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A paisagem como linguagem

Ieda Magri

Doutoranda em Literatura Brasileira pela UFRJ,  autora de Tinha uma coisa aqui

Quando todos os acidentes acontecem (7 Letras), lançado neste início de 2009, é o terceiro livro de poemas de Manoel Ricardo de Lima, uma voz constante nas conversas que interessam sobre a poesia brasileira contemporânea (agora escreve no Jornal do Brasil e no Diário do Nordeste; por 10 anos teve uma coluna no O Povo). Com Carlos Henrique Schroeder, coordena a Editora da Casa, que, segundo eles, “tem a ver com afeto, com amigos, tem a ver com o que ainda pode ser uma casa em sua maior diferença: conversar”. Manoel faz pós-doutorado com pesquisa sobre Joaquim Cardozo e Mário Faustino na UFSC, em Florianópolis-SC. Tem trabalho publicado sobre Leminski, Entre percurso e vanguarda: alguma poesia de Paulo Leminski e escreveu As mãos, livro de ficção que é, em si, uma pulsação de afeto, um amor delicado, uma poesia longa e sem versos.

Numa entrevista que fiz com ele por ocasião do lançamento de 55 começos, ano passado, dizia: “se pensar bem, escrevo mesmo muito pouco, mas não paro um segundo de pensar sobre escrever”. Este livro, há muito gestado (seu último livro de poemas é de 2000), é, assim, o que ele tem pra dizer, guardado, descoberto, escavado em oito anos de ruminações, riscos sobre papel e reescrita. O resultado vem com uma advertência na epígrafe de Emmanuel Hocquard: “Je ne comprends pas très bien ce que cela veut dire”, a lembrar que poesia é sempre essa tentativa de dizer o indizível, essa aposta na linguagem que diz mais do que as palavras. Porque as palavras sempre faltam. Isso, de escrever com o que se tem, com o que se cava, fica dito numa outra citação, de Nuno Ramos, que encerra o livro: “Se tivessem a coragem de falar com pedaços e destroços”.

Como os poemas que se dispõem entre uma citação e outra, que se acomodam dentro da caixa-livro em Quando todos os acidentes acontecem, o sujeito parece sempre delimitado, em moldura (a janela da casa, o vidro do carro, entre as paredes de uma sala, dentro de um ônibus, e nisto de novo a janela por onde se vê) em oposição a um mundo que ultrapassa o enquadramento da janela e da moldura, como no poema “da minha janela nada é diferente”: “e longe longe além daquela serra, tanto mundo aqui, sem gesto, / empobrinhado, cão de cão neste vidro sem chuva”. Ou em “use a vertigem como quiser”: “as paredes são desta sala /mas podem ser da outra / que fica aqui também / (...) Olhe até onde pode, olhe até / onde não há, este / jamais outra vez.”

Essa consciência do infinito cria a tensão entre o poeta e seu território pisado, vincado, marcado, e o território imaginário, sem fronteira e sem moldura, que só é acessado na experiência mesma da linguagem, que aparentemente dispensa a experiência como se não fosse preciso pisar o deserto inteiro para apreendê-lo. Como se a vista do poeta adivinhasse a linha do horizonte que não se vê. Essa relação entre sujeito, palavra e mundo é mais uma vez problematizada quando Manoel Ricardo de Lima coloca a experiência como resquício, como elaboração poética acessível para fora do eu-lírico (se ainda se pudesse falar em eu-lírico na poesia contemporânea) e apresenta um eu-cão em seu “o quadrado branco, ernst e a vitrola”:

 

é para ficar muito quieto muito muito quieto. o silêncio ainda não, o desastre ou o desejo. todo silêncio é impossível, e a vitrola. não vivemos sozinhos aqui nesta casa e falta uma perna – por menos que isso o nome sumiu. e ainda duvido como respondo os gritos que vêm da rua. sei que do meu lado o outro. com pernas certas exigidas, no chão: as quatro. depois esta conta de vida quando caminhamos: de mentiroso, de sete de nove. contar, como escrever, não tem importância. escrever não importa. há uma mulher que nos caminha a calçada, o asfalto o parque e toda a vizinhança. ao redor, faz círculos e vamos. estou indo, sempre indo. não peço para esperar, nunca peço. talvez dissesse algo como alto lá ou aonde pensa que vai mas não digo. e isto não é uma apatia. é a boca, começo e proa. e mesmo manco coxo quase errado roto, a rua é sempre a mesma, e arfo. é a boca de fogo. o desastre é o dom, cuida de tudo. e ninguém, nenhum e nada nunca incomoda. não posso ouvir, enxergo pouco. não preciso pedir nada nada, o outro espera. não preciso dizer nada, ele espera. dizer é quando tudo explode. ele sabe que não posso andar mais rápido. e espera. sei que é um amigo. ainda tenho algumas vontades. voltar a jogar futebol na areia da praia: uma cosmogonia, ou duas, a minha vida. e imagino que por isso alguém me olha e pensa em proteger meu coração. mas nunca vi os olhos dessa mulher. nem de longe. não sei a cor dos olhos dessa mulher. ela me caminha com o cão, o outro. não sei a sua voz, nem se consegue falar. se tem fala, se grita ou do que tem medo. se tem medo. mas ela é minha esperança, ela e o outro. as únicas que tenho

 

O quadrado, agora como moldura do poema, a se desprender do eu que fala, ainda insere o sujeito na casa, entre paredes. A alteridade dá ao sujeito cão uma imagem aproximada, em zoom de si mesmo: “sei que do meu lado o outro. com pernas certas, exigidas, no chão: as quatro.” E ao sujeito poeta, numa fala entrelaçada, a consciência da falta: “não vivemos sozinhos aqui nesta casa e falta uma perna – por menos que isso o nome sumiu”. (Há uma falta também na perna do poeta, que se lê em “Piauí”). E em outro poema: “Não sei como dizer o meu nome.” E sempre interrogado: “qual é o seu nome? (...) e repete / qual é o seu nome?” O nome, o sujeito que fala, parece dizer menos no poema do que a paisagem, que diz o sujeito, que o insere na vida para se desfazer no gesto da escrita do poema, como se, ao existir o escrito, o sujeito deixasse de existir sem ele, sem a paisagem, como no poema “aqui”:

“(...) uma só vez no lugar mais perto,
íntimo, e volto à imagem do sertão – porque
é nela a cisma – no diário, numa
nota do que  perdi. Um limite de troca
quando olho por dentro: onde vinco o deserto onde o nome
se apaga (...)”

A volta é dentro do poeta, lá o nome, lá uma identidade perdida que, no entanto, pelo território pisado, vincado na travessia do deserto – paisagem e interior – se apaga de uma materialidade e se refaz continuamente na virtualidade do que é escrito. Nesse gesto de vincar e apagar o nome sobre a paisagem é que o desenho do poema se torna possível e redefine a identidade do poeta que é o mesmo no aqui do sertão, da Lapônia ou o mesmo de qualquer fora do poema: “aqui também pode ser a Lapônia, um desenho / de Alvar Aalto ou o centrinho de Säynätsalo”. Como se o sujeito que vê a paisagem fosse o ponto de partida do olhar sobre o poema que, deixando o poeta minúsculo emoldurado pela janela ou pela parede, se estende infinitamente na paisagem, que é o poema. O poema não questiona mais a identidade - “ninguém / tem nome. nem aparição” –, mas a falta e é por isso que “tudo é buraco na paisagem” e “a paisagem é muda”.

O que falta ao cão é a perna. Ao poeta, ainda o deserto: “precisamos voltar a arrumar os / desertos, ele nos ensina. Ou / encena um desvio de hopper: o cão / deitado e o sol. Quem sabe a quem / aqui, quem sabe o que. a palavra a / palavra e a falta, esta falta: lejos.” O cão não precisa dizer nada, e, como consciência do poeta, sabe que “dizer é quando tudo explode”.

O poema, assim, nasce do exílio, da experiência cotidiana, do acidente, e é a própria busca de uma linguagem guardada que, acessada, é capaz de fazer nascer o poema. Maurice Blanchot, em O livro por vir, diz que “o poema é a profundidade aberta sobre a experiência que o torna possível”. Os poemas de Quando todos os acidentes acontecem falam, assim, de si mesmos como paisagem que o poeta vê, pressente e transforma em linguagem. E colocam em tensão a experiência bruta e a realização mesma do poema, como em: “(...) uma / paisagem é mínima e sem efeito / no vapor de luz, nos contornos / apagados e sem memória da / vida.(...)”.

Se o eu que fala é sempre um outro, e no livro de Manoel o outro ganha inclusive características de um cão ou de uma casa, evidenciando a largueza de possibilidades de identificação com a voz do poema, num dos últimos do livro, “Piauí”, o último da primeira parte, digamos assim, a estratégia é contrária: a presentificação do sujeito que fala torna palpável a experiência de que o poema é matéria e insere o vivido na própria matéria do poema, que se desenha como um quadro que se vai pintando em camadas e que comporta mais que uma história, mais que uma voz, mais que uma idade. O poema atravessa o tempo pelos sujeitos que nomeia e pela história contada, recontada, como se a paisagem vista dependesse do passado que comporta. Dito de outro modo e em perspectiva, tendo ao fundo o livro que se fecha em sua primeira parte, poderíamos dizer que “Piauí” reescreve os outros poemas, permitindo entrever uma estrutura de sentido que se lê em múltiplas direções dentro da paisagem (que contém tanto a problemática do visual no lugar da lírica na poesia contemporânea quanto a própria paisagem como matéria): a da história (inserção da paisagem no tempo e também memória), a das subjetividades (o sujeito que fala através da paisagem) e a da falta, que reintroduz, pela linguagem e pela matéria de que é feito o poema, a paisagem, o próprio poema – e por extensão, o livro - na história da arte (E “Piauí”, em uma de suas versões, já se chamou Paisagem, tendo sido publicado na Educação Pública):

 

Piauí

um

goethe encontra hackert
em roma e pergunta
algo acerca da pintura
de paisagens. é 15
de  novembro, 1786. diz
que hackert tem bom
gosto, diz que suas pinturas
parecem reais
212 anos depois
tombei um fusca num 15
de novembro. os 4 pneus
virados para o céu, era
verde. movi antes (interrompi,
imagino) a comemoração
cívica na avenida
a perna quebrada à altura
da coxa, o sangue escorrendo
pela testa, a cabeça aberta, uma
dormência e a impressão
severa: a ruína de herculano
escava o presente
antes de ir para nápoles
goethe fala de ganimedes
estendendo um cálice de
vinho a júpiter e recebendo
um beijo, isto é uma troca. isto
parece uma erupção do
vesúvio, talvez pense. e como
é estrangeiro pode ser
arrastado pela correnteza
de lava, mas talvez um vulcão
guarde algo, de presente

dois

goethe vai para nápoles:
vedi napoli e poi muori, dizem
por lá. alguém lhe conta de
vico, ele ri. há algo em vico
entre o bom e o justo, um
pó e uma cor cinza são
quase um convite para
ficar, um prazer
estou bem, mas vendo menos
do que deveria, ele diz. uma
imagem completa parece 
pouco, muito pouco. sulcar
o rosto sem tempo e sem
vestígio: o fusca foi
para o ferro-velho rápido
demais. o vesúvio explode
outra vez
arrebentei o rosto e a boca
no tronco da árvore. espatifei
o parabrisa, raspei a mão
direita pelo nariz, é
indiferente se estava inteiro
se alguém podia
aproximar e dizer alguma
coisa como: você está bem
ou você não parece ter índole
alemã

três

goethe visita o sopé do
vulcão e anota: algumas coisas
acontecem por hábito e outras
porque confiamos nelas, como
nos guias – lieber freund, wie
magst du starrend auf das leere
tuch gelassen schauen? –, para
fora as pequenezas e o mundo
dentro do menor espaço
possível, como num
fusca verde
a história é contra a
natureza, o fusca partido ao
meio e a árvore intacta: uma
paisagem é mínima e sem efeito
no vapor de luz, nos contornos
apagados e sem memória da
vida, como um acidente logo
na primeira hora da
manhã enquanto se ouve
uma canção que diz a
primavera que espero

 

A problemática da identidade em tensão com o território e com o exílio fica evidente em “Piauí”, mas, mais que o território, parece ser a cultura e a língua que marcam o sujeito e o inserem como um ponto preto identificável na paisagem. Um alemão em Roma, um brasileiro na América Latina, um nordestino no Sul. Isso teria alguma expressão, diria alguma coisa senão pelo que está atrás, ou antes do sujeito, sua paisagem na folha branca ou na tela? Como o vulcão, iminência da erupção presente na paisagem, o acidente, enquanto acontecimento-experiência, é história adormecida. Porque “dizer é quando tudo explode”, que o poema reescreve o acontecimento, escavando o presente como a ruína de Herculano, que só é vista porque o Vesúvio redesenhou a paisagem. Nisto, na linguagem que explode em poema, é que o sujeito se redefine.

No entanto, é sintomática a substituição do título do poema – antes “Paisagem” – por “Piauí”. No acidente, como no poema “embrulho número dois”, é o Nordeste inteiro que surge como a Itabira de Drummond: só um retrato, mas como dói:

escreve que é uma nuança,
outro tom de luz ou um grande
corte no dedo anular da mão
direita. que este sangue podre
rasga o nordeste inteiro lá
fora e que este amor teima, anda
e desanda nesta mesma
paisagem neste mesmo
deserto nesta farsa”

O acesso ao deserto é também o acesso à memória, fonte inesgotável do poema. Ele vai dentro, o território vincado, pisado – e o poeta tem os olhos voltados ao horizonte, mas também muito para o chão pisado, que junta coisas, como em “areia” e em “outras coisas no chão” – vem de dentro do poeta e se inscreve na imagem de fora, sempre escavando e gerando a tensão que torna possível o poema.

O que estou chamando de segunda parte do livro, o que Manoel chama de groove, é uma longa conversa sobre o deserto, iniciada por Manoel, Aníbal Cristobo e Eduardo Frota num poema coletivo, “deserto”, que se desdobrou, depois, em outros dois: “interferência para Manoel” e “quase.” É conversa infinita. O livro ainda tem um posfácio de Raúl Antelo, que lê a poesia de Manoel Ricardo de Lima sob o signo do acaso, do acidente.

Quando todos os acidentes acontecem
Manoel Ricardo de Lima
7 Letras, 86 p.
R$ 25,00

Publicado em 17 de março de 2009

Publicado em 17 de março de 2009

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