas da instituição e de baixa participação em sala de aula. As famílias são orientadas, desde o primeiro contato com as escolas, que a responsabilidade de educar é compartilhada por ambos e que determinadas questões são mais afetas ao âmbito doméstico dos jovens e, portanto, devem ser resolvidas pelos responsáveis legais pelos estudantes.

Há uma forte cultura de confiança na instituição escolar na Finlândia, e a sociedade acredita na capacidade de seus docentes para orientar os estudantes. O governo e as direções escolares, em seu turno, também confiam muito em seus professores, pois sabem o rigor com que foram preparados para exercer suas profissões. Reuniões regulares entre os docentes e os dirigentes escolares são oportunidades para avaliar o trabalho que desenvolvem e, geralmente, são suficientes para municiar a direção de argumentos em relação à credibilidade e ao trabalho desempenhado pelos professores. Não raramente ocorrem questionamentos de familiares dos alunos, por vezes insatisfeitos com determinadas posturas docentes ou formas de trabalho da instituição. Os diretores das escolas também têm reuniões regulares com os superintendentes regionais responsáveis pela educação nos municípios. Nessas reuniões é apresentado o trabalho feito em cada instituição da rede e as demandas de recursos eventualmente necessárias para o bom andamento das suas atividades acadêmicas. Importante destacar que, para concorrer a funções de direção e supervisão educacional, é exigido que o candidato seja licenciado para o magistério.

O visitante estrangeiro costuma se impressionar com a cultura muito forte de confiança mútua que existe entre os profissionais responsáveis pela educação na Finlândia. Se o professor detém uma posição de ensino, significa que ele é bem qualificado e não cabem muitos questionamentos ao seu desempenho profissional que porventura pudessem limitar ou desestimular sua autonomia didático-pedagógica. O trabalho de um docente é avaliado por seus pares e por seus superiores hierárquicos ao longo de sua carreira. Contudo, são poucos os casos de punições contra docentes por mau desempenho profissional: a maioria das inconformidades surge por descumprimento de itens bastante objetivos, como ausências injustificadas ou desrespeito a normas institucionais.

Faz-se necessário destacar que a autonomia docente na Finlândia é parte da cultura nacional. Essa autonomia permite que cada docente ponha em prática suas potencialidades no momento de organizar suas atividades em sala de aula. As famílias entendem e apreciam que professores diferentes tenham suas formas de trabalho peculiares que refletem os rumos de suas capacitações profissionais. Desse modo, ao invés de tentar modificar o trabalho dos professores em nome de uma padronização no ensino, por vezes defendida no Brasil, as famílias encorajam que seus jovens experimentem os diferentes estilos de cada docente e aproveitem o que de melhor adquirirem com eles para o seu amadurecimento discente. É o reconhecimento maior de que o ensino não é uma ciência exata, mas uma ciência de pessoas que se beneficia das contribuições que cada um é capaz de fazer a partir de suas experiências pessoais e profissionais.

Os professores e a direção de cada escola têm autonomia para escrever o currículo que será observado no planejamento das aulas. O governo central fornece apenas diretrizes muito genéricas de conteúdos curriculares mínimos e serão os professores que, cientes de sua realidade local, elaborarão a divisão dos conteúdos por ano de estudo. Os professores finlandeses não almejam elaborar currículos complexos e repletos de conteúdos e conceitos elencados sob uma ótica propedêutica. Ao contrário, os currículos finlandeses são bastante enxutos, pois incluem apenas o que os alunos precisarão aprender para o seu uso imediato. Ainda assim, os docentes possuem autonomia para restringir mais o programa de determinada turma caso percebam que seus alunos não atingirão os objetivos propostos para o restante da escola. Essa personalização do currículo ao nível da turma permite que o professor garanta que, mesmo que o programa original não tenha sido cumprido, as etapas realizadas foram significativamente aprendidas pelos alunos. Conteúdos não abordados em um ano letivo poderão ser deixados para o ano letivo seguinte, pois o currículo das séries posteriores sempre permitirá adaptações a priori para adicionar conhecimentos que não foram incluídos onde eram originalmente previstos.

Os professores finlandeses estão rapidamente abandonando a prática de aulas expositivas, e os alunos vêm se acostumando a assumir mais responsabilidades na sala de aula. A promoção da autonomia e da independência discente é bastante valorizada pelos educadores naquele país, que buscam sempre apresentar novos conteúdos por meio de estímulos à curiosidade e à investigação dos alunos, que são geralmente organizados em diferentes arranjos para realizar as tarefas propostas, desde duplas até pequenos grupos de discussão. Menos frequentemente, os alunos trabalham sozinhos durante toda a duração de uma atividade. As salas de aula das escolas mais novas costumam acomodar diferentes organizações espaciais da mobília, que pode ser rapidamente reorganizada em pequenos grupos, em semicírculos; em alguns casos, é possível remover as divisórias entre as salas de aula e transformar duas ou mais salas em um auditório ou em espaço para uma atividade coletiva.

O estímulo à pesquisa foi a forma encontrada pelos finlandeses para centrar no aluno a tarefa de conduzir as aulas. Se analisarmos a forma como nos relacionamos com o conhecimento em nossa época, perceberemos que a internet sepultou a necessidade de extensos currículos conteudistas e inaugurou uma era de currículos baseados em habilidades. Mais importante do que obrigar o aluno a ter cadernos repletos de anotações, que serão esquecidas e descartadas quando o ano letivo terminar, é ensinar o aluno a minerar as informações que já estão disponíveis de diferentes formas e em diferentes espaços na internet. O conhecimento acessível hoje a partir de nossos celulares suplanta o conteúdo de qualquer biblioteca escolar; atualmente, se um adulto precisa aprender algo novo, é quase certo que ele recorrerá à internet, ao invés de se deslocar a uma biblioteca para procurar a informação. Sendo assim, reconhecendo que todas as informações estão disponíveis online, os professores finlandeses se esforçam para ensinar seus alunos a identificar essas informações fazendo as perguntas corretas em ferramentas de busca, organizando e filtrando os resultados obtidos e agrupando o conhecimento de diferentes fontes para produzir uma resposta completa para sua pergunta inicial. A internet e os celulares não são afastados do convívio diário dos alunos finlandeses; ao contrário, são ferramentas que os jovens precisam aprender a empregar corretamente dentro do espaço escolar.

Aos olhos de um educador estrangeiro, a condução das aulas na Finlândia pode causar estranhamento. Após um estímulo inicial, um tema de pesquisa é subdividido entre grupos, por exemplo; os alunos desenvolvem a pesquisa usando os recursos disponibilizados pelo docente (como computadores, softwares educativos, livros, por exemplo). Em seguida, os grupos se reúnem e apresentam entre si os resultados parciais sob sua responsabilidade, juntando os diferentes aspectos pesquisados do assunto da aula. Na sequência, a turma poderá prosseguir para um debate mediado pelo professor ou os alunos irão individualmente, por exemplo, produzir um texto sobre o conteúdo discutido.

Os alunos têm liberdade para pesquisar, discutir e construir entre si os novos conhecimentos cujos estímulos iniciais foram propostos pelos docentes, que permanecem atentos à discussão e interferem sempre que for necessário reorientar os esforços dos alunos ou introduzir algum comentário pertinente ao debate. Os professores, em geral, evitam interferir nessas tarefas em grupo para que os alunos não se acostumem a ter o aval docente a cada etapa de seu trabalho. Em sala, os docentes adotam uma posição mais colaborativa e menos dirigista. Muitas atividades iniciadas presencialmente em sala de aula são complementadas na internet com páginas educativas selecionadas pelo docente para aprofundamento do tema ou para alguma consolidação do conhecimento que se faça necessária.

Os estudantes são, desde muito cedo, acostumados a essa rotina de sala de aula. Por isso, aprendem a trabalhar em grupo e a se organizar para cumprir as tarefas propostas no tempo previsto da aula. Alunos ocupados com atividades têm menos problemas de indisciplina em sala.

Novamente essa dinâmica seria inviabilizada caso os professores fossem obrigados a cumprir seus programas de forma padronizada. Afinal, cada turma terá resultados diferentes em suas tarefas e isso é o esperado pelo sistema daquele país. Os docentes finlandeses respeitam a noção de que mesmo um aprendizado parcial é melhor do que nenhum aprendizado e se o aluno for capaz de, em outra ocasião, desenvolver autonomamente uma parte do caminho até a aquisição daquele conhecimento, ele terá as ferramentas para aprender sozinho o que não conseguiu durante seus anos escolares.

Importante destacar que não se espera que um educador finlandês lecione os conteúdos indiscriminadamente para todos os estudantes em uma mesma turma: ele precisa conhecer seus alunos para poder atendê-los em seus potenciais e em suas dificuldades individuais. O docente possui a responsabilidade e a autonomia para customizar, sempre que necessário, um plano individual de aprendizagem para um (ou vários) de seus alunos, cuja finalidade será aproveitar as potencialidades desses jovens ou desenvolver suas limitações. O docente precisa ter a capacidade de identificar e fazer os encaminhamentos necessários para que todos os alunos tenham a oportunidade (e não a garantia) de um desempenho similar.

Os alunos finlandeses estão acostumados a avaliar seu próprio rendimento na escola. A autoavaliação deles é respeitada pelos professores, mesmo quando for mais positiva do que a esperada pelo docente. Apenas se o aluno não for capaz de se avaliar criticamente é que o professor poderá sugerir que o estudante reconsidere determinados aspectos do seu rendimento sem, contudo, indicar que ele precise diminuir a nota ou o grau que se atribuiu. Geralmente, o professor usará o rendimento médio da turma como parâmetro de comparação e incentivará que o aluno se esforce para atingir determinados objetivos já superados pelos outros estudantes. Caso o professor perceba que o baixo rendimento de um aluno se deve a dificuldades específicas de aprendizagem, ele será encaminhado para aulas de reforço extraclasse ou para ser acompanhado por outro professor treinado para atuar na Educação Especial.

As avaliações discentes na Finlândia privilegiam o processo (como os estudantes fizeram) e não apenas o produto (o que eles fizeram), pois há vezes em que percalços menores comprometem o resultado final dos alunos, mesmo após terem tido um desempenho exemplar. Os docentes sempre encorajam os estudantes a identificar seus próprios erros no processo de aprendizagem, pois isso permitirá que os alunos se conscientizem a respeito de suas dificuldades e em quais aspectos precisam se empenhar mais para alcançar seus objetivos. A avaliação também é usada como uma forma de auxiliar no desenvolvimento da personalidade e da autoestima do estudante, pois os docentes aproveitam a oportunidade de avaliar os alunos para encorajá-los a prosseguir em seus estudos: para isso, há uma prática comum entre os professores, de sempre identificar algum aspecto positivo no trabalho dos alunos para ressaltar com um elogio, de modo a dar uma sensação de cumprimento de, ao menos, uma etapa do processo de aprendizagem.

Cada aluno finlandês possui uma ficha individual de avaliação, onde estão registrados os seus progressos e as suas dificuldades. O professor poderá negociar individualmente com cada estudante quais objetivos são realistas, na expectativa do aluno, para serem alcançados em determinada disciplina. Os objetivos com que o jovem concordar em se empenhar poderão ser atitudinais, como realizar as tarefas de casa, ou cognitivos, como se comprometer a estudar mais determinado assunto. O aluno também poderá se comprometer a fazer pelo menos uma contribuição significativa durante discussões em aula ou mesmo não solicitar para se ausentar de sala com muita frequência para ir ao banheiro ou ao refeitório. Os estudantes têm necessidades individuais de desenvolvimento que essa abordagem pretende identificar e aprimorar.

Qualquer objetivo aceito pelo docente e definido com o aluno poderá ser considerado para a avaliação do discente, e essas fichas individuais de progresso serão os balizadores do aproveitamento do aluno durante um período letivo. Caberá ao professor acompanhar a evolução dos alunos nos objetivos acordados para cada disciplina e, sempre que oportuno, encorajar o aluno a esperar mais de si mesmo, ampliando os objetivos previstos.

Pela experiência relatada por diversos docentes finlandeses, quando se acostumam com essa forma de avaliação desde cedo, os alunos aprendem que o importante é atender aos objetivos que eles assumem com eles mesmos (sob a supervisão dos docentes), e não meramente obter uma determinada nota que seria esperada deles. Um bom aluno de esportes poderá se comprometer a participar de mais uma modalidade durante um período letivo, enquanto outro aluno menos destacado em atividades físicas poderá ter, comparativamente, um progresso muito maior se assumir o compromisso de participar de uma única modalidade sem perder nenhum dos treinos semanais.

O docente atua como orientador dessas metas individuais, sem perder de vista os objetivos gerais de sua disciplina no período letivo. Contudo, ao invés de tentar homogeneizar o aprendizado dos estudantes em torno de um currículo comum, o professor reconhecerá a heterogeneidade de seus alunos e trabalhará com ela. O acompanhamento desse trabalho permitirá ao docente uma avaliação tanto qualitativa como quantitativa do desempenho de seus alunos ao longo de todo o processo, possibilitando que sejam feitas intervenções e encaminhamentos sempre que for necessário corrigir o andamento de determinados alunos.

Ao término de um período letivo, as fichas individuais e os resultados de outras modalidades de exame propostas pelos docentes serão a avaliação final dos alunos. Dificilmente um aluno terá de refazer uma série, pois a reprovação foi praticamente abolida na Finlândia. Metas que não forem atingidas poderão ser levadas para a ficha do aluno no ano letivo seguinte e, pela sua ficha individual, o estudante verifica regularmente quais objetivos estão (ou não) sendo cumpridos por ele. Com isso, não é apenas o docente que possui recursos para o acompanhamento do progresso de seus alunos: o próprio discente amadurece seu senso de responsabilidade quando é capaz de entender e atuar sobre o que é esperado dele.

O fracasso em cumprir as metas não é sancionado com a reprovação, pois esse recurso não garante que o aluno perseguirá os objetivos não alcançados com mais afinco ao refazer a série. Ao contrário, a reprovação poderá ser um fator de desmotivação para o estudante. O progresso global do aluno é avaliado ao final de ciclos de estudo, que seriam equivalentes aos nossos ensino infantil, ensino fundamental e ensino médio. Ao término de cada um desses três ciclos, os objetivos mais amplos do segmento serão avaliados como tendo sido atendidos ou não (ensejando atividades individualizadas de reforço). As avaliações parciais em cada série escolar, anuais ou bimestrais, costumam ser consideradas como diagnósticas, pois os professores finlandeses acreditam que seus alunos ainda poderão se recuperar nos anos subsequentes antes do término de determinado ciclo.

Para os finlandeses, essa é a solução mais coerente para responder às necessidades de sua sociedade: não é do interesse do país reter alunos que dominem um mínimo de conhecimentos necessários para ocupar alguma atividade no mercado de trabalho. Não é exigido que um aluno seja aprovado com louvor nas ciências duras, por exemplo, para que ele exerça uma profissão e contribua para sua sociedade.

Esse planejamento individualizado pode soar utópico na realidade brasileira, pois em geral esperamos que nossos alunos compartilhem uma base comum de conhecimentos mínimos ao final de um período letivo. Na Finlândia, o mais importante é que cada aluno atinja, ao término de um ano letivo, o seu potencial individual, que poderá ser uma pequena fração dos objetivos globais atingidos por sua turma, que na média tem entre 20 e 30 alunos. Essa abordagem parte do pressuposto de que uma aprendizagem limitada, porém efetiva, é o mais importante perante a sociedade.

Diferentemente do conceito de inclusão difundido no Brasil, no qual os alunos com dificuldades diferentes compartilham uma sala de aula comum em nome da sua integração e socialização, os finlandeses acham natural separar os alunos em turmas diferenciadas para que suas necessidades individuais sejam mais bem trabalhadas. Nosso receio de que, com esse trabalho, estaríamos fomentando a discriminação entre alunos se concretizaria se o critério para a diferenciação de turmas fosse entre fortes e fracos, bons e ruins. Por outro lado, a divisão finlandesa é mais natural, pois diferencia alunos submetidos a um trabalho X, por exemplo, e alunos submetidos a um outro trabalho Y. X e Y seriam abordagens diferentes e os alunos poderiam solicitar sua mudança de uma metodologia para a outra se acreditassem que seriam mais bem atendidos com a outra abordagem. Inclusão, naquela ótica, é permitir que os alunos tenham oportunidades customizadas, em salas especiais, para progredir em sua aprendizagem. Os finlandeses não concordam que um aluno deixe a escola sem demonstrar aprendizagem suficiente de acordo com suas habilidades individuais. Para implementar o trabalho que considerarem necessário para auxiliar os alunos, docentes e instituição têm o apoio das famílias e do governo.

Um dos últimos princípios de destaque, nos limites de aprofundamento deste trabalho, do chamado “modelo finlandês” seria acostumar o aluno com o conceito de aprendizagem continuada. Isso significa que o estudante poderá prosseguir com o seu aprendizado mesmo após a conclusão do seu ciclo de estudos escolares. Novamente, o governo finlandês tem papel importante nesse processo, pois oferece gratuitamente cursos dos mais diversos assuntos e níveis de estudo para a reciclagem ou a complementação de estudos de indivíduos que já concluíram seu ensino secundário ou superior.

Conclusão

Este trabalho não se propõe a apresentar a realidade educacional na Finlândia como uma verdade que deva ser adotada na educação pública no Brasil sem uma criteriosa revisão crítica dos seus princípios norteadores. Os finlandeses demoraram mais de uma década para chegar ao patamar educacional do qual se orgulham hoje, e muitas soluções adotadas por eles poderiam responder a questionamentos que já nos fazemos aqui em nosso país.

Como fizeram os finlandeses, devemos lembrar que a escola pública pertence à sociedade e que os papéis que desempenhamos em nossas instituições devem almejar ao progresso dela. Em uma análise objetiva, a finalidade da vida escolar é preparar o indivíduo para a vida em sociedade, que, invariavelmente, envolverá a sua participação no mercado de trabalho com diferentes níveis de especialização.

O ensino público socialmente mais valorizado será a consequência de conseguir mostrar aos estudantes que a escola dialoga com suas preocupações e atua em seu benefício, assegurando-se de que seus concluintes estejam bem preparados para ingressar no mercado de trabalho ou em um curso superior. Nossos alunos buscam uma transição cada vez mais contígua entre o que a escola lhes oferece e os recursos que o mundo lhes disponibiliza, como a internet e a tecnologia cada vez mais presente em nossos celulares, televisores e, mesmo eletrodomésticos.

Um resumo do “modelo finlandês” que pudesse ser imediatamente aplicado no Brasil não seria possível. Contudo, se observarmos as formas de trabalho propostas pelos finlandeses, introdutoriamente descritas ao longo deste trabalho, perceberemos que se agrupam em torno de incentivos a quatro habilidades fundamentais que os estudantes devem desenvolver para o exercício da cidadania e de uma profissão no século XXI: habilidades de comunicação, colaboração, pensamento crítico e criatividade. Trabalhar desde cedo com essas habilidades reforça o vínculo entre a escola básica e a vida adulta dos alunos. Paralelamente, o modelo educacional finlandês incentiva uma cultura de autonomia do estudante e de autodidatismo, fazendo com que os jovens se acostumem com a ideia de que a aprendizagem depende mais deles mesmos do que de uma escola ou de professores.

A Finlândia nos apresenta uma filosofia bastante diversa daquela que estamos acostumados nas áreas de planejamento curricular e de avaliação discente. Esses talvez sejam os pontos mais críticos no atual sistema educacional brasileiro e no qual gestores e professores podem se inspirar no sucesso finlandês para propor mais do que uma nova Lei de Diretrizes e Bases, mas um novo ensino público, fundado em princípios mais contemporâneos, em conteúdos mais significativos e em avaliações mais justas.

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O autor incentiva o contato de pesquisadores interessados em desenvolver colaborações: mensagens devem ser enviadas para rmiguez@fulbrightmail.org.

Publicado em 25 de outubro de 2016

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