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As crianças e o consumo

Mariana Cruz

Nasci em meados dos anos 1970. Não comi fruta da árvore, não peguei bicho de pé, nunca joguei bolinha de gude; meu apartamento não tinha quintal, mas tinha um corredorzinho por onde eu andava de patins em cima do carpete verde (naquele tempo era moda ter carpete). Brincava de pique-esconde na garagem (sem cobertura) do meu prédio. Além dos amiguinhos da rua e da escola, tinha uma turminha no clube chamada “metal e os malucos”. Meu pai era médico e toda semana trazia do hospital resmas e resmas de papel dos eletros, que, depois de riscados, já não tinham serventia. O verso do papel era branquinho e vinha um grudado no outro, o que nos possibilitava fazer desenhos intermináveis em sequência. Meu irmão e eu deitávamos no chão e desenhávamos até cansar. A sensação que tinha ao ver meu pai adentrando em casa com aquele calhamaço era a mesma de quando ganhava um presente novinho da Estrela – a grande fabricante de brinquedos daquela época.

Apesar dos elementos urbanóides, posso me orgulhar da infância que tive. Meus pais trabalhavam bastante, mas estavam sempre presentes. Tive uma criação sem neuroses, frescuras, cobranças excessivas e com muito, muito companheirismo; enfim, uma infância livre e feliz. Meu irmão e eu dividíamos o quarto e tínhamos uma estantezinha com nossos livros e duas pequenas prateleiras com brinquedos: bambolês, elo maluco, pega-varetas, cubo mágico, alguns jogos de tabuleiro e algumas bonecas – umas cinco ou seis, no máximo. E, depois de alguns anos e pedidos, um Atari. Uma das coisas que mais gostava de fazer era pular elástico. Um brinquedo encontrado em qualquer armarinho do bairro ou na caixa de costura de casa. Meus pais, de classe média, davam-me quase tudo que pedia, não porque eles eram bonzinhos ou se sacrificavam para nos satisfazer as vontades, e sim porque o quase tudo que pedíamos era pouco, não pesava no orçamento. Ganhávamos presentes no aniversário, no Natal e, às vezes, no dia das crianças. Não havia tanta oferta nem tanta procura. Barbie, nunca tive, nem era considerada um E.T. por causa disso. Brincava com a das minhas amigas mais ricas, que compravam as suas nos Estados Unidos, onde era mais barato. De lá elas traziam também estojos de lápis importados que abriam dos dois lados. Mas mesmo elas, quando muito, tinham no máximo três Barbies e um Ken. Na televisão, durante toda a minha infância, passavam os mesmos desenhos: Pica-pau, Pantera Cor-de-Rosa, Pernalonga e seus amigos, Scooby-doo, Os Flintstones, Super-Amigos, Turma do Mickey. Logo, não éramos obrigados a comprar produtos com a estampa dos desenhos novos a cada semestre. Lembro de uma lancheirinha que tive da Pantera-Cor-de-Rosa que usei anos a fio – e nunca saiu de moda. Só parei de usá-la quando me toquei que nenhum dos meus amigos tinha mais lancheira. Aí pedi para minha mãe substituí-la por um tupperware. Estava crescendo.

Nunca tive sapato, relógio, meia, mochila com desenhos animados estampados; não porque não quisesse, mas porque não havia para vender e por isso não tínhamos vontade de comprar.

Um programa que fazia o maior sucesso na TV era o Sítio do Picapau Amarelo, aquele que tinha a Narizinho de cabelo enroladinho curto que crescia para cima. O único produto que o Sítio vendia, além do LP de ótima qualidade (com a trilha sonora de Gil, João Bosco, Doces Bárbaros, Lucinha Lins, Dori Caymmi, MPB4 e Sérgio Ricardo, entre outros), era a boneca da Emilia. Grande sacada da Estrela ao fazer um produto sem forçar a barra de consumo; afinal, a Emília era uma boneca e fazer uma boneca dela fazia o maior sentido (hoje o Sítio voltou passar na TV, faz bem menos sucesso do que naquela época, mas tem muito mais produtos a venda. No site do Sítio tem, inclusive, um link para compras). Depois veio a Turma do Balão Mágico, que também tinhas uns disquinhos bem bacanas, com participação do Djavan, Baby Consuelo, Roberto Carlos, Moraes Moreira. Além dos discos, vendia-se o boneco do Fofão – que era também um boneco.

Com o passar dos anos, a necessidade de vender foi aumentando. Foi quando veio a Era Xuxa. Eu já tinha 11 anos quando a Xuxa mudou-se para a Globo. Eu não era muito ligada nela, mas via o Xou da Xuxa de vez em quando, afinal achava-a super bonita, carismática e espontânea. E no Xou passavam bons desenhos, como Caverna do Dragão e He-man. Foi então que eu, no meu olhar de pré-adolescente, comecei a notar que, diferente dos outros programas infantis, a imagem da Xuxa "vendia" um monte de coisas que não tinham a ver diretamente com ela: sandálias, sapatos, bonecas, estojos, chicletes, borrachas, sucos, até comida.Estranhava aquela profusão de produtos associados ao nome da “Rainha dos Baixinhos” e me perguntava: por que vendiam a sandália da Xuxa, se ela só usava botas Por que existia a boneca da Xuxa, se ela não era uma boneca, como a Emília?

Mas isso foi só o início. As crianças gostaram dessa fartura de produtos, e as empresas perceberam que elas queriam mais. Os pais, por sua vez, pensaram que podiam suprir sua ausência dando-lhes tudo que pedissem. Era algo aparentemente bom para os três lados. A partir daí desandou-se a vender tudo que era ligado ao universo infantil. Todas as apresentadoras infantis que vieram na esteira da loura: Angélica, Mara Maravilha, Eliana e afins tinham sua réplica de plástico, além de jogos, roupas e acessórios com seus nomes e imagens. Os desenhos, que antes tinham adultos como personagens (Super-Amigos, Scooby-doo, Flintstones), passaram a ser protagonizados por crianças, e elas foram se tornando super poderosas. Muitas delas passaram, inclusive, a comandar as compras da casa, como mostra o documentário imperdível Criança, a Alma do Negócio, de Estela Renner.

Com novos desenhos aparecendo a cada semestre, há sempre muita coisa para ser comprada, novos ídolos, novas necessidades a serem inventadas e inseridas em nossas vidas como atávicas, inatas. Hoje, é rara a mochila infantil que não carrega um personagem de desenho animado estampado. Há grande variedade de personagens de desenhos; os dedos das mãos e dos pés são insuficientes para contar. Assim que são lançados, os desenhos já têm uma penca de produtos postos à venda.

A TV fechada (por assinatura) agora oferece diversos canais com programação infantil fulltime. A qualquer hora do dia e da noite, é só ligar e escolher entre as diversas opções e ver desenhos por horas seguidas; nos intervalos, os produtos desses desenhos são colocados à venda por preços nada “baixinhos”, em comerciais estrelados por crianças espertinhas e habilidosas. Difícil resistir. Os pais também são aliciados nessa empreitada consumista. Sentem-se culpados por ficarem distantes dos filhos, pois trabalham duro para ter dinheiro para comprar coisas para seus filhos, a fim de preencher essa culpa. Um ciclo um tanto vicioso. Talvez se trabalhassem menos e ganhassem menos não precisariam comprar tantas coisas: se sentiriam menos culpados.

Estimulados pela mídia e obedecidos pelos pais que lhes saciam todos os desejos de consumo, as crianças têm sua capacidade criativa cada vez mais embotada; com isso, tornam-se mais vorazes para consumir e mais insatisfeitas com o que têm. Os brinquedos fazem tudo por eles e logo são postos de lado.

Não é papo saudosista de quem acha sempre que “na minha época” era diferente. De fato era, pois “na minha época” as crianças não eram viciadas em televisão, não queriam comprar tudo que viam pela frente, não escolhiam o menu da casa, não usavam salto alto e não eram obesas (apesar de tomarem refrigerante, coisa que hoje em dia está mudando, pois o suco está ganhando espaço no menu infantil, sinal de que nem tudo está perdido). Atualmente, nem bem acabou o carnaval e os supermercados já ficam repletos de ovos de Páscoa; em outubro, logo depois de trabalhar o Dia da Criança, os shoppings já estão cheios de luzinhas esperando o Natal. Não há tempo a perder, afinal tempo é dinheiro.
 
Saudades dos tempos em que resmas de papel de eletro e o elástico do armarinho da esquina eram o que bastava para ser feliz.

Publicado em 17 de março de 2009

Publicado em 17 de março de 2009

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