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O papel do Estado, da formação do gosto e das relações humanas na concepção educacional de Wilhelm Von Humboldt

Marlon Baptista

O trato com as relações humanas e as vivências

Logo nos inícios de suas considerações sobre os fins últimos do homem individual, como introdução para o desenvolvimento da análise Sobre os Limites da Ação do Estado, Wilhelm Humboldt (1767-1835) define a meta última do homem como “a mais alta e mais proporcional formação de suas forças em um todo” (Humboldt, 1954, p. 30). Essa formação somente seria possível com a liberdade que está estreitamente ligada ao que ele chama de variedade de situações (Mannigfaltigkeit der Situationen), ou seja, a pluralidade de vivências individuais e sociais, do cultivo de forças distintas. Acontece que cada homem, para atuar, faz uso de uma só força; seu ser é determinado a cada vez à realização de uma única atividade. Assim, para que o homem possa escapar à unilateralidade, precisa unificar as forças individuais que se encontram separadas, esforçando-se para abarcar ao longo de sua vida – ao invés dos objetos sobre os quais ele atua –, as forças com as quais ele atua sobre os objetos, tentando estabelecer ligação entre a multiplicidade dessas forças.

Essa unidade, essa combinação unificada da multiplicidade se dá também nos laços sociais; mantido na individualidade, o homem é privado do processo de tomar para si, conforme seu interesse no desenvolvimento de si mesmo, aquilo que lhe é salutar e passível de ser encontrado e adquirido a partir do outro. O estudo dessa questão referente às relações (Verbindungen), diz Humboldt, é muito importante inclusive para compreender melhor, por exemplo, o sentido que os gregos atribuíam ao amor e ao “impreciso conceito de amizade”.

O proveito dessas relações depende da independência de cada indivíduo envolvido e da intimidade entre eles. A independência é importante para que o que for compreendido seja ponderado por aquele que entendeu de modo a estabelecer critérios moderadores para determinar até que ponto e de que forma essa compreensão deve ou não afetá-lo e se tornar parte constituinte de seu ser, de sua personalidade. A intimidade auxilia uma melhor compreensão em torno do comunicado, viabilizando uma maior proximidade que não esbarre em ressalvas do distanciamento decorrente da impessoalidade. Essas duas habilidades exigem a existência de diferenças entre os indivíduos concernidos na relação, mas de modo que não sejam nem tão grandes nem tão pequenas, porque se forem muito grandes atrapalham ou mesmo impedem a comunicação devido à distância dos horizontes de sentido entre os interlocutores; no segundo caso, se as diferenças forem sutis demais, atrapalham a independência, pois, perante determinada compreensão, o interlocutor que compreendeu o comunicado do outro poderia ser tão influenciado – por exemplo, pelo sentimento de admiração (Bewunderung) – que tomaria para si de forma indevida – não processada de uma forma legitimamente individual e independente – aquilo que foi comunicado, assumindo para si algo que, do modo como apareceu e o que significa, diz respeito às configurações específicas do outro somente, ocasionando uma forma de apropriação imprópria. A associação entre a devida aplicação das forças (Kräfte) e as diferenças individuais é o que possibilita a originalidade, que é onde reside a grandeza do homem. E todo aquele que visa interagir e intervir afetando os outros homens deve cultivar, acima de tudo, “a particularidade da força e da formação” (ibidem, p. 32).

Para aclarar essas ideias Humboldt dá uma explicação que se resume à relação de forma e matéria. A “forma mais pura com a cobertura mais leve” é a ideia, e a “matéria dotada de menos forma” (ibidem, p. 32) é a experiência sensível. Quando a matéria se junta surge a forma, e quanto maiores a abundância e a variedade da matéria, mais nobre e sublime é a forma conquistada. A matéria reunida, transformada numa forma, torna-se matéria para outra forma, ainda mais bela e complexa. Isso acontece de certa forma na natureza, mas sem a realização de um processo de aperfeiçoamento como ocorre no homem. A flor se transforma em fruto, a semente do fruto se transforma numa outra planta da mesma espécie, que, após germinar e crescer, dará flores e frutos e assim por diante. Mesmo não ocorrendo um processo progressivo, quanto maior a variedade de sua constituição, maior força alcança a sua forma, devido à intensa conexão das complexas ligações da matéria. No que diz respeito ao âmbito humano, ocorre a junção mais radical entre forma e matéria, o que significa que quanto mais cheio de ideias forem os sentimentos, e quanto mais cheias de sentimentos forem as ideias, mais sublime é o homem e mais acima ele fica em relação aos outros. No homem ocorre a mais absoluta união de unidade e multiplicidade, de forma e matéria, e é isso que constitui sua grandeza. Pois, enquanto na natureza algo passa e morre para dar origem a algo igual, com o homem, coisas morreriam para dar origem à possibilidade de algo mais belo, causando-nos admiração perante a “insondável infinitude eterna” (ibidem, p. 33). Deste modo, o que o homem recebe de fora é só a semente, e o ideal mais alto da vivência em conjunto é “cada um desenvolver-se somente a partir de si mesmo e da sua vontade” (ibidem).

A preocupação em limitar os poderes do Estado para garantir a formação

Assim, vamos percebendo algumas particularidades da perspectiva de formação (Bildung) de Humboldt. Sua preocupação com a determinação do que diz respeito ao homem visa preparar o terreno para a delimitação do horizonte de atuação de uma forma de Estado que não inviabilize esse livre desenvolvimento, pois ele identifica a presença nos Estados vigentes de uma predisposição a guiar os homens de modo a não deixar que eles pensem por si mesmos. Ainda que com diferenças em relação ao trato com a sensibilidade (com o corpo propriamente), Humboldt mantém fortemente a característica herdada da autonomia e liberdade do movimento-símbolo da emancipação humana por meio do uso da razão do século XVIII, chamado Esclarecimento (Aufklãrung) ao dizer algo que lembra as palavras de Kant em Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento. Diz Humboldt: “Quem é frequentemente conduzido acaba por sacrificar o resto de sua autoatividade voluntariamente. Acredita-se dispensado do cuidado, que deixa em mãos estranhas, e pensa fazer o bastante quando espera pelo direcionamento alheio e o segue” (ibidem, p. 42). Sua postura de desconfiança em relação aos interesses do Estado é explícita, ao compará-lo com um médico que, ao invés de curar a doença, alimenta a enfermidade evitando a morte. O Estado, para que suas determinações sejam obedecidas, costuma visar o bem-estar dos cidadãos, prometendo-lhes a felicidade, figurada no gozo natural, conforto e prazer empírico. Com isso, apresentam-se dois pontos problemáticos: 1) estabelece-se um tipo de recompensa por um determinado modo de comportamento, sem haver a preocupação com a fundamentação do sentido do comportamento mesmo, o que coloca em cheque a liberdade, que consiste justamente em fazer o que quer que seja pelo amor e pelo respeito, pelo fim em si mesmo e não pelo interesse, resultado, ganho ou recompensa. 2) Além disso, ao defender a bandeira da felicidade enquanto desfrute empírico, deixa-se de lado o caráter essencialmente ativo, de autoatividade (Selbstätigkeit) do homem; o relaxamento e autoabandono do gozo estão distantes da verdadeira dignidade humana. Essa perspectiva do interesse estatal apresenta certo receio em relação ao oposto da felicidade, de modo a fazer com que os cidadãos se rendam de bom grado a uma forma de governo que evite esse oposto, a infelicidade. Mas acontece que, segundo Humboldt, os momentos de maior gozo do homem são aqueles em que ele sente o nível mais alto de suas forças e de sua unidade interna, e esses momentos abrangem também as suas piores misérias. O sistema de defesa da felicidade visa implementar uma escapatória da dor, o que é esforço vão e negador da totalidade humana, que alberga em si também a infelicidade; ou seja, essa unilateralidade sedutora é por princípio impossível de ser realizada e, além disso, despreza outras potencialidades passíveis de serem desenvolvidas somente no sofrimento. Portanto, a atuação do Estado não pode visar a garantia e nem a oferta de felicidade aos cidadãos.

Devido ao fato de que o interesse dos Estados pelos cidadãos costuma se restringir ao cuidado para que eles se mantenham não nocivos e em bem-estar, não lhes importa a forma em que se configuram suas existências, de modo que, se eles se propuserem a dirigir um projeto educacional, essa educação não visará qualquer virtude ou modo específico de ser, por estar somente interessada num direcionamento específico em conformidade com os seus interesses, ocasionando uma uniformidade que inviabilizaria a multiplicidade de situações e caracteres sobre a qual falamos antes, tão necessária à legítima formação:

Pois virtude e vício não dependem deste ou daquele modo de ser do homem, não estão ligadas necessariamente com este ou aquele lado do seu caráter; mas, sim, ao que vem muito mais da harmonia ou desarmonia dos diferentes traços do caráter, da relação da força com o conjunto das inclinações (...); se a nação tem exclusivamente um [modo de formação], falta-lhe então toda força de resistência e, com isso, todo equilíbrio (ibidem, p. 83).

Portanto, a atuação do Estado deveria se restringir à garantia de segurança, tanto contra inimigos externos quanto contra tensões internas, de modo a ser conveniente para os cidadãos somente na medida em que lhes serve para alcançarem seus próprios fins particulares.

Remetendo a Winckelmann, o fundador do classicismo, Humboldt diz que “formamos os artistas enquanto exercitamos seu olhar nas obras mestras da arte e nutrimos sua faculdade de imaginação com as belas formas dos produtos da Antiguidade” (ibidem, p. 96). Ele se refere à formação do artista para fazer paralelo com a formação moral e sua relação com a religião; voltar o olhar ao que há de mais perfeito – figurado na ideia do divino – influi beneficamente no homem enquanto modelo de comportamento e virtude. No intuito de afirmar a necessidade de o Estado também não intervir nas crenças religiosas, Humboldt expressa o seu posicionamento neo-humanista, de que, o humanismo propunha uma formação baseada no estudo dos clássicos da Antiguidade tanto profana como sagrada, orientada por um direcionamento predominantemente cristão, ou seja, com uma religião determinada institucionalmente; Humboldt, por outro lado, afirma que, independentemente de o cidadão cultivar ou não algum tipo de sentimento religioso, é importante que ele adquira a habilidade de guiar a si mesmo, criando um sentido interior mais profundo e mais harmônico que não dependa de ameaças exteriores, nem políticas nem religiosas, para agir virtuosamente conforme a sua própria capacidade de julgamento. Assim, enquanto certas medidas somente evitam transgressões materiais, constrangendo, por meio de alguma doutrina ou ideologia, fazendo o indivíduo se tornar cindido entre sua vontade mal cultivada e sua realidade, ele acaba por buscar meios de transgredir a lei de modo a não ser punido ou se acomodando às condições exteriores; o cultivo da liberdade de espírito interferiria diretamente nas inclinações, viabilizando maior harmonia interna entre a vontade e os impulsos, de modo que um cidadão formado com a liberdade de espírito poderia até mesmo ser mais profícuo ao próprio Estado do que outro formado por preceitos dogmáticos e ideológicos que não compreenda ao certo o sentido das normas de convivência e da necessidade do modo de seu comportamento se determinar.

O sentimento estético como harmonização entre sensibilidade e espírito

Tratemos agora da complicada relação não resolvida neste momento histórico entre espiritualidade e sensibilidade. Humboldt considera que a fonte mais propícia à imoralidade e a ao conflito entre os homens é a predominância da sensibilidade e do interesse em satisfazer suas arbitrariedades. Originariamente o homem é determinado por ela, e enquanto não for cultivado para determiná-la em conformidade com fins espirituais nada de bom, significativo, nobre ou grandioso surge de sua existência; mas, ao mesmo tempo, é a sensibilidade que o impulsiona para a atuação e lhe proporciona um “calor vivificante” para atitudes próprias, impelindo-o, por meio da insatisfação, a realizar planos e a criar meios para sua realização; e, quando satisfeita, incentiva-o a jogar livremente com as ideias, proporcionando-lhe a intensificação de seus movimentos e novas perspectivas. Mas é importante harmonizá-la com o não sensível; essa harmonização seria “a verdadeira meta da sabedoria humana” (ibidem, p. 114), de modo que um âmbito não impedisse a ação do outro. Assim, a relação da sensibilidade envolvendo, recobrindo espírito, com este vivificando-a, consistiria no sentimento estético, e “o eterno estudo dessa fisionomia da natureza forma[ria] o homem verdadeiro” (ibidem), pois aquilo que expressa o não sensível no sensível (a arte) é o que exerce a influência mais determinante no caráter. Aqui podemos estabelecer a diferença decisiva entre esse modo específico de percepção sensível e todas as outras, de modo que o que Humboldt entende por uma formação do gosto expressa a perspectiva que se refere a uma educação da sensibilidade que tem como referência determinados modelos ideais que nos remetem ao que Winckelmann compreendia pelo verdadeiro gosto e à sua interpretação acerca dos gregos:

Mas somente o gosto – que deve residir no fundamento da grandeza, porque somente precisa da grandeza da medida e da força da atitude – unifica todos os tons dos seres em pleno acordo entre si numa encantadora harmonia. Ele leva todos os nossos sentimentos e inclinações puramente espirituais para uma moderação e ordenação, direcionando-os a um ponto (Ibidem p. 115).

É o gosto que refina a nossa percepção, inclusive especulativa e espiritual; Humboldt chega a afirmar que investigações científicas realizadas sem refinamento de gosto podem ser profundas, mas não alcançam resultados profícuos em suas aplicações práticas, pois toda pesquisa necessita, além de profundidade, do trabalho conjunto de todas as partes constituintes do homem, ou seja, de “um reino múltiplo e um aquecimento interno do espírito”, o que significa que o conhecimento, por si só, não pode se constituir como meta do homem. Os sentimentos que “aquecem” o espírito são necessários para que a pesquisa científica vise objetivos que extrapolem o exercer de sua atividade específica, possibilitando ao homem o sentimento de plenitude decorrente da percepção do funcionamento orgânico e pleno de todas as suas atividades internas, de modo que a pesquisa assuma o caráter do interesse do homem pelo cultivo de sua totalidade em aplicação até mesmo em setores específicos de atuação. Assim, até o mais abstrato e especulativo pensador deve ser formado em contato também com o deleite dos sentidos, e o homem legitimamente formado é aquele que age na vida prática de modo que, a partir daquilo que obteve em seu processo formativo, seja capaz de realizar criações, seja capaz do novo.

No que se refere à moral, o sentimento estético seria também imprescindível, pois somente perante o sentimento da sublimidade de uma lei seria possível obedecer a ela de forma completamente desinteressada. Trata-se do sentimento de beleza residente na consideração de o indivíduo se compreender como fim em si mesmo, de que a lei moral tem uma existência própria nele; entretanto, trata-se de uma percepção que se dá sem a mediação e a fragmentação dos conceitos, mas a partir da consideração como que da imagem da vigência desta lei, de modo a orientar suas aplicações práticas, orientação que escaparia ao poder do frio entendimento. Essa imagem proporcionaria ao homem o prazer de obediência à lei, ao invés do puro e calculado cumprimento do dever, possibilitando que ele goze do direito de lidar com a felicidade por meio da virtude.

Assim se torna visível que, apesar de circular no interior do terreno de compreensão da soberania da razão do Iluminismo (ou Esclarecimento), Humboldt se diferencia dele na medida em que não atribui o sentido do esclarecimento ao Estado, considerando-o com interesses distintos da nação, ou seja, do corpo orgânico de seres humanos que pode se organizar e progredir desde que sejam devidamente cultivados por si mesmos. Ele se distancia da corrente do Esclarecimento alemão também ao pensar a real possibilidade da felicidade, que é viabilizada por conta de seu distinto modo de consideração do sensível e do papel da formação do sentimento estético. Com isso não pretendemos dizer que há valoração de Humboldt à sensibilidade enquanto fim em si mesma, pois ele considera também que o seu desenvolvimento deve visar metas não sensíveis e que ela só é saudável em equilíbrio com as forças espirituais, como o conhecimento e a moral; mas queremos dizer que há um caráter afirmativo em torno da sensibilidade – ponto problemático desde Immanuel Kant.

Para finalizar a análise do sentido e meta do homem entendidos por Humboldt, cito um trecho de Sobre os limites da ação do Estado que sintetiza o que ele quer dizer ao falar num homem formado da forma mais plena:

Quem procura constantemente elevar e, por meio do constante gozo, rejuvenescer suas forças; quem precisa afirmar as forças de seu caráter e sua independência perante a sensibilidade (Sinnlichkeit); quem se esforça por unir essa independência à mais alta sensibilidade (Reizbarkeit); quem indaga incansavelmente pelo reto e profundo sentido da verdade; a quem, perante o correto e fino sentimento da beleza, não passa despercebida nenhuma imagem encantadora; aquele cujo ímpeto toma para si o que foi sentido a partir de fora, fertiliza-o em novos nascimentos, de modo a transformar cada beleza em sua individualidade, casando-a com o seu ser, e se esforça para produzir nova beleza, pode alimentar a mais satisfeita consciência de estar no caminho correto, de se aproximar do ideal que nem a mais temerária fantasia da humanidade ousaria esboçar (ibidem, p. 120).

Bibliografia

HUMBOLDT, Wilhelm von. Über die Grenzen der Wirksamkeit des Staates. Nürnberg: Verlag hans Carl, 1954.

HUMBOLDT, Wilhelm von. Os limites da ação do Estado. Trad. Fernando Couto. Porto, Rés Editora, s/d.

SCURLA, Herbert. Wilhelm von Humboldt: Werden und Wirken. Düsseldorf: Claassen, 1976.

Publicado em 30 de março de 2010

Publicado em 30 de março de 2010

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