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Pantomimas da expressão e a moderna mirada de Argan

Nataraj Trinta

Mestranda do Programa de História Social da Cultura- PUC-Rio

Se existem músicas sem palavras, por que não haveria de existir uma pintura sem coisas?

Argan, G. C. Arte Moderna

Der Zeit ihre Kunst, der Kunst ihre Freiheit
(À nossa era, a sua arte; à arte, a sua liberdade)

Mote de Secessão de Viena

O Expressionismo, segundo Giulio Argan, é um fenômeno artístico europeu que nasce no interior das correntes modernistas como concentração da pesquisa sobre o problema específico da razão de ser e da função da arte. Uma produção que se manifesta no final do século XIX como uma tendência anti-impressionista que parte do próprio impressionismo através de artistas como Toulouse-Lautrec, Gauguin, Van Gogh, Munch e Ensor.

A alegria de viver por Henri Matisse, 1905-1906. The Barnes Foundation, Merion Station, Pennsylvania
A alegria de viver por Henri Matisse, 1905-1906. The Barnes Foundation, Merion Station, Pennsylvania

Impressionismo e Expressionismo não tratam das práticas transcendentes ou das experiências que vão além dos limites da vivência humana. Exprimem, antes de tudo, o encontro direto do sujeito (artista) com o objeto (a realidade) na recusa à idealização a priori, às normas do belo. No entanto, o primeiro declara seu realismo no plano do conhecimento, da tradução visual da pintura em sua essência ótica. Já o Expressionismo se dedica a uma ação pictórica volitiva de individualidades críticas à sociedade do fin de siècle e sua utopia do progresso universal.

Retrato de Henri Matisse por Andre Derain, 1905. Philadelphia Museum of Art
Retrato de Henri Matisse por Andre Derain, 1905. Philadelphia Museum of Art

Comumente identificado como um movimento do início do século XX na Alemanha, o Expressionismo é composto por atividades em dois centros distintos: o francês fauves e o movimento alemão Die Brücke. Ambos são influenciados intelectualmente por Bergson e Nietzsche, mantêm relações com suas respectivas tradições figurativas sem se ater às particularidades nacionalistas, adotam como ponto de referência a arte de povos considerados pelos europeus como primitivos e correspondem a “uma solução dialética e conclusiva da contradição histórica entre clássico e romântico, entendidos como ‘constantes’, respectivamente, de uma cultura latino-mediterrânea e de uma cultura germânico-nórdica” (Argan, 1992, p. 228). Para Argan, a razão histórica comum dos dois movimentos paralelos é o compromisso de enfrentar conscientemente a “agudização da divergência entre a cultura latina e germânica, inclusive para justificar por motivos ideais a disputa pela hegemonia econômica e política na Europa, que logo conduziria à guerra”.

Nacionalismo, internacionalismo e cosmopolitismo; três conceitos que – no período em questão – exprimem seu primeiro e grande momento de potência e tensões. Se hoje há o discurso teleológico que considera o evento da Grande Guerra, à época dos 40 anos que a antecederam nada se supunha, mas vivia-se sob as ambiguidades e conflitos de três ideologias que, antes de serem completamente estanques, se imiscuíam, se atritavam e davam sinais de existência em todas as esferas sociais.

Femme Fatale por Kees van Dongen,  1905.
Femme Fatale por Kees van Dongen, 1905.

De 1875 a 1914, a criação artística se tornou mais do que nunca internacionalizada, devido às políticas imperialistas e à maior facilidade de deslocamento de europeus através dos países da Europa e seus domínios coloniais. Segundo Eric Hobsbawm, a efervescência cultural era menos perceptível em países de prestígio reconhecido e produção artística ininterrupta, embora até na França da Terceira República e no Império Alemão após os anos de 1890 fosse possível observar especial intensidade na vida cultural (1988, p. 314).

O Expressionismo inicia-se no signo do historicismo alemão, opondo-se ao iluminismo nacionalista. No plano pictórico, existe uma verdadeira imersão de influências entre os fauves e os Brücke, e Argan nos instiga às questões: o que seria dos franceses fauves sob a forte orientação clássica do Impressionismo sem os impulsos de origem nórdica e romântica como a ânsia protestante de Van Gogh e o fatalismo e a angústia de Munch? E como a corrente Brücke chegaria à sua criação de realidade sem absorver o Impressionismo e sua “experiência visual como o momento primeiro e essencial da relação entre sujeito e objeto”?

O Quarto Vermelho: Harmonia em vermelho por Henri Matisse , 1908-1909.
O Quarto Vermelho: Harmonia em vermelho por Henri Matisse , 1908-1909.

O principal objeto de pesquisa fauve é a função plástico-construtiva da cor, entendida como elemento estrutural da visão. De Cézanne provinha a estimulante tarefa de solucionar o dualismo entre sensação (cor) e construção (a forma plástica, o volume, o espaço) e a decomposição da aparência natural, ou do “motivo” para pôr em primeiro plano a estrutura da imagem pintada. As cores colorem por si todo o espaço, as linhas não são contornos, mas garantem a irradiação cromática de toda a obra. O intuito é destacar a estrutura autônoma do quadro como realidade em si através de um discurso que muito transmite, embora seja composto somente por adjetivos (sem verbos e sem substantivos). A imagem não é apenas um reflexo, mas a realidade da coisa; sem vergonha de ser decorativa e inscrevendo em sua própria memória aquilo que se lia na vida do homem comum, na vida do artista. A arte enquanto realidade que se cria a partir do encontro do homem com o mundo.

Os temas do Expressionismo alemão discorrem sobre a crônica da vida cotidiana e, não raro, tratam do problema da sociedade sob o prisma da relação originária homem e mulher e amor e morte. Sua estética evoca a tradição ilustrativa germânica e a xilogravura. A imagem se imprime sobre a matéria em um ato de força, “se liga à pasta densa e recoberta da tinta a óleo ou à mancha alastrante da aquarela e ainda se mostra na ausência de matizes e esfumaduras, na violência brutal das cores, e na escultura” (Argan, 1992, p. 240). Mais do que uma técnica, é um fazer que prima pela imagem como forma de comunicação. É uma primeira poética do feio, e em suas figuras há uma rudeza, um incômodo e a incansável sensação de extensão da frase de Galileu Galilei, pois o mundo pour si muove, move-se em volta de seus contemporâneos e estes se movem no mundo.

Três nus por Ernst Ludwig Kirchner ,1907.
Três nus por Ernst Ludwig Kirchner ,1907.

De modo geral, segundo Hobsbawm, era natural que as ideias avançadas tivessem afinidade com estilos artísticos inspirados pelo “povo” e realizassem uma produção cujo tema descrevia oprimidos e explorados ou mesmo as lutas dos trabalhadores. Do mesmo modo, na literatura era natural que admirassem autores que demoliam as convenções burguesas (1988, p. 318).

Para Argan, a burguesia também é denunciada pelo Expressionismo. Mas mesmo compreendendo toda a crítica do artista ao fracasso das iniciativas humanas, à cultura urbana e à estrutura do trabalho moderno, a arte do período não se descreve apenas a crise de identidade pela qual passava a sociedade burguesa à época. O processo da arte é encarado como um processo autônomo, sem o nexo causal de estruturas e superestruturas. Seu marxismo se desvela em sua constante afirmação do fazer como o ato próprio da atividade artística moderna, e, embora acredite no nexo da história e na razão em busca de uma verdade, não apresenta em sua narrativa modelos como Winckelmann, que pensa através do paradigma da Grécia Antiga. A moderna mirada de Argan dará razões ideológicas ao eu burguês, mas a potência estética será correlata à potência histórica e será a arte no seu próprio fazer que promoverá o nexo da estruturação formal com o processo da arte; para que exista Cèzanne, é preciso que exista a consciência de que o processo em si se volta integralmente para a pesquisa e esta se torna muitas vezes mais importante que o quadro finalizado. É a entrega à obra e a separação entre ética e estética. O artista, que antes era um partícipe da criação e, portanto, não possuía nenhuma responsabilidade social, passa a se descolar do estigma da inspiração para adentrar o lugar de participação em um fazer livre, sem modelo normativo para determinar o belo e envolto por uma solidão constitutiva de poéticas próprias. O conceito de fazer, para Argan, não se qualifica por nenhum sistema artesanal e técnico. Ele já está imbuído da questão do valor e representa tanto o intelectualismo quanto o tecnicismo.

Amantes (Homem e Mulher I) por Egon Schiele, 1914.
Amantes (Homem e Mulher I) por Egon Schiele, 1914.

O quadro expressionista, como qualquer empreendimento que encara a realidade, pode se alterar no próprio ato de fazer. O fazer é técnica, é trabalho que se identifica não com a cultura intelectual especulativa, mas com as classes trabalhadoras e suas operações práticas e das mesmas se distancia por ultrapassar o caráter mecânico e aspirar à criação não racional:

somente a arte, como trabalho criativo, poderá realizar o milagre de reconverter em belo o que a sociedade perverteu em feio. Daí o tema ético fundamental da poética expressionista: a arte não é apenas dissensão da ordem social constituída, mas também vontade e empenho de transformá-la. É, portanto, um dever social, uma tarefa a cumprir (Argan, 1992, p. 241).

Toda atividade está associada a um momento de valor e qualidade. Esta última pode ser entendida como a situação na qual uma coisa se distingue de todas as outras e se faz idêntica a si própria de modo atemporal. É através do conceito de qualidade que se dá a relação onde o homem se desvela no processo histórico.

O artista, o historiador da arte e o crítico são produtores simbólicos. Agregam valor no ato do fazer artístico e no ato de julgar e justapor a apreciação estética e a erudição. O trabalho de arte é sempre projetualidade, e por isso é um objeto fenomenológico em ato, uma intencionalidade e um sistema de todas as relações possíveis. A arte moderna é a crise desse objeto artístico no qual a história não se encaixa como algo extrínseco.

Autorretrato nu por Egon Schiele, 1911.
Autorretrato nu por Egon Schiele, 1911.

Há em Argan um idealismo da onisciência do olho, pois a todo instante ele nos instiga a ver só o que está a nossa frente, mas ver tudo que está na nossa frente (inclusive a historicidade imanente a uma obra). Uma verdadeira confiança moderna na linguagem visual que não se contrapõe à linguagem conceitual. São muitas as descrições de trabalhos no livro Arte Moderna, e estas revelam a confiança no pensamento e no respectivo alcance de uma verdade. É próprio do subjetivismo moderno se traduzir em razão objetiva e científica. Mas a verdade, para o crítico e historiador, não se constrói só pela identidade ou pela oposição, e sim através do discurso dialético. Nas barreiras do pensamento cartesiano, Argan encontra brechas para uma criação intelectual construtiva e os elementos que antes pareciam antitéticos são explicados com fluência e complexidade.

O quadro de Matisse sendo contemplado por visitantes do Museu de Arte Moderna de Nova York. A imagem serve de ilustração para a capa do livro Arte Moderna, editado pela Companhia das Letras.
O quadro de Matisse sendo contemplado por visitantes do Museu de Arte Moderna de Nova York. A imagem serve de ilustração para a capa do livro Arte Moderna, editado pela Companhia das Letras.

De certa forma Argan traz uma dificuldade de pensar fora da expressão binária; no entanto, no seu “jogo da memória” composto por inúmeros pares, ele não se contenta em identificações superficiais para logo retirar as peças da brincadeira. Observa cada imagem registrada em cada elemento e não demora a se entreter no “jogo dos 7 erros”. E, como se não se contentasse em descansar, constrói o grande “quebra-cabeça” da crítica e história da Arte Moderna.

Referências

ARGAN, Giulio C. Arte e Crítica de Arte. Lisboa: Estampa, 1995.

ARGAN, Giulio C. Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

ARGAN, Giulio C. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

ARGAN, Giulio C.; Maurizio Fagiolo. Guia de História da Arte. Lisboa: Estampa, 1994.

HOBSBAWM, Erik; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

HOBSBAWM, Erik. A era dos impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Publicado em 12/01/10

Publicado em 12 de janeiro de 2010

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