Tempo, cérebro, tecnologias

Professora Claudia Nunes

Uma cena: “Mãe entra por dentro da escola à procura de seu filho. Ninguém sabe dele, ninguém o viu. Ela está preocupada. Ele nunca fez isso. Enquanto a acalmam, alguns professores tentam conversar com colegas da turma dele para encontrar pistas. Ninguém o viu naquele dia. Mãe chora muito. Professores tensos. De repente um aluno lembra: o celular do garoto tem GPS. Depois de muitas tentativas, atravessam a rua. Lívio estava com dedos megadoloridos e muito suado. Depois que saíra de casa, o ar-condicionado da lan house tinha estourado e o jogo estava quase no fim”.

Vício. Estamos na era do vício digital. Sujeitos em formação encontraram no ambiente virtual um mundo cheio de possibilidades de ser e estar. De novo os jogos são o up do momento. Ainda assim, a geração com mais de nove anos são cérebros em formação em busca do prazer cotidiano, mesmo com a estatização do corpo e o frenesi do córtex virtual.
Na internet, há provocações intensas aos sentidos e às múltiplas conexões neuronais. E, dependendo do tempo, ritmo e repetição, as determinações genéticas podem ser influenciadas ou engatilhadas. E aí as dimensões sociais e psicológicas, principalmente, sofrem determinadas disfunções (constante e intensa reorganização da circuitaria neuronal também tem suas desvantagens). É preciso ter cuidado. Convivemos com tecnologias desde tempos imemoriais, mas nos dias de hoje, especificamente, as tecnologias midiáticas inseriram profundamente a característica velocidade em todas as dimensões humanas. A comunicação, elemento fundamental às relações entre seres vivos humanos, ganhou dimensões psicodélicas!
Comportamentos, posturas, atitudes inauguraram outras configurações na relação do sujeito com todos e/ou com ele mesmo. A primazia do prazer em ser e estar em ambiente virtual reafirmou, por exemplo, nossa capacidade de nos tornarmos viciados/de cair na rotina/e de estabelecer zonas de conforto. Com isso tornou-se frágil o argumento de que as novas tecnologias (computador, internet e suas ferramentas ou aplicativos) tornaram a geração aprendente, na escola desde a década de 1980, insípida, superficial, sem foco ou atenção. Será?
Devemos lembrar que tudo depende. Há, sim, fugacidade nas formas com que os cérebros conseguem assimilar as informações, porque essa nossa grande tecnologia natural tem tido mais elementos para descartar do que para trabalhar internamente. Ou seja, da assimilação, organização e evocação para reflexão sobre as informações acessadas (uso qualitativo da memória) há uma geração (ou gerações, já que já se fala da geração alpha = nuvens), ignorando o último item: o tempo de/para reflexão, algo que, sabemos, faz parte de uma vida saudável, inovadora, criativa e estratégica.

O que aconteceu com nosso personagem Lívio?
Ele é reflexo do montante de imersões em ambientes virtuais, em busca do lúdico, do divertimento, e este está muito relacionado a seu interesse, preferência e desejo. Lívio é puro cérebro de recompensa e, sabemos, cérebros de recompensa também trabalham com limites. Do que falamos? Emoções são fluxos químicos que nos assaltam vez por outra quando o meio ambiente ou uma situação exigem mudanças nas conexões sinápticas de maneira intensa ou não. Sempre buscamos a alegria ou todas as emoções positivas; mas já é reconhecido que o equilíbrio emocional só é estabelecido diante também das tristezas (emoções menos positivas).
As gerações mais jovens são predispostas à permanência da sensação prazerosa (a busca da autoafirmação e da autoestima tem esse princípio), aceitam e correm riscos inimagináveis e buscam uma liberdade de ação que observam nos adultos. Sendo assim, as novas gerações ignoram (por desconhecimento mesmo = falta de maturação neuronal advinda justamente das experiências diversas) determinados impeditivos (limites) necessários aos comportamentos em sociedade. Eles ignoram a força do aprendizado das emoções sem prazer, algo que só será compreendido a partir de ações familiares adequadas com o tempo. O tempo e a experiência são os grandes fiéis da balança da formação integral e saudável dos sujeitos aprendentes.
Prazer é resultado de melhor funcionamento de nosso sistema de recompensa. Somos humanos em busca de doses dopaminérgicas de autoestima, amor, solidariedade e principalmente realização de nossos interesses e desejos.
Lívio ainda está em processo.
Em nosso caso, ao lado da escola de Lívio há lan house cheia de novidades relacionadas aos artefatos tecnológicos do século XX e XXI (estímulos muito prazerosos aos sentidos desse humano), e este é o gatilho certo para aquele cérebro ávido de aprendizagens significativas, proativas e atraentes.
Lívio gosta da escola, mas o outro mundo ou outros mundos são mais animados, criativos, alegres e gestam curiosidade e atenção constante em seus sentidos, principalmente o córtex visual, porta de entrada da memória e da cognição. O processo de ‘mudar o caminho’, se desvirtuar de ‘algumas responsabilidades’ é lógico em Lívio; afinal, o que ele está fazendo de mal?
O choque de gerações sempre aconteceu. A mãe jamais entenderá a mudança de comportamento e de caminho. Ela já carrega em si experiências em que reconhece, no futuro, consequências ruins à continuidade desses atos, para ela, irresponsáveis de Lívio. Normal, perfeito, para a mãe. Mas e o Lívio? Em que patamar fica o desejo do Lívio? Crianças não podem nem devem ser desrespeitadas em suas emoções, movimentos e formas de aprender. Nem desrespeitadas, nem ignoradas. Suas ações são reações às informações que recebem em todos os ambientes onde interagem, então elas se testam, testam, correm riscos, experimentam com poucos medos. Pais serão sempre mediadores dessa construção identitária.
A mãe precisará de tempo para entender, mas a escola precisa rever-se rapidamente: não importa como o professor ensina, importa como seu aluno aprende. E esse princípio se relaciona com atendimento das expectativas dos alunos ao entrarem na escola. É necessário tentar entender essa plasticidade cerebral, seus interesses e formas de aprender; é necessário conhecer (mapear) o contexto em que a escola está; é necessário experimentar práticas em que a realidade do capital humano da escola seja, vez por outra, cotejada: incluir a sensação de pertencimento no processo de aprendizagem integral.
Mas por que Lívio saiu do seu caminho e entrou na lan house? Essa é a pergunta-base.
Particularmente, diante do que foi exposto aqui, ele foi em busca do seu prazer; do seu desejo; do que, para ele, tinha mais significado. Em se sabendo essa resposta, outra pergunta se instaura: se ele está na lan house, quais são seus interesses? Jogos, vídeos, sites de relacionamento ou de bate-papo? Essa observação (e possível anamnese) pode favorecer o professor, por exemplo, a criar e desenvolver práticas de ensino mais focalizadas, pontuais e significativas. Planejamento partindo do contexto e dos interesses deve tornar a sala de aula mais prazerosa. Ou não?
Leitor, tudo é bom e tudo depende, sabe por quê? Porque em tudo é preciso limites. Cérebros em formação têm sua circuitaria neuronal tensionada se carregada com excesso de informações ou de realizações, ou, ao contrário, se ganharem liberdade demais para ser e agir. Conexões neuronais de qualidade se constroem respeitando e dando limites à chegada das novidades, à realização dos desejos e à performance relacional no dia a dia. O cérebro segue aprendendo porque aprender ocorre no cérebro mesmo.
Quanto tempo Lívio passa na internet ou em determinado site? Isso é importante esclarecer. Se ele tem muita liberdade ‘internética’ em casa, a decisão de ir à lan house é natural; se ele tem proibições ‘internéticas’ radicais em casa, de novo, a lan house é quase shangri-lá e, de novo, um lugar de ida e permanência natural. E aí, assim, pode haver a perda de certas habilidades cognitivas, emocionais e relacionais.
Sem tempo offline, o cérebro não reestrutura tudo que assimila. Sem tempo offline real e duradouro, a questão social entra em desequilíbrio e instaura o ‘sem sentido’ sobre o ‘não pode’, ‘não deve’, ‘cuidado’, ‘outra hora ou dia’, ‘amanhã’, ‘mais tarde’, ‘não é a hora’, ‘por partes’, ‘peça ajuda ou desculpas’, ‘fale comigo antes’, ‘pergunte’ etc.
Lívio jogava. Lívio extravazava suas emoções. Lívia desanuviava a mente. Lívio perdeu a hora. A composição do seu mundo real, na visão do outro (mãe e professores), estava deficiente. Mas ele era/estava livre.
No mundo virtual, ele era o mundo; ele era o controlador de tudo, menos do tempo. Em metáfora, podemos dizer que, ali, o que somos (genética) era transformado por quem somos quase sem controle: experiência relacionada com o desejo e a necessidade de.
Nós todos nos esquecemos do tempo quando o tempo é de prazer, daí a noção de ‘sem sentido’ (estranhamentos) quando o tempo ganha limites alheios à nossa vontade. E pior, ficamos egoístas: o tempo de prazer é um tempo de posse. Há mudança cerebral = mudança comportamental, sim. Então, antes de condenar as tecnologias ao limbo dos maus agouros da nossa contemporaneidade, devemos pensar no tempo:

  • tempo de acesso;
  • tempo de imersão;
  • tempo de interação;
  • tempo da emoção;
  • tempo de produção;
  • tempo de reação;
  • tempo de compreensão;
  • tempo de evocação.

Publicado em 08 de agosto de 2017

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