Percepções no cotidiano: a estratégia, a cultura e o afeto no olhar do educador físico em locais de risco social

Marcelo Bittencourt Jardim

Mestrando em Ensino de Educação Básica (PPGEB/CAp UERJ), especialista em Psicomotricidade (IBMR), bacharel e licenciado em Educação Física (Unipli) com aperfeiçoamento acadêmico em Educação Pública (Cecierj) e, Saúde Coletiva (UFRJ)

A escola tem papel de grande relevância na formação do sujeito, principalmente na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. Porém, por minha prática profissional, tenho observado que os sistemas de ensino público que fazem atendimentos às crianças, adolescentes e jovens de favelas estão perdendo força ao longo dos anos (Jardim, 2016).

Sou educador físico e atuo no serviço público em locais de risco e vulnerabilidade social; faz alguns anos que meu compromisso profissional tornou-se meu propósito de vida, olhar esses sujeitos e priorizar a promoção da qualidade de vida tanto física quanto mental, ao invés de serem somente levantamentos estatísticos ou dados quantitativos para planilhas, e observo o cotidiano das favelas onde estou inserido exercendo minha função como docente e a questão cultural da realidade dos sujeitos nessas localidades (Jardim, 2016).

Roger Bastide (1975) desde a década de 1940 destacava “a importância do passado para entender o presente e interpretava a cultura não como uma tradição cristalizada”, mas como uma “alma produtora, a expressão de uma certa filosofia”. Jardim (2015), em sua pesquisa publicada e reconhecida como referência de trabalho de Educação Física e Psicomotricidade em comunidades carentes no site da Associação Brasileira de Psicomotricidade – Capítulo Nacional, afirma que as favelas surgiram por vários sujeitos que trazem consigo suas culturas e famílias, que por sua vez agregam nesses locais. Existem periferias na cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, onde surgiu este estudo, que são praticamente congregadas por grande número de familiares que são oriundos do nordeste do Brasil.

Continuando seu pensamento, Roger Bastide (1975) diz que “os processos de mudança social, os movimentos de resistência, revoltas, assimilação de inovações etc. foram vistos como frutos de uma ‘psique coletiva’, fruto da imaginação e da memória coletiva. Por sua vez, essa memória era vista como fonte de estruturação e de orientação da cultura”. Essa memória sobrevive não apenas das tradições e dos costumes; ela também é a manifestação de um “subconsciente social”.

Nas comunidades socialmente desfavoráveis, dentro de estudos antropológicos surgidos de outros campos de estudo da cultura e dados pela sociologia, como no livro Educação não formal e cultura política, de Maria da Glória Gohn, observei que são impostas suas próprias culturas, criando um conjunto de atividades e modos de se portar, de agir, de costumes, de tradições que acaba instruindo e influenciando toda uma localidade, principalmente em seu cotidiano. É o meio ao qual os sujeitos se adaptam e cuja realidade transformam; eles criam um novo linguajar, um novo estilo de se vestir e andar, estimando até mesmo uma marca de roupa e de calçado para se identificar, tanto pelo tráfico quanto por seus grupos sociais, que são abraçados pela comunidade. É uma cultura totalmente diferente da realidade e dos padrões sociais tidos como ‘normais’; “é uma cidade dentro de outra cidade”. Exemplo disso é a comunidade da Rocinha, conhecida como a maior favela da América Latina, em São Conrado, um dos bairros nobres do Rio de Janeiro (Jardim, 2016).

Este estudo surgiu da minha percepção do papel que exerço na vida dessas crianças, adolescentes e jovens e do quanto a ciência da Educação Física, nas questões afetivas e sociais (psicomotricidade), pode servir como instrumento mediador e formador do sujeito em seu aspecto biopsicossocial (Jardim, 2016).

O discente que é acolhido e estimulado pelo educador se desenvolve tanto no lado emocional quanto no conhecimento teórico-científico. A sala de aula é um ambiente de relações sociais em que o aluno aprende outras maneiras de se relacionar, outras vivências; o ambiente escolar pode desconstruir visões negativas que o aluno possui de si e do futuro e tentar resgatar a autoestima e mostrar que é possível trilhar um bom caminho no estudo e que ninguém nasce fadado ao fracasso, por mais que tenha nascido em um local de vulnerabilidade e risco social e um lar desestruturado (Jardim, 2016).

Muitos jovens matriculados nas redes públicas de ensino se comportam e falam como traficantes (utilizando as gírias e símbolos dos bandidos) porque aparentemente impõem respeito no seu grupo social, familiar, de amizades e infelizmente em nossas escolas, intimidando professores; esses jovens gostam de se vestir como se fossem traficantes, pois veem neles o poder e o medo que os indivíduos das periferias sentem e a que se submetem. Os sujeitos que estão envolvidos são idolatrados por grande parte da população das favelas como fossem famosos jogadores de futebol ou cantores populares. Essas crianças veem os ‘bandidos’ como fossem ídolos, pessoas importantes, famosas e bem-sucedidas nas favelas e acabam reproduzindo esses conceitos que observam e vivenciam em seu cotidiano; às vezes nem observam que estão reproduzindo. Isso mostra o quanto o ambiente social onde esses sujeitos estão inseridos pode influenciar seu cotidiano. Essa realidade é constatada diariamente e contada por moradores e profissionais que atuam em favelas, que se dispõem a estar nesses locais para pesquisar e ajudar a minimizar essa realidade tão mascarada pela sociedade, mídia e pelos órgãos públicos (Jardim, 2016).

Relato aqui duas situações que vivenciei em dois locais diferentes. O primeiro em um estabelecimento de ensino público municipal, quando fui docente em Educação Física; o segundo, quando fui coordenador em Educação Física de um programa social do Governo Federal, ambos em minha cidade, Niterói/RJ. Foi uma ótima experiência ter observado e vivenciado essas situações, que farão parte de minha pesquisa, estudo e projeto de mestrado profissional em Ensino de Educação Básica na UERJ.

O primeiro foi uma experiência em que pude constatar que nossos discentes podem ser afetados no âmbito escolar de duas formas, positiva ou negativamente, pelas atitudes dos docentes. Como ensina Certeau (1994, p. 31), “cotidiano é aquilo que nos pressiona dia após dia, nos oprime” e “nos prende intimamente”.

Essa escola era mal administrado pedagógica, educacional e administrativamente. Os sujeitos envolvidos pensavam nos seus próprios benefícios. Comecei a escutar os responsáveis dos alunos (os pais) a respeito de algumas questões, como eram distribuídas as refeições dos alunos; observei as atitudes dos discentes durante as atividades rotineiras na escola em relação à figura dos docentes, que geravam revolta muito grande nos educandos.

O educador sabe quando suas palavras não correspondem ao seu exemplo; os alunos percebem e passam a desconfiar do que esses docentes ensinam e da instituição. Ao invés de fundamentar suas ações, preferem maquiar e esconder sua prática. Os alunos observam tudo e não são ignorantes; ignorantes são aqueles que julgam saber mais que seus alunos; como diz Paulo Freire (1996), “Pensar certo é fazer certo”.

Os discentes percebem quando as instituições e os professores somente falam, mas não praticam o que estão ensinando. Eles percebem com muita clareza quando os professores dizem em suas aulas que é justo e democrático e impõem seu poder de forma arbitrária e autoritária (Freire, 1996).

Excluem-se as crianças e adolescentes que não têm o que comer e estão indo á escola para fazer suas refeições diárias. Os servidores às vezes acabam monopolizando os melhores alimentos e tomam posse deles, levando para seus lares. Nessas horas me pergunto qual o significado da expressão servidor público e serviço público neste estado e país (Jardim, 2016).

Paulo Freire (1996) diz que “não há como ensinar quando o seu próprio exemplo não é uma confirmação viva e dinâmica do que ensina. Quando a prática do docente contradiz o que ele ensina, não gera confiança e credibilidade aos discentes”. Esse exemplo que vivenciei mostra que as escolas em locais de risco que vivem essa realidade em seu cotidiano acabam comprometendo sua estrutura educacional, gerando discentes sem limites, desinteressados pelas aulas, sem estímulo para desenvolver as atividades propostas pelos docentes. Quando os profissionais envolvidos nas instituições não acolhem, quem faz esse serviço é o tráfico de drogas, que alicia e recruta os jovens que ficam ociosos no âmbito acadêmico, produzindo falta de respeito aos profissionais e professores e disseminando desordem no local. “Sem respeito não existe amor e nem amor ao próximo; existe sim um puro amor de faz de contas” (Jardim, 2017).

O segundo relato parte de minha atuação em seis comunidades carentes, num programa social do Governo Federal. Deparei-me com uma realidade muito hostil e bem difícil. Nesses locais eu ministrava aulas baseado nos conteúdos de Educação Física: esportes, jogos, lutas, ginástica e dança, paralelamente com atividades educacionais e de artes. Na parte educacional, eu trabalhava os três blocos de conteúdos da aprendizagem dentro dos Parâmetros Curriculares Nacionais: o conceitual: fazer algo; o procedimental: saber fazer algo; o principal foco do trabalho é o atitudinal: valorizar as atividades, os sujeitos que ali estavam (os discentes) e os docentes envolvidos no programa (eu e minha estagiária) (Jardim, 2016).

No começo encontrei dificuldades, pois a questão cultural do local era complicada; havia facções criminosas rivais que sempre estavam em guerra; quando não era o tráfico, o conflito seguia com a milícia. Resumindo: a quadra onde eu ministrava as aulas ficava no meio do confronto, um lado era dividido por três facções e o outro era da milícia, o que acarretava no espaço geográfico das comunidades conflitos territoriais com armamentos de guerra, venda e defesa de pontos de drogas, uma verdadeira guerra civil e aliciamento de crianças e adolescentes para a marginalidade (Jardim, 2016).

Observei a cultura das favelas, seu linguajar, sua educação, suas vestes, seu jeito de se comunicar por roupas, símbolos, dialetos; Certeau (1994, p. 142) mostra que “toda atividade humana pode ser cultura, mas ela não o é necessariamente ou não é forçosamente reconhecida como tal”, pois, “para que haja cultura, não basta ser autor das práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza”. Cheguei à conclusão de que a cultura influencia sujeitos e uma localidade.

Eu coordenava, ministrava e orientava as aulas juntamente com a minha estagiária, que ficava com outros grupos de crianças e adolescentes. Na parte da tarde, quando eu começava a atividade, surgia um grupo de adultos ociosos que ficava ao redor da quadra e junto deles ficava uma menina de onze anos de idade, chamada J., que já estava sendo aliciada para á prostituição e para o tráfico de drogas por esse grupo. Quando eram realizadas as dinâmicas sociais com atividades lúdicas, eu observava a atitude do grupo, que ficava com medo dessa criança, que tumultuava a aula com palavras torpes para os educandos, para nós, professores, e arremessava pedras em nossa direção. Identifiquei que ela queria mesmo é chamar nossa atenção; como dizia um dos maiores educadores que o Brasil já teve, “ensinar exige saber escutar o outro, ter disponibilidade para o diálogo, compromisso e querer bem aos educandos” (Freire, 1996).

Cheguei a um nível em que eu pensei em sair dessa prática laboral ou enfrentar essa adversidade, o que é muitas das vezes a realidade de vários profissionais em seu cotidiano escolar e nas favelas em programas sociais. Ainda bem que optei por enfrentar essa situação, pois esse trabalho se tornou um artigo na revista Educação Pública em fevereiro de 2016.

Estudei a hipótese de traçar uma estratégia para conseguir incluir a criança nas atividades de educação física e no programa social; seguindo a orientação de alguns estudiosos do cotidiano, cheguei a Certeau (2005, p.99-100), que fala que é por meio dela e por ela que “lidamos com as situações complexas do cotidiano; são [as crianças] que nos fazem enfrentar o movimento da vida”. Então isso mostra que a vivência é uma dinâmica no cotidiano e não somente um método teórico que depositamos em nossos discentes ou reproduzimos como discurso humanista. A respeito dos seus estudos, “tática é a arte do fraco, ela é determinada pela ausência de poder, ao contrário da estratégia que está ligada ao poder” (Certeau, 2005, p. 101).

Do meio-dia até 13 horas, a quadra ficava vazia; os traficantes da localidade desciam com drogas para vender e fazer uso também, mas sem nenhum armamento, que eles escondiam na mata ao lado da quadra. Observei que essa menina era a única criança que acompanhava os marginais; ali estava meu desafio: inserir-me nesse contexto para jogar futebol ou esperar o horário da tarde e a aula começar e continuar o aborrecimento cotidiano.

Minha estratégia foi arriscada, mas consegui incluir-me no futebol da comunidade, no meio dos traficantes, para ganhar a confiança deles e aproximar-me da criança; durante os jogos, escutei essa menina bem magrinha e pequena falar com alguns traficantes que gostava de Matemática; foi a partir disso que eu comecei a resgatar essa criança, que estava confusa, sem uma figura masculina em sua vida para ter referência, pois seu pai biológico está em regime prisional em Bangu I e seu irmão era traficante como ele (Jardim, 2016).

Quando a aula da tarde começava, ela chegava para intimidar a todos; aí eu trocava as atividades e inseria a Matemática simples, as operações fundamentais, em atividades coletivas como futebol, basquetebol, handebol e até mesmo nas atividades individuais, como o atletismo. Foi essa dinâmica de trabalho, utilizando o esporte paralelamente à Matemática, a ferramenta de inclusão social exitosa dessa criança no programa social. Durante um mês e meio, desenvolvi e modifiquei as atividades para atrair, chamar a atenção e tentar estimular essa menina a participar; foi com essa estratégia que consegui incluí-la nas atividades. Com o passar do tempo, ela foi sendo restaurada em vários aspectos de sua vida, principalmente o acadêmico, pois ela tinha abandonado a escola. Com essas aulas de atividades físicas e educacionais, inserindo a Matemática, ela retornou a seus estudos e ainda levou essa atividade para a sala de aula em sua escola municipal. A melhora foi tão expressiva que tive a visita de sua professora no programa, por causa de sua melhora em Matemática e até mesmo no relacionamento com outros alunos, com sujeitos da comunidade e em sua família. Seu irmão, envolvido no tráfico de drogas, observou a melhora de sua conduta e quis também participar do programa social; durante as aulas tive oportunidade de conversar com ele, que tinha dezoito anos e não tinha concluído o Ensino Fundamental; acabou saindo do tráfico, sendo direcionado para um emprego como pedreiro, com seu padrasto (Jardim, 2016).

Agarrei-me às palavras de Paulo Freire (1996): “o objetivo maior da educação é conscientizar os educandos”. Observei a importância do diálogo e de conhecer a geografia das favelas durante algumas caminhadas que fazia para levar os discentes para suas residências, com o intuito também de criar vínculos de confiança com a comunidade e convidar outras crianças para participar das atividades do programa; percebi também o contexto socioeconômico do local e a importância desse trabalho na vida dessas crianças, do antes (como agiam), do depois (como passaram a agir) e do durante (seu cotidiano de aceitação) meu trabalho nesses locais; como diz Freire (1996), na construção, no desenvolvimento e na estimulação dos discentes.

Assim, “para existir a inclusão social tem que ter a interação, se não existir a interação a inclusão social está comprometida” (Jardim, 2017).

Percebi que a postura e as atitudes dos docentes diante das dificuldades determina o desenvolver das atividades e que o afeto é o aspecto primordial para termos êxito como docentes. Não somente acolhimento e abraços, mas a atenção, o diálogo, a escuta, a disponibilidade do profissional em afetar e ser afetado. O afeto exerce nas crianças uma mudança de comportamento bem significativa; percebo em seus olhos, nas suas atitudes e em seus sorrisos a esperança de uma vida melhor, sem criminalidade e sem violência; a comunidade necessita de investimento em infraestrutura, na valorização dos seus docentes e na educação básica. Essas crianças, se cuidadas, se olhadas, se amadas, poderão ter uma qualidade de vida, com saúde e alegria.

Este trabalho vem trazer um novo olhar, acreditando que a educação pode atuar e modificar práticas sociais e políticas para uma docência com excelência e um olhar diferenciado para os sujeitos atendidos em programas sociais e nos estabelecimentos de ensino (Jardim, 2016).

Referências

BASTIDE, R. Le sacré sauvage. Paris: Paton, 1975.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96).

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura).

JARDIM, Marcelo B. A importância do educador físico na comunidade carente. EFDeportes.com, Buenos Aires, 2015.

JARDIM, Marcelo B. A família, o educador físico e sua importância na formação do discente. Educação Pública,Rio de Janeiro, 2016.

JARDIM, Marcelo. A família, o educador físico e sua importância na formação do discente (resumo). Observatorio De Deportes – ODEP, revista digital da Universidad de los Lagos, Santiago, 2016.

JARDIM, Marcelo B. Amor que educa: O afeto como instrumento primordial na atuação do educador físico com crianças e jovens de comunidades carentes. Rio de Janeiro: Kimera, 2016.

JARDIM, Marcelo B. Educação Especial e Educação Física: Artigos de experiência profissional. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2017.

JARDIM, Marcelo B. O afeto como instrumento primordial na atuação do educador físico com crianças e jovens de comunidades carentes. Educação Pública, Rio de Janeiro, 2015.

JARDIM, Marcelo B. O afeto como instrumento primordial na atuação do educador físico. Associação Brasileira de Psicomotricidade – Capítulo Nacional, blog de Psicomotricidade. Rio de Janeiro, 2015.

Publicado em 19 de setembro de 2017

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