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Cortázar e o texto político
Alexandre Amorim
Como autoexilado em Paris e observador da sociedade argentina em particular e da latino-americana em geral, Julio Cortázar desenvolveu um meio próprio de escrever politicamente. Desde a primeira publicação de seus contos, no livro Bestiário (1951), ele já demonstrava sofrer influência da literatura fantástica e extravasar pela escrita sua visão particular do mundo, ao mesmo tempo que declarava suas posições socialistas. Sem fazer política panfletária, pelo menos em textos ficcionais, o argentino nascido em Bruxelas conseguia denunciar ao resto do mundo as desigualdades e atrocidades acontecidas na América Latina, mas também anunciava as esperanças revolucionárias que surgiam.
Autoexilado em Paris desde os 37 anos, por não concordar com o regime peronista na Argentina, Cortázar trabalhou como tradutor da Unesco em carreira paralela a seus trabalhos de escritor. Mesmo distante, no entanto, não deixou de criticar a situação de exceção em que se encontravam vários países do continente americano. Afirmava que “a luta pelo socialismo na América Latina deve enfrentar o horror cotidiano guardando, de maneira preciosa e zelosa, aquela capacidade de viver que desejamos para esse futuro, com tudo aquilo que isso supõe de amor, de jogo e de alegria”. Mesmo em um tempo de poucas esperanças, Cortázar insistia em enxergar o que havia entre as coisas – no “vácuo entre as coisas”, como ele dizia, onde a imaginação se confunde com a realidade. Para ele, sempre foi assim: o fantástico e o real estavam em um mesmo nível. A política convivia com a literatura sem que uma fosse considerada mais ou menos verdadeira que a outra. Lutar contra o horror da repressão e da imposição de um poder ditatorial foi motivo suficiente para que o escritor considerasse o uso de sua maior arma: a criatividade literária.
Assim, o conto “Casa tomada”, de Bestiário, pode ser lido como uma referência à perseguição aos comunistas e à imprensa durante o primeiro período peronista. A história dos irmãos que se sentem cada vez mais encurralados até que são expulsos de sua própria casa, tomada por algo que o leitor jamais saberá o que é, pode ser lida como uma invasão peronista à liberdade do cidadão. É dito, inclusive, que carros faziam propaganda peronista através de alto-falantes que faziam o som invadir as casas. O próprio exílio de Cortázar parece retratado aí, uma vez que o escritor resolveu sair de sua terra por não poder conviver com o regime de Perón. Uma frase contida no conto, “pode-se viver sem pensar”, é emblemática de um comportamento submisso às violências impostas por um regime persecutório.
Como já disse o próprio autor, sua visão do mundo não é através das coisas em si, mas através do “vácuo das coisas”. Toda sua literatura está baseada nessa capacidade de ver além da mera aparência e do primeiro significado de cada coisa – ver o que cada coisa e cada um pode significar, ver o potencial, mesmo que não esteja completamente relacionado a seu significado real. Cortázar não distinguia o real do fantástico, não saberia limitar sua criatividade e jamais poderia conviver com a ameaça à liberdade dos regimes repressores que se sucederam na Argentina. De Paris, participava na luta contra a supressão dos direitos civis em cartas, declarações, crônicas, mas principalmente através de sua literatura. Em entrevista a Ernesto Bermejo, afirmava que “quando faço política, faço política. E quando faço literatura, faço literatura. Mesmo quando faço literatura de conteúdo político – como O livro de Manuel, por exemplo, faço literatura. O que eu simplesmente faço é colocar o veículo literário, não direi a serviço, mas em uma direção que possa ser politicamente útil”.
Na Argentina, Perón governou após uma ditadura militar e durante nove anos sob um modelo fortemente nacionalista e paternalista. Assim como Getúlio Vargas no Brasil, Perón tem até hoje defensores aguerridos, cujos argumentos orbitam em trono dos avanços trabalhistas e do crescimento industrial, e detratores também exaltados, que reclamavam de sua política ditatorial e de base fascista. Em 1955, o presidente foi deposto por novo golpe militar, que fechou o Congresso, baniu o partido peronista (Justicialista), fuzilou opositores e interveio em todos os sindicatos. A constituição elaborada por Perón foi substituída pela Constituição de 1853. Em 1958, eleições parciais foram realizadas, mas em 1962 o civil José María Guido conseguiu induzir militares a aceitá-lo como novo ditador. Seu governo durou até o golpe de 1966, quando três generais sucederam-se no poder através de um estatuto que substituiu a Constituição. Por pressão popular, uma eleição se deu em 1973 e, ainda que Perón continuasse banido de seus poderes políticos, o candidato Cámpora, de seu partido, foi eleito para a presidência. Cámpora renunciou para que Perón pudesse ser eleito, mas o governo do general populista duraria pouco, por sua morte de ataque cardíaco.
Em 1976, mais um golpe atravessaria a história argentina. Uma junta militar derrubou a sucessora de Perón (sua esposa, Isabelita). Esse golpe durou até 1983 e ignorou direitos civis e humanos, sendo até hoje investigados os casos de tortura e desaparecimento de pessoas. Em 1977, os contos “Segunda vez” e “Apocalipse de Solentiname”, de Alguém que anda por aí, foram proibidos pela junta militar governante e o livro teve que ser impresso no México. “‘Segunda vez’é um conto que concentra em seis páginas parte do horror da repressão argentina”, diz o autor. A alternância da visão que se tem da personagem, entre suspeita e cúmplice, é justamente a visão turva que se tem em um olhar comprometido com um regime de força. É a derrota da razão, não pela via criativa do fantástico, que reinventa a razão, mas pela via obscura da repressão, que mata a razão para impor uma vontade própria e única.
O apoio norte-americano às ditaduras latinas durante os anos 1970 ajudou a formar um horizonte negro na Argentina, Brasil, Chile, Peru, Paraguai e outros países que foram obrigados a se submeter à truculência e ignorância militares, além de sofrerem os horrores da Operação Condor, financiada pelos Estados Unidos, cujo maior objetivo era manter o socialismo distante da América Latina através de ações violentas, como censura, tortura e terrorismo.
Cortázar acompanhava de Paris os acontecimentos, e se ressentiu de ser acusado de acomodação no exílio. Escreveu manifestos e contos, emitiu protestos a órgãos internacionais denunciando as arbitrariedades e a barbárie em seu país, mas não podia voltar e se arriscar a ser preso, provavelmente torturado ou mesmo morto pela ditadura. No Chile, o escritor apoiou Allende, que pretendia construir uma via chilena para o socialismo. Eleito em 1970, o presidente chileno foi deposto por militares três anos depois. Antes disso, Cortázar já apoiava a resistência criada para defender o presidente, visto que atentados e tentativas de golpe se tornavam constantes. Após o golpe, ostensivamente apoiado pelos Estados Unidos e produtor de uma das mais sanguinárias ditaduras latino-americanas, Cortázar participou do Segundo Tribunal Russel, para investigar os abusos e violações aos direitos humanos cometidos em seu continente de origem.
Ainda em 1973, o escritor lançou O livro de Manuel, novela que a esquerda considerou frívolo pelo seu tom muitas vezes lúdico ou mesmo brincalhão, como previsto pelo autor. A história é construída por dialogismos, dividida entre o enredo formado pelos componentes de um grupo revolucionário (“Roda”) e os recortes de jornais sobre golpes militares, torturas e abusos de poder que eles constroem como um manual, a ser oferecido a Manuel, uma criança de três anos de idade. Esteticamente inovadora e importante denúncia política, Cortázar ganhou o prêmio Medicis por essa novela, e doou o dinheiro do prêmio à luta revolucionária contra os militares no Chile. É criticado por uma posição cômoda de apoio à luta socialista. Apesar de reconhecer que sua literatura procura estar engajada às lutas da América Latina, responde às críticas com o argumento de que luta através justamente da literatura, como intelectual. E critica a esquerda: “No campo revolucionário, você também encontra os bons e os maus, e no campo dos bons, os que podem ter razão e os que não têm... etc. etc. etc. quase ao infinito”.
Ainda assim, Cortázar continua a favor de um caminho socialista para seus conterrâneos latinos. Desde que visitou Cuba, em 1963, o escritor tornara-se um admirador da Revolução Cubana. No conto “Reunião”, publicado em 1966 no livro Todos os fogos o fogo, um narrador asmático que narra uma guerrilha pode ser facilmente identificado como Ernesto “Che” Guevara, embora nunca explicitamente mencionado. Mesmo que, em 1971, Fidel Castro tenha condenado a atitude de Cortázar por indagar sobre desaparecimentos em Cuba, o escritor seguiu no apoio ao socialismo como resposta ao futuro da América Latina, embora de maneira mais independente e fugindo de ideologias sedimentadas. Em 1979, apoiou a tomada de poder da Frente Sandinista na Nicarágua e em 1984 lançou dois livros de crônicas abertamente de esquerda: Nicaragua tan violentamente Dulce e Argentina: años de alambradas culturales. Ainda durante o Tribunal Russel, o argentino escreveu nova colagem, entremeada de textos e quadrinhos originais do personagem Fantomas com seus diálogos adulterados: Fantomas contra os vampiros multinacionais é uma alegoria política contra os regimes de direita latino-americanos em que o próprio Cortázar e outros colegas escritores são personagens que lutam pelo direito de escrever e contra o “atentado à inteligência” que eram as ditaduras ocorrentes.
Julio Cortázar é, antes de tudo, um escritor. Talvez por isso se preocupasse em manter um nível estético e vivenciar uma criatividade constante em suas obras. Mesmo que não se ocupasse da política panfletária ou denunciadora, o autor exilado e proibido em sua própria terra descrevia de maneira sutil a angústia de ter a liberdade tomada. Em um dos maiores exemplos de sua maestria com as palavras conjugada com seu engajamento político, Cortázar escreve no livro Fora de Hora, de 1982, o conto “Satarsa”. Lidando com uma de suas obsessões, os palíndromos, a história é resumida de forma brilhante na tese de doutorado de Valdenides Cabral de Araújo Dias: “um relato em que homens e animais vivem o mesmo jogo de miséria e perseguição. (...) O jogo verbal lhe confere uma nova dimensão – a social – dentro da habilidade que o autor demonstrou anteriormente ao escrever tendo animais por personagens, quando a sua preocupação era somente literária”. São ratos que simbolizam a polícia da ditadura argentina – e os fugitivos. São todos ratos, como são todos homens. Cortázar enxerga o vácuo entre as coisas, vê em policiais e perseguidos os homens que são. Humaniza personagens, mas nunca a máquina covarde de um sistema ditatorial.
O autoexílio de Julio Cortázar foi alvo de críticas severas, mas serviu para que o escritor pudesse desenvolver ainda mais seu olhar fantástico – o olhar em que realidade e fantasia têm o mesmo peso, porque têm a mesma influência no observador. Sonhar com a liberdade e escrever sobre esse sonho tem o mesmo peso de denunciar a violência da arbitrariedade. São faces da mesma moeda, e Cortázar as descreveu de forma precisa, ainda que alegórica. A arte pode servir a uma ideologia, mas nunca estar presa a ela. Cortázar mostrou que sua posição política não ofuscou sua visão de artista.
Publicado em 12 de janeiro de 2010
Publicado em 12 de janeiro de 2010
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