O material pedagógico de Língua Portuguesa da rede pública municipal do Rio de Janeiro e a Lei nº 10.639/03

Gisele Ferreira da Silva

Mestra em Relações Étnico-raciais (Cefet-RJ), graduada em Normal Superior (Iserj), especialista em Psicopedagogia Institucional e Orientação Educacional/Pedagógica (Universidade Cândido Mendes), professora regente (Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro), terapeuta holística com formação em Psicanálise em andamento

Este artigo apresenta uma breve reflexão acerca do material didático de Língua Portuguesa utilizado pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Tal reflexão é desdobramento da pesquisa realizada no mestrado em relações étnico-raciais. Buscou-se identificar se entre os textos e atividades do material de Língua Portuguesa para o 4º ano do Ensino Fundamental havia algum indicativo referente à questão trazida pela Lei nº 10.639/03, ou seja, investigar se o material trazia textos e atividades que tratassem dos negros, seja na África ou no Brasil e as respectivas questões raciais. O Estatuto de Igualdade Racial, ao definir população negra, caracteriza-a como o grupo de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas ou que adotam definição análoga. Neste estudo, por vezes, utilizou-se do termo afro-brasileiro de forma análoga à população negra.

O material utilizado chama-se Caderno Pedagógico; é composto por atividades concebidas de acordo com descritores selecionados pela rede, com base em suas orientações curriculares. A rede defende que o Caderno Pedagógico visa à promoção do trabalho com leitura e escrita, representando um caderno de textos. Deste modo, assim sintetizam-se as informações principais sobre o material:

  • Gênero: Material didático (Caderno Pedagógico)
  • Produzido por equipe de consultores contratados na área de Língua Portuguesa e participação de professores regentes da rede.
  • Circulação: Impresso e entregue às escolas municipais do Rio de Janeiro e disponibilizado na internet.
  • Periodicidade: bimestral.

Este artigo toma como ponto de partida que currículos e materiais didáticos são formas de discurso. Assim, busca-se pensar nos materiais ofertados aos docentes. É necessário compreender que o currículo não pode se limitar a celebrar diversidade e diferenças, mas sim preocupar-se em problematizá-las (Silva, 2000). Este é o grande desafio: problematizar os discursos dos currículos e materiais didáticos. Esse desafio é proposto pela Lei nº 10.639/03.

Perante as atividades que compuseram o Caderno, nota-se a presença de gêneros como músicas, cartas, lendas, contos, histórias, mapas, caça-palavras, propagandas, fábulas, poesias e notícias, entre outros.

Os textos desdobram-se em exercícios para entendimento e compressão dos fatos trabalhados nas histórias; trabalha-se ainda com significados de palavras e termos utilizados. No entanto, a necessária atenção é para o fato de que os textos não estejam arranjados de modo a justificar que se trabalhe com muitos gêneros, conforme Fiorin (2006) coloca. Tendo isso em vista, os gêneros precisam ser explorados numa dimensão além da estrutura da língua, como a própria rede defende. Assim, Sobral (2011) afirma que a percepção de que a cada esfera corresponderá um sentido possível dado pelos sujeitos, interlocutores envolvidos.

Logo, o que confere sentido a um texto, o que lhe permite instaurar sentidos, é precisamente sua convocação em discurso/pelo discurso no âmbito de algum gênero, o que implica sua pertinência a uma dada esfera de atividades e a uma dada maneira social-histórico-ideológica de recortar a parcela concebível do mundo no âmbito dessa esfera (Sobral, 2011, p. 41-42).

A esfera de publicação do Caderno Pedagógico apresenta características próprias, pois é destinado a uma rede de ensino específica. Esses aspectos, no que tange às esferas de circulação e produção, já representam diferenças se comparado ao livro didático, por exemplo, embora ambos sejam destinados ao ensino.

Desse modo, temos linguagens dentro de realidades diversas. Teoricamente, o Caderno Pedagógico e as Orientações Curriculares representam o fio condutor por uma unidade didática entre essas linguagens, porém com diferentes sentidos de acordo com o contexto de interlocução em diferentes níveis. Como seriam produzidos esses diferentes sentidos? Pelos interlocutores envolvidos, pelo sentido atribuído por cada sujeito, acreditando num sujeito ativo e não sujeitado, pela mediação realizada pelo professor na condução do material e ainda de acordo com a recepção do aluno perante o material.

Tal processo está ligado ao fato de que o Caderno Pedagógico como discurso está inserido numa interessante dinâmica de interlocução. A Secretaria Municipal, como voz institucional, enuncia o Caderno Pedagógico às escolas. Este, ao ser trabalhado nas mais diversas salas de aula, terá um enunciador professor que terá diversos interlocutores, os alunos. Deste modo, a produção e os sentidos da linguagem e dos discursos constituem-se de fato “como produto do encontro entre um eu e um outro, segundo formas de interação situadas historicamente” (Rocha; Deusdará, 2006, p. 317).

Para uma breve compreensão das atividades do material, foi trazida a análise de uma das atividades que faz referência ao tema pesquisado.

2.1
Figura 1: Imagem da página do Caderno onde se iniciam as atividades descritas neste artigo. O material na íntegra está citado nas Referências, no link do Caderno Pedagógico e na referência da Dissertação

Uma das páginas do Caderno Pedagógico traz a imagem do continente africano; começa com uma chamada relembrando a história trabalhada no início do material “Isto não é um elefante” (Bartolomeu Campos de Queirós), na qual a personagem formiguinha sonhava conhecer o continente africano, e traz uma pergunta ao aluno indagando se ele já ouviu falar desse continente.

Em seguida, retoma que a motivação da formiga era morar na África para passear nas costas dos crocodilos e experimentar o sabor de um hipopótamo ao molho de leão. Esse trecho revela uma excelente oportunidade para trabalhar as motivações da formiga em conhecer a África. Tendo em vista que a formiga é um animal, é imprescindível ter em mente que suas motivações são pensadas a partir de suas vivências, ou seja, a partir da vivência com outros animais. Desse modo, entendendo a linguagem como forma de intervenção sobre o social (Rocha; Deusdará, 2006), é primordial levantar o debate dessa visão da formiga para que o aprendizado do aluno não fique restrito a que a África é somente ligada a bichos, selvas e animais, não tendo outras realidades.

Na sequência, é perguntado se o aluno sabe onde fica o continente africano. É apresentado um mapa com os continentes e seus nomes, oceanos, trópicos e círculos. Sobre o comando da questão, destaca-se que acima do mapa é perguntado ao aluno se ele sabe onde fica o continente africano e pede que sejam usadas cores na identificação. Ao lado direito do mapa, a pergunta refere-se a que oceano separa o Brasil da África.

Nesse caso, a forma como a atividade é apresentada nos leva a supor que o aluno, pela leitura, identificará os continentes, com destaque para o africano, e irá pintá-lo, já que a atividade pede que sejam separados diferentes lápis de cor. A pergunta ao lado do mapa já se refere a outra especificidade, pois, uma vez que se identificou o continente, é pedido que seja identificado o oceano que separa o continente africano do Brasil. O aluno, então, precisa ter noções geográficas prévias sobre o tema. Entretanto, a escrita “oceano que separa o Brasil da África” leva a um estranhamento em sua formulação. Brasil é um país e África é um continente. Tal fato pode levar o aluno à recorrente confusão de que África é um país, embora o Caderno trabalhe a todo momento que é um continente.

Na mesma questão, é utilizada duas vezes a palavra África e duas vezes a palavra africano. Além disso, três vezes a palavra continente. Ou seja, toda a atividade remete a continente africano e não a oceano. A partir disso, considera-se a possibilidade de se trabalhar com oceano em outra etapa. Contudo, já que foi sugerida a questão, a formulação poderia ser: “oceano que separa o continente americano do continente africano” ou “oceano que separa o Brasil de determinado país africano”, por exemplo. Ou seja, relações de comparação iguais.

Essa atividade parece buscar interdisciplinaridade com a área de Geografia ao sugerir identificar o continente africano no mapa. O texto ao lado do mapa traz importantes problematizações, levantando a questão sobre se África se resume somente a animais, como a personagem da formiguinha pensava. Traz à tona questões sobre: países africanos que falam a Língua Portuguesa e a não generalização das realidades dos diferentes países que compõem a África. Sugere ainda que o docente aprofunde a pesquisa por meio do acervo da Sala de Leitura da unidade escolar e indica um endereço eletrônico para pesquisa na internet.

O acesso ao referido endereço leva ao do site Globo.com. Nessa página é apresentada uma reportagem que trata do legado africano para o Brasil em cultura, construções, história, língua. Traz também afirmações de Nei Lopes e Alberto da Costa e Silva sobre o tema, além de dados do Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil, elaborado pelo Instituto de Economia da UFRJ. Tal relatório trata da desigualdade e do preconceito enfrentado pela população negra no que se refere a escolarização e segurança, entre outros.

A indicação do site para aprofundamento dos estudos em aula é interessante, pois permite, mediante dados oficiais, tratar da desigualdade racial na sociedade do Brasil, para que seja possível levar os alunos a uma compreensão mais ampliada, pois muitas vezes as situações cotidianas da escola estão permeadas também dessas desigualdades, uma vez que a escola está inserida na sociedade.

Temos percebido que o discurso sobre o valor da diversidade cultural tem sido cada vez mais difundido na sociedade e a escola também tem se apropriado desse discurso. Contudo, o que percebemos é que o uso social excessivo de certos discursos tende a silenciar ou até mesmo esvaziar os conflitos e as tensões ocasionadas a partir das relações que são instituídas com o Outro. Concluímos, portanto, que trabalhar a diversidade no ambiente escolar não se restringe apenas a tolerar o Outro (Silva, 2011, p. 252).

Trabalhar de forma crítica, histórica, levantando dados que comprovem essas diferenças e tragam motivos e hipóteses sobre elas contribui na tentativa de que o aluno caminhe por um olhar mais atento sobre si e o outro; o desafio é a construção consciente sobre a realidade nesse contexto de interações que se realiza dentro e fora da escola.

Os textos e atividades de todo o material são, portanto, enunciados que poderão produzir diferentes efeitos de sentidos de acordo com a educação em que se acredita, o meio em se que insere, as formas de trabalho, os interlocutores envolvidos, entre outros. Gêneros textuais fazem parte de práticas discursivas múltiplas. Os diversos textos trabalhados não são necessariamente concebidos especificamente para práticas escolares; estão inseridos numa esfera maior. A partir disso, precisa-se ter atenção aos deslocamentos que irão ocorrer.

A forma como os textos e exercícios se estruturam no Caderno apontam para fatos relevantes: o primeiro deles refere-se ao cuidado necessário para o ensino de Língua Portuguesa mediante o trabalho com gêneros textuais, tendo em mente que é primordial não se perder do sentido social do texto, ou seja, valorizar que significações os textos produzem no grupo trabalhado. Afinal, materiais didáticos podem conter textos e informações sobre a população negra e/ou sobre a África, mas podem estar destituídos de reflexões críticas.

O segundo fato é que a luta por ensino e materiais didáticos que trabalhem as histórias africanas e afro-brasileiras é uma construção progressiva. Foi possível perceber no Caderno Pedagógico a alternância entre: atividades que utilizam os textos de forma a tratar mais de aspectos gramaticais, atividades que retomam os acontecimentos e fatos dos textos e atividades com indicações de pesquisa para aprofundamento do tema. Tal colocação é interessante na medida em que muitos discursos procuravam atribuir tais discussões apenas à Historia e/ou à Geografia.

De acordo com Maingueneau (2008), textos envolvem dialogismos. Isso faz pensar no processo dialógico ocorrido nas salas de aula no trabalho com o Caderno Pedagógico. Interlocutores terão interpretações possíveis advindas do seu contexto. Alunos e professores são sujeitos que trazem consigo percepções e diferentes discursos convergentes ou divergentes com as abordagens propostas no material didático e pelo professor. Tais discursos acontecem nas mais de 1.500 escolas municipais do Rio de Janeiro, com cerca de 650 mil alunos matriculados; é a maior rede de ensino na América Latina. Essas trocas podem enriquecer o trabalho com resultados positivos. O que surge no encontro e nas vivências entre eu-outro faz avançar. Essas vivências permitem, juntamente com os alunos, compreender esses sentidos, que acabam por estar ligados a uma “posição enunciativa em que o professor situa o aluno [...] e se situa também” (Sobral, 2011, p. 41-42). Parte-se da premissa de construção coletiva com os alunos, e quando se fala em novos sentidos de forma alguma se afirma que serão concordantes; poderão ser discordantes e trazer à tona novas tensões de ideias a serem exploradas num processo contínuo.

Referências

BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 10 jan. 2003, p. 1. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Acesso em 12 dez. 2013.
______. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Seção 1, 21/7/2010, p. 1. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm. Acesso em: 12 set. 2015.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. São Paulo: Contexto, 2008.

RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Educação. Caderno Pedagógico. Língua Portuguesa, 4º ano, 3º bimestre, 2014. Disponível em: https://dkanra.bn1.livefilestore.com/y3mf7ywGloRiMW3GVt9W0zsOcdbKoBO8ZEeq24DdgaUBThIAeu9Hs9bqBygVAGsZ3qXGbeCAuKIPVSQTHDwdfNGB2RhgIyN3kP5aVQ52039GdMCbOnnarsgI5dNnmvnak9/LP4_%203BIM_ALUNO_2014.pdf?psid=1. Acesso em: 2 mar. 2014.

ROCHA, Décio; DEUSDARÁ, Bruno. Análise de conteúdo e análise do discurso: o linguístico e seu entorno. DELTA - Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 29-52, 2006.

SILVA, Ana Célia da. A representação social do negro no livro didático: o que mudou? por que mudou? Salvador: EdUFBA, 2011.

SILVA, Gisele Ferreira da. O Caderno Pedagógico do Município do Rio de Janeiro: há espaços para implementação da Lei 10.639/03 através do material didático de Língua Portuguesa? 2016. 144f. Dissertação (Mestrado em Relações Étnico-Raciais) –Cefet-RJ. Rio de Janeiro, 2016.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ______ (Org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 73-102.

SOBRAL, Adail. Texto, discurso, gênero: alguns elementos teóricos e práticos. Nonada – Letras em Revista, v. 1, n. 15, 2010.

Publicado em 17 de abril de 2018

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