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Claudio Willer
Luiz Alberto Sanz
Os poemas e os comentários que aqui vão foram publicados há 42 anos, pela Massao Ohno, editora de São Paulo que desempenhou papel renovador ao privilegiar a poesia e a beleza em suas edições. Anotações para um apocalipse de Claudio Willer, é uma brochura simples (56 páginas no formato 17,5 cm por 12,5 cm) e um livro complexo, um soco no cérebro, uma pancada daquelas que remexe tudo que organizamos, se não for repelida por um sólido elmo dotado de viseira inexpugnável. Composto por Anotações para um apocalipse — poemas e As fronteiras e dimensões do grito — manifesto, tem uma unidade indissolúvel. Também a introdução de Roberto Piva manifesta a mesma essência libertária que as palavras de Willer.
Através dos tempos, Claudio Willer (nascido em 1940) seguiu escrevendo (poesia, crítica e resenhas) e traduzindo (destacam-se Artaud e Leautréamont). Quem quiser procurar encontrará muitas citações na Internet. Aqui destaco trechos de poemas do livro Jardins da Provocação, de 1981.
FAZ TEMPO QUE EU QUERIA DIZER ISSO
ainda não conseguiram destruir o mar
não foram capazes de estrangulá-lo com fios elétricos e rodovias
nem de o retalhar com cercas
ou lotear as manchas do seu dorso
o mar ainda existe
presente na consciência dos amantes
nas madrugadas de suor cúmplice estampado nos lençóis
(...)
HOMENAGEM A DASHIELL HAMMETT
uma geração pulou no abismo
mas você foi mais adiante
ou saltou mais fundo
levantou a tampa da vida
para ver o que havia por baixo
para ver que não havia nada embaixo
Mas vamos ao apocalipse, começando com as primeiras palavras de Piva:
Toda poesia oficial brasileira, todo este acervo pernicioso-fútil de neoparnasianos, concretistas, marxistas de salão, rilkeanos-lacrimonosos, representa um desejo insaciável de autoridade, de impotência mística, de resignação artificial & patológica diante de uma sociedade patriarcal & opressora. A rigidez biológica causada pela mania moralizadora consiste em que os seres humanos adotem uma atitude hostil contra o que está vivo dentro deles mesmos. A formação do caráter na pauta autoritária, diz Wilhelm Reich, tem como ponto central não o amor parental mas sim a família autoritária. Seu instrumento principal é a supressão da sexualidade na criança & no adolescente. No panorama miserável da nossa sociedade puritana & convencional surge a figura de Claudio Willer como um protesto contundente contra todo o estável, fixo, obrigatório. Sua mensagem é a mesma de Blake: O caminho do excesso leva ao palácio da Sabedoria. Isto comprova a sua fidelidade à missão freudiana do artista como o Grande Desinibidor. Para Willer, como para Breton: La poésie se fait dans un lit comme l'amour.
No manifesto, Willer diz, aproveitando para citar Desnos:
O situar-se no seu tempo é essencialmente um situar-se frente à vida. E o situar-se frente à vida desta categoria de literatos foi muito bem descrita pelo ensaísta francês Pierre Berger em seu estudo sobre Robert Desnos:Pois a arte dos poetas contemporâneos é literária, unicamente literária. Ou seja, imitativa e frequentemente cheia de covardia. Ao lado disto está a vida. Ora, hoje em dia os poetas não vivem. Ao contrário, desprezam os que vivem. Estas pessoas proclamam sua admiração por Lautréamont, por Rimbaud, mas quando se lhes propõem um personagem do mesmo gênero (um Antonin Artaud, por exemplo), eles gritam seus escândalos. Eles invocam a loucura. Eles sequer são curiosos, eles não têm a mínima curiosidade de ser testemunhos de qualquer coisa. Atualmente, os poetas deixaram de ser loucos, muito pelo contrário, eles fazem negócios.
Nas suas Anotações, Willer investe ainda mais concretamente, com a concretude da práxis, para quebrar o cerco da covardia e a unicidade literária. Toma por epígrafe um trecho de William Blake:
Os profetas Isaías e Ezequiel jantavam comigo, e eu lhes perguntei como tinham ousado assegurar com tanta certeza que Deus lhes havia falado; e se não tinham pensado na possibilidade de serem mal compreendidos e causa de arbitrariedades. Isaías respondeu-me: "Não vi Deus algum, tampouco o escutei, numa percepção orgânica finita; mas os meus sentidos descobriam o Infinito em tudo, e como naquele tempo eu estivesse certo, e ainda o estou, de que a voz da indignação legítima é a voz de Deus, não me preocupei com as conseqüências, mas escrevi.
Só então inicia sua poesia sem versos, parágrafos, rica em ritmo, metáforas, beleza... Nelas, o realismo atravessa fronteiras, desprende-se do natural, mergulha nas três dimensões e ergue-se por trás da aparência. Revela-se em lugar de ocultar-se.
Recolho dois poemas e lhes desejo boa viagem.
Subúrbios da Mente
(Duas visões da cidade)
I
Um vento de paisagem submarina nos atira ao rosto a verdade da tempo presente. A luz verde, penetrante e incisiva, invade um dos lados da cidade, silenciosa sob as capas de asfalto e musgo. A luz azul, seus raios girando a partir da centro, corre aos estampidos no meio das grades, dos mausoléus e dos pombais. A luz alaranjada, borbulhante, circula dentro de nós mesmos. Eu aspiro um horizonte de distância colorida, um horizonte de direções e ventos onde galopa insaciável a minha sede de vida e amores fatais, de crimes-sonata, de alucinações passionais — cúmplice de conspirações subterrâneas e atentados noturnos, conivente com todas as armas fabricadas a mão, sorridente à hora de certos crimes espontâneos e meticulosos, sei que meu amor é uma advertência e um cravar de sulcos na superfície, e que meus passos sempre descreverão roteiros de tempestades, maresias e chuvas de ópio. Os raios de luz colorida acompanham meus passos, à medida que vão roendo o cal, descobrindo as estruturas do nosso tempo e a profunda realidade dos insetos salteadores.
II
A magia das cidades que se espreitam, tensas e angustiadas pela angulosidade da distância mínima que as arrebata, aos poucos arrasta nossas almas. Os subúrbios, estas lembranças oleosas, estes fragmentos de revistas velhas acenando com sua dramaticidade de brisa noturna e outono gasto. Meus pés se afundavam na pedra e no cimento dos caminhos e descobriam o hálito morno de cidade-fantasma e a pulsação mais íntima da alma que busca libertar-se. A noite, aos poucos, fechava sua mão de nebulosa densa ao meu redor e tudo eram apelos, chamados, gritos audíveis, desejos de amar ao nível das carícias pornográficas, através da porosidade dos portões, da familiaridade das frestas e janelas ovais. Eu cruzava pela menina pálida e desgrenhada que desesperadamente procurava um fragmento do seu seio, perdido na noite anterior no pátio baldio de uma fábrica, e por crianças seminuas carregando varapaus pontudíssimos, coroados por troféus de hímens e tranças, fáceis frutos colhidos pela noite, a noite dos maremotos sufocados e das chuvas de sapatos velhos cobrindo as calçadas, as calçadas do meu amor, as calçadas que só eu saberia percorrer, carregando vestígios de flagelações como preciosa dádiva, transfiguração e aura daqueles que farejam o Apocalipse em palavras emaranhadas e comovem-se profundamente com o bater de carrilhões gastos e o zumbir do vento nas tetas de folha-de-flandres.
Ao norte da alma
O interior dos mangues é tentação e deserto. Sobre ele flutuamos, carregando aljavas de maconha, atentos na espera dos primeiros fogos fátuos, alimento incorpóreo dos que têm febre. No meio de folhagens eletrizadas e restos de múmias, serpentes de neon anunciam tempos novos. Os sobrados de azulejos azuis, lambidos por vermes cintilantes e sôfregos, possuem-se uns aos outros enquanto naufragam no mangue sensível. Estátuas de brasa, sobressaltadas guardiãs da própria sombra, delimitam caminhos, anunciação e fronteira para aquele que vem com passos carregados de musgo e sabedoria.
Esperar é o caos quando duas noites se fundem num só arco-íris, num pórtico dourado, ou numa ponte de Dinamarca que se derrete. Porém imagens de sereias lacradas e atravessadas por aguilhões, de avenidas de corpos brancos, de estátuas de brasa sexualizadas pela distância dos rituais, sempre nos serão sombra e amparo, na virgindade da espera e na lucidez da procura.
Publicado em 12 de janeiro de 2010.
Publicado em 12 de janeiro de 2010
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