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Grau zero da Barbárie

Pablo Capistrano

Por que alguém segue uma regra? Duas respostas podem ser dadas. Alguém segue uma regra, ou porque se tem consciência da importância e das vantagens de se seguir essa regra, ou porque tem medo da sanção. No primeiro caso a regra é entendida, seu conteúdo é absorvido, as vantagens de sua execução são claras e os sujeitos adequam-se a ela de modo espontâneo. Num mundo regido por pessoas dotadas de profundos sentimentos morais o crime talvez fosse uma exceção exótica. Talvez, num universo paralelo desse tipo, a vida seja muito tediosa. Tudo esteja em seu lugar. Os custos sociais para manter a vida "em ordem" sejam tão baixos que os telejornais acabem tendo que forjar um conjunto de notícias triviais para entreter o público. Mas confiar nos sentimentos morais do seu vizinho é sempre um risco. Uma aposta na humanidade do outro, na sua racionalidade, na sua capacidade de entender as vantagens de se seguir uma norma de convívio social é sempre um tiro no escuro. Nunca se sabe quando alguém vai saltar o limite que separa o homem de bem da besta selvagem.

Para esses casos o direito existe. Sempre haverá necessidade de que, de um modo ou de outro, haja um resíduo básico de medo, para que as regras fundamentais de convívio social possam se manter firmes. Incutir nas pessoas o medo de cometer um delito é algo tão fundamental para a construção de uma sociedade, quanto o sexo é para a vida de um casal ou uma casa para a manutenção de uma família. Fazer com que alguém pense 1000 vezes antes de chegar numa rua escura com uma arma na mão, parar o primeiro motorista que aparecer na frente, e arrastar seu filho de seis anos, por sete quilômetros, é um mecanismo vital. É certo que nossa tragédia é a tragédia de um sistema de execuções penais que simplesmente não funciona. A desgraça de um conjunto de fatores processuais, legais e jurídicos que não respondem às demandas reais de uma sociedade que agoniza todo dia, na incompetência fundamental de se cumprir um contrato social qualquer que ofereça segurança em troca da liberdade. Quando o cidadão abre mão de seu direito ancestral à auto tutela jurídica (direito posto na base de todas as sociedades arcaicas) ele não o faz por simples convicção. Quando as tribos germânicas trocaram a faida (a vingança familiar privada) e deixaram na mão da assembleia de chefes guerreiros (um arremedo de Tribunal) e na cabeça do rei o poder de julgar e de executar o direito, eles não o fizeram por acreditar que assim seria mais justo. Trocar o direito à vingança pela confiança na execução jurídica das penas é um cálculo de vantagens e desvantagens.

Todo cidadão sabe que o preço que o Estado deve pagar por ter retirado seu direito ao exercício a auto tutela jurídica (ou seja, de fazer justiça com as próprias mãos) é a certeza da sanção e a segurança social que essa certeza acarreta. No mundo real, tragédias como a que acometeu a família carioca que perdeu seu filho esmagado pelas rodas de um carro, acontecem de vez em quando. Impedir uma desgraça desse tipo não está totalmente no domínio dos homens. Até em sociedades cujo controle moral seja mais sólido, cuja educação seja mais elevada, cujo desenvolvimento social seja uma realidade, ainda sim, um crime desse tipo poderia ter acontecido. O problema não é que ele tenha ocorrido. O que nos aproxima a cada instante do grau zero da barbárie, do momento em que a barbárie se torna tão geral e irrestrita que desaparece, que se torna normal, aceitável, invisível, é a triste certeza de que uma tragédia dessas pode acontecer com qualquer um, a qualquer momento, em qualquer esquina escura, de qualquer cidade brasileira. A tragédia é que um crime desse tipo pode não ser uma exceção. O grau zero da barbárie chega, quando o cidadão tem a sensação que fez um mau negócio ao trocar seu direito a faida (a guerra privada) pela proteção de um sistema jurídico que não funciona. Responda sinceramente, amigo velho, se você fosse o pai desse menino que morreu tragicamente uma semana antes do carnaval de 2007, o que você faria: (A) confiaria na justiça de Deus; (B) confiaria na justiça dos homens; ( c) confiaria na sua própria justiça. Essa é uma pergunta delicada que só pode ser respondida com uma outra pergunta: por que alguém segue uma regra?

Publicado em 13 de fevereiro de 2007.

Publicado em 13 de fevereiro de 2007

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