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Jogo decisivo

Cristiane Brasileiro

Doutora em Letras pela PUC-Rio, designer instrucional do Cederj

Luiz Fernando de Carvalho

Professor titular de literatura brasileira (UFF)

A fábrica do feminino, novo livro de Paula Glenadel, encena um jogo com os limites de concepções enraizadas, sobretudo com dualidades muito primitivas inscritas na mente e transmitidas por gerações, formando representações de homem e mulher.  A fábrica mostra, sobretudo, estereótipos de como é recebido o feminino na cultura. Galatéia, Afrodite, Virgem Maria. Marilyn Monroe, Mata Hari, Salomé. Morgana, Sharon Stone e muitas Barbies miradas e afogadas em fotos que acompanham os versos. A fêmea-franga, a fêmea-chester, a fêmea fácil, plástica, inflável. A fêmea-mãe, a fêmea-filha. A fabricada e a que fabrica.

E, partindo dessa base profusa e incapturável, o livro é também um salto para fora de qualquer espécie de binarismo, através da escolha do labirinto como espaço que faz perder o caminho de volta.

De saída, o livro prepara um prólogo, naturalmente preparação e também antecipação, pois que realiza uma síntese de todo o desenrolar dos três planos em que se estrutura o livro. Logo de início, o prólogo destaca com maiúsculas esta afirmação: O Feminino É Feito Numa Fábrica. Quando se pensa que haverá uma explanação do que seja esse processo de fabricação, imediatamente se mostra a necessidade de se pensar por contrastes com o masculino. E então fica instaurada no livro a alternância, a figura do dois. O destaque no plano visual marca a precedência do tema e da afirmação de valor do feminino, ao mesmo tempo que estabelece uma tensão inevitável com o masculino, que é dado como produto. Ao final do prólogo, uma síntese geral anuncia que tudo é cenário de uma movimentação da língua, que se dá a conhecer como fábrica da fábrica. Completa-se o círculo em torno da primeira idéia de fábrica e agora se abre o livro para a sua primeira parte propriamente dita e intitulada A fábrica do feminino.

Os versos de “Espelho” marcam o compasso das mulheres de papel sem celulite// parcelando plásticas/ mastigando críticas/ maquinando máscaras/ maquiando cílios. Frases afirmativas e definidoras indicam que o logos participa do cálculo, mas a poesia, paradoxalmente, escreve para dizer contorno, ponte, intervalo. Como mais adiante: Toda mãe.../ toda filha... - versos que, no entanto, são precedidos pelos que registram a vivência da sobreposição e do intercâmbio entre os papéis, a vontade do salto (ainda que mortal), para fora das dicotomias. Feia ou bonita? Cabelo comprido ou curto? Joana D´Arc ou Iemanjá? Aquela que corta ou a que é cortada? Se pudesse, eu jogava na fogueira. Ou ainda: Meu erro, meu ermo.

Como exemplar desse primeiro movimento do livro em torno de uma exibição de estereótipos, destacamos por fim o poema “0 X 0”,  que recorda, como piada, tensões históricas entre homem e mulher, enquanto se abre para alguma alternativa. O jogo do poema, no entanto, não é da ordem da competição, embora no nível dos enunciados ocorra um perfilar de antagonismos. O poema como jogo sobrevém no instante em que a nova inscrição interrompe a concorrência, disseca e desfaz a frase produzida no âmbito de uma voz masculina para dizer simplesmente: Fica comigo esta noite. Esta frase, já distante da que aparece no samba-canção que subjaz a ela, já não promete que não te arrependerás. Fica comigo esta noite é, agora, um pedido ou um convite ou uma ordem tout court, que interrompe e inaugura, zerando o motor do movimento antagônico e fundando nova atmosfera.

A segunda parte do livro intitula-se A cidade dos homens, que constitui um desdobramento dos vários fios produzidos nessa tecelagem de miragem que é a fábrica do feminino, como se pode entrever em versos como Ave traveca, Eva moleca! O poema “Ave” da primeira parte ressoa, então, no poema “Borda”, tanto como meditação quanto como extinção. E este último, por sua vez, anuncia a terceira parte do livro, intitulada  A cidade fantasma.

O poema “Borda” apresenta a outra face da cidade dos homens. O que o humano abriga é o convívio com os mortos. A cidade é dos mortos e o bairro, dos vivos, que, portanto, vivem dentro da cidade dos mortos. O poema flagra esta clareira no entendimento. Tudo se resume numa fímbria, numa pequena dobra que não é percebida, mas que se constitui como ensinamento: entre a cidade dos mortos/ e o bairro dos vivos/uma borda invisível mas densa//mais forte que a morte/é a minha ignorância //mudando de bairro /a fênix renasce/mas a cada vez um pouco menor//mais miúda. Mudando de bairro, ou melhor, saindo do campo da morte, saindo do espaço da perda, o ganho então é  o potencial de renovação, de ressurreição que vai se estreitando. Esse é o diferencial, a lição do poema, para além do mito que permanece inalterado.  O poema vive do mito, mas o reinterpreta e o carrega de crítica e crise: a fênix vem cada vez menos ígnea, “mais miúda”. Não como coisa insignificante, mas como o traço de sobrevivência , o fóssil precioso de uma intensidade vital.

Assim é que deve ser lida a terceira parte do livro, significativamente intitulada  A cidade dos fantasmas. Nela surgem ainda mais claramente os signos do ir e vir, do retorno em diferença, dos atributos do fantasma,  signos da poesia e do poeta, disfarces  da alegria de viver, do fogo de uma alegria que se acende, labareda de palavras, figura em chamas.  O que é a poesia, senão este lugar  que conserva o fogo metamorfoseado em  rituais que permitem reacender pelo dizer o traço apagado ou o brilho escondido? Como é a referência no último poema intitulado “Lenda”, dedicado a Greta Garbo enquanto manifestação de outra metamorfose:  da fênix escondida na máscara marmórea, mas que reaviva  a luz de sua imagem perene. O verso comunica o vestígio ainda que pela via do dizer suspenso ou da alusão.  

Incluem-se nessa última parte, ainda, as meditações sobre o artesanato da palavra, sobre como  escrever  um verso que transmite uma voz, mesmo que esta  chegue  ázima/escarpada e caprina, ou um verso que já nem nasce verso, mas que ainda assim recupera algum brilho das divas de mármore a quem ninguém pede bis. A simples referência ao nome da Garbo, aí, instaura o ambiente em que mito e lenda se fundem na fábrica do poema. Um salto para fora do logos, uma construção do poema como pensamento do fogo.  O poema como ensinamento do ir e vir, do apagamento constitutivo da poesia contemporânea como rejeição do monumental e convivência com o trecho, com o fragmento, com a força do fantasma enquanto aparição traduzida de uma perda acontecida ou por vir – e que experimenta e reafirma, com isso, o justo instante da vida.

Ficha técnica do livro:

  • Título: A fábrica do feminino
  • Autor: Paula Glenadel
  • Gênero: Poesia
  • Produção: Editora 7 letras

Publicado em 06/04/2010

Publicado em 06 de abril de 2010

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