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Bachelard e a ciência contemporânea
Mariana Cruz
Em fins do século XIX e início do XX, a história das ciências teve uma influência marcadamente positivista. Tal corrente fortaleceu a crença de que através do uso da razão o homem conseguiria dominar completamente a natureza. É inegável que grandes descobertas foram feitas; entretanto, junto a elas, grandes danos sofreu a natureza. Não só danos externos. Internamente viu-se ruir as estruturas do edifício científico; tal abalo foi causado pelas novas teorias científicas que contradiziam o caráter objetivo e incontestável da razão, mostrando que a crença na verdade absoluta e na razão universal tinha seus alicerces fincados em solos movediços.
O epistemólogo francês Gaston Bachelard elaborou uma concepção científica inteiramente nova, ao atrelar o progresso científico a retificações de erros. De acordo com ele, o saber contemporâneo é descontínuo, faz-se através de rupturas com a tradição e saltos de uma concepção para outra sem que haja ligação entre elas; está, por isso, sujeito a constantes mutações; seu modo de funcionamento vai se estabelecendo de acordo com seu desenrolar. Não se trata, assim, de um saber acumulado, e sim de um saber sempre novo. Para ele, o positivismo é uma forma ultrapassada de fazer ciência, considerando-a algo ideal, longe da prática, da concretude, da materialidade existente na ciência contemporânea, que está em constante evolução, aberta a qualquer tipo de experiência desde que os métodos utilizados sejam adequados.
O objeto desta nova ciência não é dado pela natureza, é algo constituído pelo sujeito. Se, no positivismo, o sujeito era um mero receptáculo das verdades científicas, o sujeito da ciência contemporânea é quem constrói o objeto científico pela junção que faz entre razão e técnica. Tanto o objeto científico é construído pelo sujeito como este também é construído pelo objeto: o sujeito se faz fazendo; se constrói construindo.
Bachelard não crê em princípios absolutos da razão; para ele, a razão é móvel e está sempre aberta à aquisição de novos conhecimentos. Prova disso é o surgimento de novas teorias científicas, como a Física quântica, as Geometrias não-euclidianas e a Teoria da Relatividade, que são retificações feitas a partir das teorias anteriores e responsáveis por verdadeiras revoluções no campo das ciências.
Apesar dessa nova concepção bachelardiana, a Filosofia das Ciências apresenta alguns problemas, pois cientistas e filósofos têm formas distintas de se relacionar com o conhecimento. Os cientistas consideram a Filosofia das Ciências um conjunto de fatos científicos; os filósofos, por sua vez, buscam a unidade do pensamento por desvalorizar a pluralidade dos fatos e a multiplicidade dos saberes. Ou seja, enquanto o primeiro grupo entende a ciência como algo meramente factual, para o segundo o objetivo dela é alcançar o pensamento puro. Tais concepções, na visão de Bachelard, não dão conta do real significado da Filosofia das Ciências da contemporaneidade. Ao invés dessa separação, deveria ocorrer uma síntese entre esses opostos, em que o empirismo da ciência e o racionalismo da filosofia andassem lado a lado e o a priori e o a posteriori se alternassem de acordo com a necessidade, sem que fosse preciso optar por apenas um deles. Se somente um aspecto do conhecimento for levado em consideração, ocorre estagnação no processo científico, na medida em que a Filosofia das Ciências fica servindo para o estudo de fatos ou para o estudo do geral, tornando-se uma mera historiografia da ciência ou então uma metafísifica distante da realidade. É devido à alternância desses dois modos de apreensão que as teorias transformam-se.
Tal constante transformação talvez dificulte uma definição precisa de Filosofia das Ciências. Apesar dessa dificuldade, Bachelard ressalta determinadas características que esse saber contemporâneo deve apresentar: ser uma construção feita a partir da junção entre razão e técnica; não pretender ser, como a ciência de outrora, uma representação da realidade; criar uma linguagem própria da ciência a fim de que esta se afaste da linguagem natural e que se possa assim alcançar um grau cada vez maior de objetividade; apresentar um caráter social feito por uma racionalidade coletiva, pois, de acordo com o epistemólogo, é da diversidade dos espíritos científicos que se chega à verdade. A nova epistemologia deve captar o dinamismo presente no conhecimento científico, coisa de que os sistemas filosóficos fechados não conseguem dar conta. A despeito disso, pode-se utilizar elementos filosóficos retirados dos sistemas a fim de tornar mais claros determinados aspectos da atividade cietífica. Outra tarefa da epistemologia é não deixar que a atividade científica se contamine por valores particulares (denominados “obstáculos epistemológicos” por Bachelard) que venham a surgir, pois estes representam um atraso ao desenvolvimento da ciência.
De acordo com Bachelard, a atividade científica pode e deve partir de várias correntes filosóficas, e não ficar presa a uma somente. Ele acredita em uma Filosofia das Ciências polifilosófica, cujo conhecimento é analisado a partir de várias filosofias, uma vez que elas fizeram parte de seu processo evolutivo. Uma só filosofia é incapaz de explicar tudo.
Se antes cada nova teoria representava um andar a mais no edifício científico, após Bachelard cada nova teoria destrói esse tal edifício e uma outra construção inteiramente nova é erguida. Além disso, a história das ciências instaurada por Bachelard é recorrente, é uma história cujos fatos passados são analisados a partir da ciência atual, em que o presente serve de ponto de partida para desvendar as dificuldades do passado e entender como se desenrolou o processo da ciência até os dias de hoje. Cabe à História das Ciências não descrever pura e simplesmente os fatos e sim posicionar-se diante deles, apontando os fundamentos e a validade das descobertas, separando os erros dos acertos, o estéril do fértil. Para tanto, há que se ter postura normativa diante da História das Ciências e não ser um mero espectador dos fatos. Tal julgamento deve estar ligado a valores verdadeiros, valores de racionalidade que se opõem aos falsos valores. Daí Bachelard fazer diferenciação entre história perecida – que seria aquela da pré-ciência, que se baseia em teorias sem valor científico – e história sancionada – aquela baseada em dados científicos.
Para que se possa descrever a atividade científica do passado através da lente do conhecimento atual, é preciso que a História das Ciências esteja baseada na epistemologia, uma vez que ela indicará quais são os valores verdadeiramente científicos. Por outro lado, a epistemologia deve também lançar mão da História das Ciências para que, através dos dados históricos obtidos, possa distinguir aquilo que serviu como fundamento para a ciência atual daquilo que não serviu. Dessa forma, epistemologia e História das Ciências devem se utilizar mutuamente.
Referências
BULCÃO, Marly. O racionalismo da ciência contemporânea: introdução ao pensamento de Gaston Bachelard. Edição renovada e ampliada. Aparecida: Ideias & Letras, 2009.
Publicado em 12 de janeiro de 2010
Publicado em 12 de janeiro de 2010
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