A origem do preconceito linguístico

Laudicéia Santana de Andrade da Silva

Mestranda do Mestrado Profissional em Letras (UERJ/FFP), professora de Língua Portuguesa e Inglesa da rede estadual de ensino

Introdução

Uma análise superficial do termo preconceito linguístico sugere que sua origem pode ter acontecido no uso da própria língua, ou seja, a partir da interação verbal entre um escritor/falante com um leitor/ouvinte.

Historicamente, até o período do Iluminismo, o conceito de preconceito não carregava a conotação negativa que sugere nos dias de hoje. Mariani, ao citar Gadamer, declara que “preconceito significa um julgamento que é formulado antes que todos os elementos que determinam uma situação tenham sido examinados” (Mariani, 2008, p. 29).

Desse modo, esse conceito não era associado a um falso julgamento, mas sim a um julgamento infundado, ou seja, a um conceito antecipado, sem reflexão prévia. Na perspectiva iluminista, para que um julgamento fosse reconhecido como tal, era necessário “ter havido uma base, uma justificativa metodológica” (Mariani, 2008, p. 29).

Os teóricos iluministas classificavam o preconceito em dois tipos: o primeiro referia-se ao equívoco cometido devido à autoridade humana; o segundo relaciona-se ao excesso de pressa. Tal diferenciação sugere as formas como o preconceito pode se originar nos indivíduos.

O preconceito gerado devido à autoridade relaciona-se ao fato de o agente ou indivíduo investido de poder impor ao outro suas próprias razões e fundamentos, exercendo, assim, poder simbólico sobre o outro. Já o gerado pelo excesso de pressa é causado pelo uso apenas da própria razão na avaliação/julgamento de algum preceito.

Sendo assim, é possível afirmar que o preconceito surge da interação humana. Essa afirmação também é válida para o preconceito linguístico. Na interação, o indivíduo avalia a desempenho do outro de acordo com os critérios estabelecidos pelas diferentes instâncias sociais e relações de poder.

Com relação ao preconceito linguístico, há a confluência das duas classificações dos critérios apresentados pelos iluministas: a causada pela autoridade humana e a originada devido ao excesso de pressa. Na verdade, grande parte do preconceito linguístico é motivada pela falta de reflexão. Na próxima seção, apresentaremos a análise de Bagno (2007), que apresenta os principais mitos que fomentam o preconceito linguístico. Todos os mitos relacionam-se entre si e, como já citado, são causados pela falta de conhecimento acerca dos fenômenos da língua em uso que manifestam a multiplicidade e riqueza da língua.

Mitos geradores do preconceito linguístico

Existem inúmeros mitos que contribuem para o surgimento do preconceito linguístico. Um dos principais já foi abordado: considerar que a língua equivale exatamente à gramática normativa. Outras crenças subjazem a esse mito.

Para apresentá-los, utilizaremos a sequência mitológica proposta por Bagno (2007, p. 13) em seu livro Preconceito linguístico. Segundo ele, “o preconceito linguístico fica bastante claro numa série de afirmações que já fazem parte da imagem (nega­tiva) que o brasileiro tem de si mesmo e da língua falada por aqui”. Tais declarações reforçam o sentimento de estranhamento do indivíduo contra a própria língua e, às vezes, contra si mesmo.

O pesquisador enumera oito declarações que já se tornaram lugar-comum quando o assunto é o estudo da língua. O primeiro mito se encontra na declaração “a língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”. O mito da unidade não passa de uma falácia, já que, além das diferenças encontradas nas variantes geográficas, existem também as diferenças ocasionadas pelos diferentes tipos de registros, graus de formalidade e níveis socioeconômicos. Sendo assim, apesar de a língua portuguesa ser falada ao longo do imenso território brasileiro e, por esse motivo, ser considerada um a língua que possui unidade, o idioma, ao mesmo tempo, possui formas diversas. Logo, é possível afirmar que o português possui unidade na diversidade.

O segundo preconceito, frequentemente citado pelos defensores da norma tradicional, se apoia na crença de que “o brasileiro não sabe português e que só em Portugal se fala bem o português”. Ainda hoje, passados quase dois séculos da independência, existem alguns indivíduos que persistem em afirmar que a forma correta do português é a usada em Portugal. Com isso, infere-se que os brasileiros devem aprender aquelas normas, a fim de aprender o português.

O terceiro mito de Bagno decodifica-se na afirmação “o português é muito difícil”. O alcance desse mito é comprovado, em grande parte, pelos elevados índices de reprovação na disciplina e pelas pesquisas realizadas para aferir o nível de leitura.

Para desmistificar essa crença, basta questionar o tipo de português de que se está falando. Sem dúvida alguma, se o português a que se está fazendo referência for o emaranhado de regras previstas pela gramática tradicional, não haveria dificuldade alguma em aceitar tal afirmação. Entretanto, se for o português que usamos como usuários reais e ativos da língua, não há, de maneira alguma, a possibilidade de aceitar a declaração. Se assim for, além de não ser difícil, é rico, dinâmico e diversificado. Tão diversificado que qualquer falante, a despeito da pouca idade ou escolaridade, pode se expressar com eficiência.

O quarto mito analisado por Bagno é a crença expressada pela declaração “as pessoas sem instrução falam tudo errado”. O equívoco dessa afirmação encontra-se na falta de informação acerca das diferenças entre as modalidades escrita e fala. Há muito tempo já se sabe que a fala e a escrita possuem características específicas, e, por esse motivo, são distintas entre si.

A principal diferença entre ambas as modalidades está no contexto em que elas estão inseridas. Segundo Freitas,

a língua falada está extremamente ligada ao contexto imediato e possui valiosos recursos de produção. A entonação da voz, a expressão facial do falante, as expressões demonstradas pelo ouvinte, como os gestos e a postura, fazem parte do elenco de recursos que possuem o falante e o ouvinte na produção do discurso oral. Ao mesmo tempo que a língua oral se beneficia de recursos e estratégias localmente disponíveis e avaliáveis, ela não é vantajosa no que diz respeito à grande exposição de sentimentos dos falantes e de seu interlocutor, que quase influenciam mutuamente na construção do discurso (Freitas, 1996, p. 50).

A língua escrita possui um contexto menos imediato, na qual a imagem do escritor é mais preservada, dada a possibilidade da utilização dos recursos da escrita para adequar a linguagem.

A língua escrita, ao contrário, possui recursos de produção que preservam a face do escritor. A distância existente entre ele e seu leitor possibilita a oportunidade de monitorar mais suas palavras, podendo voltar várias vezes ao texto, consultar livros e dicionários, fazer pausas, discorrer sobre um tema sem ser interrompido e usufruir de todo o conforto que essa distância de tempo e espaço existente entre ambos, escritor e leitor, pode proporcionar (Freitas, 1996, p. 50).

Além das diferenças citadas, existe ainda o grau de formalidade, que se personifica pelo registro. Em geral, associa-se a escrita à organização e a elevado grau de formalidade.
O quinto preconceito é “o lugar onde melhor se fala o português no Brasil é o Maranhão”.Os defensores dessa afirmação procuram legitimá-la com o fato de que no Maranhão a forma pronominal “tu” seguida do verbo com terminação em –s na segunda pessoa ainda é usada. Nota-se, dessa forma, que não existe fundamentação linguística para sustentar essa crença.

O sexto mito é de certa forma, desmistificado pelo quarto. Ao afirmar que o certo é falar assim porque se escreve assim, constata-se a já citada e recorrente confusão existente entre a língua escrita e a falada. Essa afirmação veicula a filosofia tradicional de ensino, que procura impor regras sem maiores reflexões. Além dos mitos citados, há ainda o que diz que “é preciso saber gramática para falar e escrever bem”. Na introdução, foi apresentada uma breve reflexão acerca dessa crença equivocada. A gramática, apesar de sistematizar as regras de funcionamento da língua, não é a língua. Há uma grande distância entre a realidade da língua em uso e a teoria gramatical.

Perini (1996, p. 13) discorre sobre a forma como os indivíduos desenvolvem a habilidade da fala. Segundo ele, da mesma forma que é possível andar sem conhecer os mecanismos físicos e motores que nos possibilitam fazê-lo, para adquirir a capacidade de falar não é necessário nenhum conhecimento técnico sobre a forma como os sons são produzidos:

Vou mostrar que qualquer falante de português possui um conhecimento implícito altamente elaborado da língua, muito embora não seja capaz de explicitar esse conhecimento. E veremos que esse conhecimento não é fruto de instrução recebida na escola, mas foi adquirido de maneira tão espontânea quanto a nossa habilidade de andar. Mesmo as pessoas que nunca estudaram gramática chegam a um conhecimento implícito perfeitamente adequado da língua. São como as pessoas que não conhecem a anatomia e fisiologia das pernas, mas que andam, dançam, nadam e pedalam sem problemas.

Por último, o autor questiona a crença na necessidade do domínio da variedade padrão como instrumento de ascensão social. Sustentar tal tese equivaleria a ratificar a filosofia das elites, que procuram impor uma norma para que seja seguida.
Ademais, conhecer as regras da gramática tradicional não garante que um indivíduo crescerá economicamente ou conseguirá boa posição social. É claro que o modelo de sociedade em que estamos inseridos, altamente baseada na cultura letrada, privilegia os indivíduos que dominam as regras da gramática;  contudo, o simples conhecimento de tais regras não constitui, por si só, a possibilidade de crescimento econômico; é necessário o atrelamento de outros fatores.

A ideologia oculta da norma culta

A existência de uma norma padrão implica, necessariamente, que outras variantes sejam desconsideradas e desprezadas, isto é, excluídas. Tal dinâmica dá origem a dois conceitos distintos: preconceito linguístico e prestígio. Ambos representam a sinalização de um julgamento social e não linguístico acerca da utilização da língua.

Desse modo, o prestígio ou os preconceitos sociais são estabelecidos socialmente. De acordo com Bagno (2007), em seu livro Nada na língua é por acaso, quanto mais próxima da norma padrão, mais prestigiada é a variedade. Os traços que sofrem maior carga de discriminação e preconceito, por sua vez, são aqueles que caracterizam a “variedade linguística de falantes com baixo ou nenhum prestígio social; esses traços são rejeitados, repelidos, ridicularizados e evitados a todo o custo pelos cidadãos que se acham (ilusoriamente) portadores da língua ‘certa’” (Bagno, 2007, p. 143).

Bagno ainda propõe um importante esclarecimento acerca dos conceitos de norma-padrão e norma culta. Segundo ele, até mesmo em provas de concursos públicos os dois conceitos são utilizados como sinônimos:

É preciso fazer uma crítica atenta dos termos que vêm sendo empregados para classificar a variação linguística do português brasileiro, com uma atenção especial à expressão “norma culta”, que é extremamente ambígua e problemática. Além do fato de se confundir o uso real da língua por parte dos falantes privilegiados da sociedade urbana (a norma culta dos linguistas) com o modelo idealizado de língua “certa” cristalizado nas gramáticas normativas (a norma padrão dos linguistas), como se faz geralmente, existe também o problema contido no uso do adjetivo “culto”. Por que chamar de culto apenas o que vem das camadas privilegiadas da população? E por que opor “culto” a “popular”, como se o povo não tivesse cultura e como se os falantes “cultos” não fizessem parte do povo? (Bagno, 2007, p. 104).

A própria terminologia utilizada para classificar a norma culta veicula uma posição ideológica que sugere que tal variedade seria revestida de uma “pretensa” superioridade. Desse modo, além da necessidade de desmistificação da sequência sugerida por Bagno, é urgente também a consciência de que a norma padrão não é falada por nenhum falante, pois ela é ideal, é o uso idealizado, ou, como classifica Bagno (2007), ideologizado. Ao mesmo tempo que é extremamente necessário distinguir a norma culta da norma padrão, já que a primeira é a variedade de apenas um segmento da sociedade, os falantes privilegiados, que não representam a totalidade dos falantes do português do Brasil.

Considerações finais

A questão do ensino de língua materna é uma discussão extremamente importante para a educação brasileira. Isso acontece não apenas pelo fato de a língua portuguesa ser um componente curricular, mas, principalmente, por ela ser um instrumento de identificação do indivíduo. É pela linguagem e sua materialização (a língua) que percebemos a identidade de uma pessoa.

Infelizmente, muitas práticas escolares têm se caracterizado pela discriminação. A princípio, o papel da escola deveria ser incluir, mas muitas vezes há mais exclusão do que inclusão para dentro dos portões da escola.

Sendo assim, nunca é demais afirmar que a escola e o corpo docente devem considerar a realidade do corpo discente e procurar realizar práticas e procedimentos que valorizem as vivências e a realidade dos alunos, a fim de que eles se sintam valorizados, tanto como indivíduos quanto como falantes da língua.

Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico - o que é, como se faz. 49ª ed. São Paulo: Loyola, 2007.

FREITAS, Vera Aparecida de Lucas. A variação estilística na linguagem de alunos da 4ª série em ambiente de contato dialetal. Dissertação (Mestrado em Linguística). Universidade de Brasília. Brasília, 1996.

MARIANI, Bethânia. Entre a evidência e o absurdo: sobre o preconceito linguístico. Cadernos de Letras da UFF - dossiê Preconceito linguístico e cânone literário, nº 36, p. 27-44, 1º sem. 2008.

PERINI, Mário A. Sofrendo a gramática - Ensaios sobre a linguagem. São Paulo: Ática, 1997.

Publicado em 22 de novembro de 2016

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