Produção de material didático para alunos com deficiência visual: experiências nos anos iniciais

Arlindo Fernando Paiva de Carvalho Junior

Doutorando (UNIRIO), professor do Instituto Benjamin Constant

Mariana de Oliveira Martins Domingues

Mestranda (UFF), professora do Instituto Benjamin Constant

Sylvia Soares de Souza

Mestranda (UFRJ), professora do Instituto Benjamin Constant

A necessidade de construção de materiais didáticos (MD) é uma realidade nos diferentes cotidianos escolares brasileiros. Apesar da produção dos livros didáticos e de muitos outros materiais que visam ao aprendizado, a necessidade de construção de materiais específicos e personalizados para as características de aprendizado de cada aluno vem ganhando força com os discursos de valorização da subjetividade das diferenças, principalmente na Educação Especial e Inclusiva, para alunos com deficiência e necessidades educativas especiais, que exigem muitas vezes a construção de MD únicos, apropriados às suas limitações motoras, sensoriais ou cognitivas.

“Material pedagógico é todo aquele que estimula a criança a descobrir relações” (Cunha, 1981, p. 11). São MD aqueles elaborados especificamente para a obtenção de um conhecimento ou de uma habilidade, com o objetivo de estimular o desenvolvimento das crianças. O material é direcionado à vivência concreta de experiências que promovam a construção do conhecimento, gerando estímulos para o desenvolvimento das áreas, competências ou habilidades a serem trabalhadas.

Nos anos iniciais de escolarização, as crianças estão conhecendo o seu corpo, seu esquema corporal. Aos poucos vão desenvolvendo a fala, a coordenação motora, aprimorando as qualidades físicas e definindo sua lateralidade. É uma fase de descobertas que necessita ser estimulada de acordo com as características de cada criança. O MD é uma excelente ferramenta de estímulo à aprendizagem e à construção de conhecimentos. Visando às necessidades e características do aluno com deficiência visual (DV), o MD especializado em três dimensões (3D) torna-se uma excelente estratégia para construção de conceitos no aprendizado desse aluno.

Nesse sentido, o presente texto consiste na apresentação das reflexões e relatos de experiências de professores atuantes no Instituto Benjamin Constant – Centro de Referência Nacional na área da deficiência visual. Buscou-se, a partir do registro da construção de MD especializados em 3D e da aplicação deles à prática pedagógica, identificar as possibilidades de aprendizado pelo aluno com DV, com a utilização do MD criado, registrando as descobertas, aprimorando o material para futuras experiências de aprendizado e construindo conhecimentos, com o objetivo de servir de base para outras práticas pedagógicas, auxiliando outros professores em diferentes contextos e cotidianos escolares.

Material didático tridimensional

Na construção de MD especializados em 3D, há infinitas possibilidades de materiais a serem utilizados; qualquer material tem funcionalidade ou vantagem quando é pensado com base nos objetivos que se pretende atingir e nas necessidades e potencialidades dos alunos. A escolha do material passa por questões relacionadas ao professor que constrói o MD, aos recursos que ele tem disponíveis, ao público-alvo que pretende alcançar, aos objetivos de aprendizagem – o que gera maior interesse, aceitabilidade e receptividade para o aluno.

A produção de MD especializado em 3D é de extrema importância na educação de crianças com DV. Para a criança vidente (que tem a visão), o objeto de aprendizagem está em seu campo de visão, o que facilita a aquisição de informações, mas para facilitar que a criança com DV construa seus conceitos a manipulação do objeto real e representado é imprescindível. Ao nos referirmos ao aluno com DV, cego ou baixa visão, devemos ter em mente as diferentes acuidades visuais, a memória visual e as experiências vivenciadas. “A mão será o canal principal de assimilação, apreensão e compreensão do mundo; por isso, deve adquirir muita autonomia” (Bruno, 1997, p. 50).

É por meio dos sentidos remanescentes, principalmente do tato, que a criança vai construir seu espaço representativo. O material didático especializado deve levar o indivíduo a um conhecimento e a uma interpretação de mundo que envolvam experiências vividas pelas crianças. É fato que nenhum material representado ou descrito trará com exatidão e clareza o conceito real do que se pretende apresentar. Até mesmo entre videntes o olhar não é igual e as sensações não são as mesmas frente a um mesmo objeto, pois o ser humano é subjetivo. Conforme Veiga (1983, p. 13), “ninguém logrou até hoje concluir ao certo se dois indivíduos de olhos abertos têm a mesma impressão, a mesma sensação diante de um pôr do sol, à mesma hora”. Assim sendo, o MD em 3D não representa o real, mas se faz adequado para a construção de conceitos, sobretudo por se aproximar da realidade.

A proposta de trabalhar conceitos com base no MD em 3D se apresenta como uma atividade de relevância para o aluno com DV, pois o estímulo tátil é importante na tarefa de investigar tudo que lhes vem à mão para a construção do imaginário. O seu olhar está no tato, na forma de ver que envolve outros sentidos além da visão.

A educação de alunos com DV é um processo ativo que envolve a construção contínua da realidade, uma elaboração própria do aluno, mas mediada pelo professor. O trabalho com o MD em 3D precisa ser idealizado a partir da necessidade do aluno; planejado para a sua execução de forma segura e autônoma; construído de forma a explorar as potencialidades do aluno, analisado quanto à sua viabilidade e aplicabilidade, repensado caso haja necessidade de aprimoramento, refletido quanto ao seu uso e à relação com os conteúdos e os resultados esperados na prática pedagógica, considerando a subjetividade de cada um.

A construção do material didático tridimensional

O processo de construção de um MD especializado nasce no planejamento pedagógico do professor, seus conteúdos, objetivos e, principalmente, pelas necessidades e características físicas, sociais, psicomotoras e cognoscitivas dos alunos. A produção do MD obedece a algumas fases em seu desenvolvimento:

  • Diagnóstico das necessidades e características do aluno;
  • Idealização do MD pelo professor;
  • Produção do MD idealizado;
  • Planejamento para testagem;
  • Testagem e registro das dificuldades e acertos do MD especializado;
  • Reelaboração do MD baseada nas observações realizadas na testagem;
  • Nova testagem, após reelaboração do MD;
  • Experimentação do MD criado junto com outros materiais, com diferentes atividades e ambientes;
  • produção do MD em larga escala, se for o caso.

O MD tridimensional pode ser específico para um aluno, ou para um grupo com características semelhantes. O importante é a definição clara do público que se pretende atingir, atendendo às suas especificidades.

A matéria-prima dos MD também deve atender às características dos alunos. Ao produzir e testar os materiais, o professor deve observar, entre outras questões, a agradabilidade ao toque; a especificidade visual quanto à cor e ao contraste de cores utilizadas; o tamanho do MD, de forma a adequá-lo ao tamanho da criança e considerando as proporções necessárias para a construção do conceito de grandeza; e a durabilidade do material, considerando o manuseio e o uso contínuo pela criança.

Reflexões e experiências

As experiências foram realizadas em diferentes contextos com diversos alunos da Educação Infantil e do primeiro ano do Ensino Fundamental. O MD tridimensional construído e utilizado nas experiências que é a base deste texto foi uma boneca desmontável e articulada. Diferentes bonecas de plástico e borracha foram compradas com diferentes tamanhos, cores e cabelos. Seus membros e cabeças foram cortados para introdução de ímãs e velcros, tornando-os de encaixe.

A experiência foi desenvolvida com professores dos anos iniciais e de Educação Física. A aplicação dos materiais de forma interdisciplinar ocorreu nas três dimensões dos conteúdos (Coll et al., 2000), em um planejamento conjunto dos professores multidisciplinares – aqueles que, na maioria das vezes, lecionam diferentes disciplinas para uma única turma, geralmente nos anos iniciais.

Foram desenvolvidas atividades de percepção tátil, identificação das partes do corpo, transferência do conceito corporal da primeira para a terceira pessoa, lateralidade, orientação espacial e diferentes atividades psicomotoras e recreativas, visando ao conhecimento do corpo por meio da ludicidade. Possibilitou a construção de conceitos e significados, suas possibilidades e utilidades, ampliando o entendimento e a compreensão do esquema corporal da criança.

Ao ser oferecido o MD, os alunos demonstraram curiosidade e anseio por manusear e compreender o funcionamento da boneca. Cada aluno demonstrou se relacionar com o MD de forma diferente, pois utilizou o recurso dentro dos seus limites de aprendizagem, na localização e nomenclatura das partes do corpo, na montagem do esquema corporal, na lateralidade e noções de direção e nas diferentes formas de trabalho com base na necessidade dos alunos.

O material didático tridimensional sob um aspecto lúdico para crianças com DV nos anos iniciais

Durante o processo de elaboração do MD, uma das maiores preocupações foi oferecer um material de qualidade que gerasse experiências concretas e lúdicas para os alunos. Para Kishimoto (2010), a partir do brincar, ou seja, do despertar da ludicidade, “a criança experimenta o poder de explorar o mundo dos objetos, das pessoas, da natureza e da cultura para compreendê-lo e expressá-lo por meio de variadas linguagens” (p. 1).

Em outras palavras: a brincadeira no contexto lúdico atua como uma ferramenta para a criança se expressar, aprender e a se desenvolver; é, assim, um instrumento facilitador do processo de ensino e aprendizagem.

Outro critério levantado para a ênfase da ludicidade foi atratividade para o manuseio da criança cega. Deve ser levado em conta que a ausência da visão por vezes inibe a criança em vivenciar o novo, em vista das sensações desconhecidas que tais experiências podem proporcionar, causando medo ou repulsa.

Por isso, a “brincadeira” contribui para a construção de um ambiente “seguro” para a criança com DV; pela curiosidade, ela se permite explorar o MD. O contexto lúdico oferece a vantagem de dinamizar o processo de forma espontânea, de modo que a criança com DV tenha despertada a vontade de conhecer o material.

Por isso, a escolha da boneca como MD se fez uma alternativa versátil, diante das diversas possibilidades de propostas pedagógicas. As “Rodas de conversa”, “Horas da novidade”ou até mesmo as “Rodas de leitura” se apresentavam como momentos propícios para a utilização do material, na medida em que as crianças pesquisavam as bonecas e perguntando tudo o que lhes interessava saber. O termo “pesquisar”, nesse contexto, se refere ao ato de conhecer os diversos elementos ao seu redor, por via da exploração tátil.

As crianças conheciam a estrutura corporal das bonecas (MD), apresentada por meio de experiências concretas e formação de conceitos. Vale mencionar que se evidenciou a necessidade de explorar uma diversidade de materiais, de modo a oferecer maiores possibilidades de interação com as crianças.

Além disso, pela representação de diferentes bonecas, como a bebê, uma adulta e outra boneca negra, foram trabalhados aspectos referentes a idade cronológica, grandezas físicas (grande x pequeno) e construções de identidade, contribuindo para uma participação coletiva do grupo de alunos envolvidos na pesquisa, à proporção que eram convidados a descobrir suas características pessoais.

Trabalharam-se também as funções corporais dos membros do corpo humano, noções de PEVI1 e lateralidade, de acordo com a necessidade e a resposta que cada criança apresentava aos estímulos oferecidos. Todos esses conhecimentos adquiridos far-se-ão fundamentais para a estruturação de conceitos da criança e sua futura alfabetização. Com base nos estudos de Magda Soares (2005), a proposta de letramento envolve alfabetizar o indivíduo para além de uma escrita alfabético-ortográfica, visando ampliar o conhecimento de mundo para a efetivação de sua aprendizagem.

Articulando-se com os estudos da autora, acrescentamos que, para um profícuo processo de alfabetização e letramento, faz-se necessário o desenvolvimento das habilidades motoras e cognitivas do sujeito, justificando a importância da constituição de sua identidade corporal e de suas funções.

Sendo assim, ao oferecer o MD no intuito de trabalhar o corpo, oportuniza-se a consciência de pertencimento de mundo, colocando o aluno como centro e ser subjetivo. A aquisição dessa percepção é indispensável para todos os processos de aprendizagem pelos quais a criança com DV passará ao longo da vida, tais como a ampliação das diversas linguagens.

Com base nessas experiências, estimulam-se as funções cognitivas da criança. Sobre isso, os estudos de Almeida (2014) fazem-se fundamentais para a compreensão de tal interação cognitiva, uma vez a autora enfatiza a necessidade de experiências físicas e diretas com objetos reais e interações verbais para aprender sobre o mundo que rodeia a criança com DV.

Quanto mais experiências forem possibilitadas à criança com DV, mais recursos serão oferecidos para a potencialização de seus estágios cognitivos e seu desenvolvimento intelectual. Nesse sentido, o uso do MD é primordial para a vivência de tais experiências, na medida em que é pensado com o objetivo de ir ao encontro das necessidades dessas crianças, fazendo parte de seu universo lúdico.

Considerações finais

Percebeu-se a importância da produção de um MD especializado para a criança com DV, sobretudo com relação ao conhecimento de seu corpo, visto que, diferente das crianças videntes, elas não usufruem de uma referência corporal pelos estímulos visuais. A utilização do MD tridimensional facilita a aquisição de conceitos concretos e abstratos e auxilia na compreensão dos MD bidimensionais.

Ao realizar a atividade, a diversidade da proposta deu margem a realizar um trabalho que envolvesse não somente o conceito de membros do corpo, como lateralidade e percepção manual, mas também à criatividade do professor na elaboração de seu planejamento. Todas as experiências vividas pelos alunos serviram para potencializar as oportunidades de aprendizagem, proporcionando conhecimento a partir de objetos que fazem parte do universo desses alunos.

A produção de MD pode ser utilizada para todas as áreas do conhecimento na educação de alunos com DV; outros materiais podem ser produzidos, tais como: cardápios com alimentos, alfabetos, números, frutas e para toda área de conhecimento.

A iniciativa de construção de MD especializado permite a realização de um trabalho individualizado e que favorece o desenvolvimento de processos criativos em benefício da aprendizagem, respeitando a identidade e a subjetividade de cada aluno.

Referências

ALMEIDA, Maria da Glória.A importância da literatura como elemento de construção do imaginário da criança com deficiência visual. Rio de Janeiro: Instituto Benjamin Constant, 2014.

BRUNO, Marilda Moraes Garcia. Deficiência visual: reflexões sobre a prática pedagógica. São Paulo: Laramara, 1997.

COLL, C.; POZO, J. I.; SARABIA, B.; VALLS, E. Os conteúdos na reforma. Porto Alegre: Artmed, 2000.

CUNHA, Nylse Helena S. Material pedagógico: manual de utilização. Rio de Janeiro: Fename; São Paulo: Apae/Cenesp, 1981.

KISHIMOTO, Tizuco Morchida. Brinquedos e brincadeiras na educação infantil. Anais do I Seminário Nacional: Currículo em Movimento – Perspectivas Atuais. Belo Horizonte, 2010.

SOARES, Magda; BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Alfabetização e letramento: caderno do professor. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005.

VEIGA, J. Espínola.O que é ser cego. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.

 

1A proposta de Práticas Educativas para uma Vida Independente objetiva, por meio de propostas educativas, oferecer condições para que o(a) aluno(a) com deficiência visual possa exercer suas atividades cotidianas,  tais como cuidados pessoais, higiene, alimentação e organização pessoal com qualidade, independência e autonomia.

Publicado em 28 de agosto de 2018

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