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O enigma como desafio: notas sobre “Casa tomada”, de Julio Cortázar, e A menina morta, de Cornélio Penna

Alexandre Amorim

As faces de uma casa

Entrevistado por Omar Prego em 1991, Julio Cortázar explica seu conto “Casa tomada” como um pesadelo. "A única diferença entre o sonho e o conto é que, no pesadelo, eu estava sozinho. (...) Mas, de repente, o escritor entrou em ação. Percebi que aquilo não podia ser contado com um personagem só, tinha que vestir (...) o conto com uma situação ambígua, uma situação incestuosa (...) um caso em que o fantástico não é algo que eu comprove fora de mim, mas que vem do meu sonho" (1991, p. 52).

Os irmãos, instalados numa casa espaçosa e confortável, quando não cumprem as tarefas domésticas rotineiras entretêm-se mediocremente: ela, tricotando de modo quase ininterrupto e em tal proporção que o tricô aparece no texto ironicamente como signo de feminilidade, e ele se relata lendo ou revendo o álbum de selos do pai.

Diante de tais sentimentos, o fato de a casa lhes ser tomada tem um pouco do tom bíblico de expulsão do paraíso terrestre. O invasor misterioso não surpreendeu os moradores, não lhes provocou qualquer reação senão a fuga precipitada. Conformaram-se com o inevitável, como criminosos ouvindo uma sentença merecida. É desproporcional e à primeira vista incompreensível que não se revoltassem nem tentassem lutar por um patrimônio tão caro. Haveria duas explicações aparentes para isso: a primeira seria o invasor pertencer a outra ordem de existência, natureza desconhecida contra a qual não há como lutar (como em geral acontece nos sonhos); a segunda corresponderia ao fato de o narrador estar ele mesmo acumpliciado com o invasor – o que é possível, já que o sonho é uma das formas de manifestação da subjetividade –, embora não seja lógico do ponto de vista da narrativa. Há muito de irreal nesse inominado que lhes toma o espaço de direito sem luta e os expulsa de casa sem mais que a roupa do corpo.

A porta maciça de carvalho que marca o fim da primeira etapa na tomada da casa tem papel marcante no texto de Cortázar. Como observa Davi Arrigucci Jr. (1984, p. 10), alguns motivos recorrentes na obra desse autor (o jazz, o boxe e o jogo, assim como o amor) "constituem uma espécie de 'via de acesso', de intercessão, de abertura, enfim, à qual se entregam os perseguidores, movidos pela ânsia de absoluto, a fim de alcançar a 'outra' realidade, a verdadeira, isto é, de se con-fundirem na totalidade, de terem acesso à plenitude do real (...). Até o leitor mais desprevenido notará a abundância de pontes, portas, galerias e toda sorte de passagens que conferem uma porosidade característica ao espaço na ficção de Cortázar".

As atividades ligadas à vida cotidiana eram fonte de barulho, e impediam duplamente o silêncio querido pelos dois irmãos: primeiro porque se valiam delas para afastar o perigo de ouvir os ruídos que poderiam vir do lado tomado (e por que não deveriam ouvi-los, se já sabiam da presença do invasor?) e porque, por sua própria natureza, confessadamente menos agradável aos dois, eram ademais fonte de movimentos e choques entre objetos.

Tais atividades eram, portanto, úteis e necessárias, mas também incômodas e indesejadas. Além de suas finalidades de ordem prática, serviam para ajudá-los a esquecer alguma coisa obscura, fatal e muito próxima: a inveja dos outros? A dívida para com o resto da humanidade, representada pela sociedade com a qual se recusavam a conviver e partilhar? O sentimento de culpa? O desconhecido que habita o espaço além daquele que se pode explorar e dominar (tanto no sentido físico quanto mental, psicológico ou espiritual)? Talvez nada disso, mas apenas o que escapa aos limites de cada um. De qualquer modo, nunca saberemos exatamente do que trata esse relato de um sonho que tangencia tantas faces da realidade.

A perda é importante, mas não é a protagonista do conto. Irene não se entristeceria muito tempo pelo fato de a parte mais ampla da casa ter sido tomada; ela se mostraria contente logo depois de passado o período penoso de ressentimento pelo que havia ficado do outro lado. Não pensariam mais nos bens materiais, no espaço herdado, nas coisas que estimavam e que se haviam perdido, contanto que continuassem fazendo o que lhes aprazia. O hábito, a impotência ante o fato consumado, o comodismo, a inércia ou todos juntos venceriam até mesmo as penas da perda. Mas não impediriam os novos ruídos denunciando a tomada do resto da casa.

A segunda parte da invasão é sem dúvida a mais decisiva e a que consuma o horror apenas anunciado na primeira. De novo o tom de texto sagrado se insinua na fuga sem olhar para trás, como no episódio de Sara e Lot, figuras do Antigo Testamento, no incondicional e incompreensível da situação e na reiteração de que o inominado é mais poderoso do que tudo.

Se muitos objetos queridos se perderam na tomada da parte mais ampla da casa, nesta última parte tudo o que lhes restava estaria perdido. O enigma de “Casa tomada” tem ainda outras dimensões: ao lado de uma vida despreocupada em termos de recursos materiais, sugere uma vida austera e árida, apesar desses recursos, pela monotonia de uma rotina de silêncio e angústia — figura possível da existência, diante da qual o invasor inominado poderia ser lido como alegoria da morte e de sua inevitabilidade, da implacável finitude em que vivemos mergulhados.

Visto de outro ângulo, fala também de limites internos, inerentes à própria duração da vida, dos quais seriam exemplo as consequências a enfrentar pelas opções quanto ao uso que podemos fazer dessa vida; da ameaça latente que implica viver fora dos padrões aprovados socialmente. Neste caso, o grande silêncio cultivado pelos dois irmãos seria como um emblema da falta de objetivos reconhecidamente úteis, de ocupações mais vitais que o tricô e a filatelia. O artifício do silêncio, criado para encobrir a condição estéril das duas vidas, seria, portanto, um signo de culpa: cercar-se de silêncio, valorizar o silêncio implica também fugir à sanção dos outros, mantê-los afastados para não ouvir o que têm a dizer, mas também para não ter que ouvir a própria voz e expor-se por meio dela. O silêncio é, nesse caso, a um tempo figura do vazio e uma espécie de fetiche que supostamente teria o sentido de postergar a chegada do ruído invasor. Dessa perspectiva, o inominado se explicaria por sua única característica conhecida do leitor, que é a quebra do silêncio: a casa cheia de vozes e de rumores é um signo oposto ao do eterno silêncio dos irmãos.

Mesmo entre os dois irmãos, as falas "aprovadas" em “Casa tomada” são perfeitamente inócuas: confirmam fatos conhecidos, como acontece após a primeira invasão, ao constatarem a ausência de objetos que haviam ficado do outro lado ("Não estão aqui"), ou fazem o comentário supérfluo sobre um ponto do tricô. São falas convencionais, dispensáveis, que nada dizem de realmente significativo, que nada modificam ou acrescentam quanto à situação de ambos e quanto aos fatos.

A tomada da casa com seus bens e comodidades pode ainda ilustrar a hipótese do pertencimento precário e provisório. A legitimidade da posse conforta, mas é falsamente definitiva: não torna inalienáveis mesmo as propriedades mais indiscutíveis, os bens mais sólidos, porque tudo será tomado por uma destruição inevitável contra qualquer sentimento de poder e toda pretensão de indestrutibilidade. Nem atributos como a beleza e a criatividade (as mãos trabalhando agulhas e lãs), os dotes intelectuais e o conhecimento (os livros franceses e os selos) fugirão a essa regra. Tudo aquilo que constitui a secreta glória de cada um estará perdido e desfeito, esquecido de sua feição individual e pulverizado, seja por uma ordem mais ampla e transcendente ao indivíduo e a seus direitos, seja por uma não-ordem, pouco importando o modo como a entendamos; tudo será anulado à revelia, por mãos alheias ou pela corrosão do tempo e do abandono. Neste caso, quando a chave é jogada ao bueiro na derradeira fuga/perda, a casa já não estará disponível sequer a um pobre-diabo, porque outro tipo de realidade a terá tomado e tornado inúteis todos os seus bens. Outra ordem (a não-ordem) terá sido implantada, inaproveitável à vida tal como a conhecemos durante nossa existência.

De qualquer forma, alguns traços são inequívocos na face do enigma da casa: há uma sombra de destruição na suposta vida tranquila dos dois irmãos, e essa sombra se faz presente no silêncio, na fuga e na perda; há uma profunda melancolia mesclada de angústia nessa vida, melancolia manifestada nos sonhos e nas insônias, e o sossego dos dois é um lugar de inquietação que só se aplaca pelo não-pensamento. Ainda aqui a questão do silêncio se impõe, uma vez que só se pensa por palavras. Não pensar, portanto, é banir da própria vida qualquer discurso, mesmo interior. É um paroxismo de silêncio que se preconiza, uma forma de autointerdição. Por sua vez, a perda se anuncia e manifesta até nos períodos de contentamento, sob as formas do desperdício do espaço ("uma loucura") e da abundância inútil (as écharpes com naftalina que abarrotam a gaveta da cômoda).

Suas vidas se alimentam, portanto, de uma forma de morte, se considerarmos que a casa é alegadamente o motivo que os impediu de casar e continuar-se em descendência, mantendo-os presos a atividades estéreis. Pode-se identificar aqui uma estrutura em forma de quiasmo: a casa como sinal de vida, produto de vida, alimentando uma semente de morte na união dos irmãos; motivando uma forma de morte na vida supressiva e de subtração que os dois inauguram e que pretendem levar às últimas consequências, destruindo a casa antes de vê-la cair em outras mãos.

Ao expulsá-los para a rua, o inominado invasor pode tê-los expulsado para outra forma de vida. A fábula, nesse caso, referir-se-ia ao abandono forçado do far niente, à perda do direito à ociosidade; o inominado nada mais seria que a metáfora da necessidade de trabalhar para sobreviver. A rigor, no entanto, nenhuma passagem do texto autoriza essa leitura, a não ser que se veja na perda material seu substrato. Mesmo isso pareceria uma "interpretação" aposta ao que a escritura apenas sugere. De qualquer modo, não se desmente que "o dinheiro aumentava", e, portanto, essa afirmativa permanece válida até o fim, pois não está explícito que a "renda dos campos" teria deixado de chegar.

Estariam perdidos, isso sim, os últimos instrumentos de trabalho e de lazer, além dos bens: as agulhas e as lãs de Irene, o álbum de selos, as louças e os vidros da cozinha. Isso deixa entrever uma forma de condenação: perdido o espaço de cada um, perdidas todas as oportunidades futuras junto com o próprio futuro. O inominado que suga a vida possível e ainda não vivida pelos dois irmãos, nesse caso, seria o fantasma-do-que-poderia-ter-sido, como no conto de Dickens. 

Esta última hipótese, no entanto, peca por tentar levar o texto numa direção que ele não autoriza claramente, porque qualquer significado deixa de existir e de subsistir a partir do momento em que os dois irmãos ganham a rua, ficando a casa encerrada para sempre dentro de sua nova realidade – ou de sua não-realidade. Quando muito, é possível concluir que, a ver a casa transformada por um agenciamento de outra ordem que não a sua, o narrador (e sua irmã pela costumeira adesão passiva) prefere vê-la nulificada como casa, isto é, vazia e inacessível de vez a outro morador. Não nos caberia perguntar o que a estaria habitando, porque isso equivaleria a indagar da natureza do inominado que a tomou. A casa tomada parece ter deixado de ser uma morada, mas isso será sempre mera especulação.

Uma casa no Brasil: a Fazenda do Grotão

Nesse texto, em que os personagens são referendados por suas características "femininas" ou "masculinas" (não necessariamente por pertencerem a um ou outro sexo), representa-se uma luta de vida e morte entre os dois lados. Aqueles que constituem o "lado feminino" são sufocados até à destruição pela ordem masculina, numa hierarquia rígida imposta à base de interdição e controle quase exaustivo da comunicação, física ou verbal. A luta masculino-feminino pode expressar-se por signos como os passos ressoantes do comendador, o dono da fazenda, ou os imperceptíveis e levíssimos de Mariana, sua mulher e antagonista.

A luta se expressa também por atitudes como a postura constante de dominação e desdém do dono da casa, a secura e a impaciência com que impede qualquer expansão pessoal; a reclusão voluntária de sua mulher, recolhida ao quarto durante quase todo o dia. A tensão se manifesta ainda em conversas mantidas a medo, sob constante vigilância do feitor dos escravos, dos próprios moradores da fazenda entre si ou do administrador sobre os empregados e demais agregados. O controle da comunicação chega quase à perfeição e constitui a forma "forte" da interdição: as palavras devem ater-se a fórmulas rigorosamente convencionais. A comunicação verbal é dificultada mesmo entre os escravos, escolhidos entre indivíduos de diferentes nações, para que não possam entender-se facilmente na mesma língua, expediente usual entre os senhores. Os demais habitantes da casa, agregados, ainda que parentes do senhor e da senhora, têm seus atos e palavras vigiados e censurados por um sistema de controle e policiamento já internalizado por todos, que atinge até mesmo os pensamentos ou impulsos de cada um.

Tem-se, pois, um conflito central, masculino versus feminino, simbolizado tanto pelos elementos opostos que aparecem a serviço da trama: a casa e a clareira da mata (a primeira, fundo sombrio sobre contorno claro; a segunda, fundo claro sobre contorno sombrio; os respectivos sagrados), a capela particular, sede da religião legitimada, e a clareira, sede do sagrado feminino, onde a fazendeira se concentra e ora, quanto pela hierarquia, em parte simbolizada pelo posicionamento à mesa dos membros da comunidade, em parte pela própria divisão proposta nos interiores onde se passa a maior parte de trama, e ainda por expressões, olhares, gestos, diálogos e hábitos em geral, impregnados da preocupação estrita de mostrar a cada um o seu lugar, assim como dos constrangimentos e temores consequentes (Costa Lima, 1976, p.106).

O "caminho masculino" se identifica com o caminho da corte, enquanto o "caminho feminino" evoca a natureza, a mata: cultura versus natureza. Um dos fatores a concorrer para tal identificação é claramente histórico: o homem detém o poder econômico – a posse das terras, da produção e dos escravos – e o poder político. A organização da sociedade é ditada por ele, os costumes e as crenças dependem de sua aprovação, e, portanto, de sua conveniência. Mesmo os campos cultivados falam da ordem masculina imperante na fazenda. À mulher, encarnada por Mariana e, mais tarde, por sua filha Carlota, compete obedecer e anular-se, ou fugir para viver sua rebelião: por isso o quarto fechado e a clareira na mata são os espaços de eleição da mulher rebelde. 

Ao lado do sistema de vigilância e censura e frutos dele, a melancolia, o medo e a angústia tomam posse dos moradores da Fazenda do Grotão. Essas emoções e sentimentos são figurados nas descrições de ambientes interiores, móveis e objetos, em que tudo ressuma austeridade e secura, solidão e tristeza. Ainda aqui é a interdição que predomina: guloseimas guardadas, proibidas até mesmo às crianças, que só as conseguiriam à custa de promessas infindas de bom comportamento; desenhos de móveis e arquitetura pouco acolhedores, sugerindo a rudeza e a dureza de uma vida muito mais de privações que de conforto, apesar da grandiosidade e do fausto que o ambiente sugere.

Acresça-se a essas características a permanente ameaça indefinida, o terror vago mas incessante e implacável de alguma desgraça, de perdas e derrocadas financeiras, a insegurança de todos, cada qual à sua maneira temendo o desamparo e o sofrimento, a ausência de solidariedade e o doloroso costume do castigo fisicamente imposto sobretudo aos escravos, num ambiente de gemidos e lamentações, quando não no silêncio pesado que esmaga os ruídos que o queiram perturbar. A necessidade de manter um sistema de dominação, uma vez estruturada a comunidade da fazenda, exige o trabalho escravo e a hierarquia rígida, costumes estabelecidos e mantidos sem trégua; a serviço deles, o senhor do Grotão, secundado pelos próprios membros da comunidade, impõe a interdição multiforme e minuciosa, com pulso firme e autoridade absoluta e devastadora, prevendo e esmagando no nascedouro qualquer oportunidade de rebeldia ou fissura interna na organização. A interdição, no entanto, vai além da mera necessidade: ganha foros de entidade, torna-se gratuitamente institucional e chega ao ponto de tornar individuais os estratos hierárquicos a que se destina. Atinge a intimidade de cada um, internalizada e praticada quase com devoção, não obstante o peso de sua incomodidade e a frieza e a solidão a que obriga, no convívio, os moradores da fazenda.

O real é transformado em simbólico: a altura opressiva das paredes, menos que preservar do calor os habitantes, como era usual na arquitetura da colônia, funciona como elemento "educativo" de seus moradores; imponência, fausto e requinte têm função semelhante nos móveis, nos objetos de uso, na própria disposição dos cômodos, que impede passagens diretas entre as salas, obrigando sempre ao uso do corredor quem transita entre um e outro compartimento.

O único ruído admitido fora da rotina aceita pela ordem estabelecida – e por isso querido praticamente por todos os membros dessa estranha comunidade – fora o riso da menina, filha mais nova dos senhores, catalisadora de todos os sentimentos afáveis e amorosos do grupo e até mesmo dos escravos e serviçais. Obscuramente, essa personagem se liga às pessoas e à própria natureza do lugar, fundindo-se numa espécie de consenso que Costa Lima chama "significado legalizado": suas travessuras, sua imagem e seus sons infantis identificam-se ao lado desejável da vida, utopia de alguns, quebrando de modo não repreensível a severidade irrespirável do ambiente. Não estivera imune à repressão: viram-na chorando, em sua cadeirinha, por conta de sofrimentos "de adultos". Sua existência não é importante enquanto fato relatado, mas enquanto fato virtualmente reforçador da realidade do Grotão. A presença da menina, que de outro modo viria a ser um subvertedor potencial da ordem estabelecida, é capitalizada por essa ordem, e nesse sentido é parte do mencionado quiasmo vida-morte: ela participa de ambos os termos quando põe a primeira a serviço da segunda, resgatando para a ordem masculina características convencionalmente pertencentes à feminina.

Aquilo que agrada às pessoas, isto é, o que provoca e permite desafogar sentimentos confortáveis, gratificantes e amorosos, destoa do tom geral da casa sombria, e pode afinal ser considerado ocasião de união e solidariedade não aprovadas entre os habitantes. O "amor contido" de todos pela menina poderia vir a tornar-se um sentimento capaz de infiltrar o pavimento homogêneo, o alicerce que qualquer doçura ou alegria viria a ameaçar pela quebra do "clima" geral de temor e desconfiança que o cimentava.

Isso não só foi evitado durante a sua vida como após a sua morte, quando se proibiram rigorosamente as manifestações individuais ou coletivas de emoção. Os consequentes sentimentos de solidariedade e as demonstrações de ternura provocadas pela morte da criança seriam, portanto, sufocados e interditados pela pesada lei da fazenda, pela ordem masculina predominante, uma vez que não desempenhariam qualquer papel auxiliar na manutenção dessa ordem. Antes se preferiria preservar a imagem da criança desaparecida como uma espécie de fetiche (seu retrato pintado depois de morta), mantendo viva e atuante em todos a lembrança de seu papel. Nesse sentido, Costa Lima observa o caráter subtrativo do significado legalizado que a Menina Morta representa: somente "enxugada" de e inacessível a todas as manifestações afetivas ou emocionais, a imagem da criança pode permanecer como lenitivo e coadjuvante do sofrimento que atinge a todos no Grotão. Morta, ela é a "pureza absoluta", contrastando com a "seiva estuante" que, fora dos limites da casa-ordem, equipara-se à lama e à podridão. A alegoria do caixão cercado de suntuosa decoração, que jamais se pensaria em dedicar à vida e a seus sinais dentro daquela casa, é como o ápice do significado do romance, a imagem nítida do quiasmo sobre o qual se constrói a trama.

A expectativa da comunidade sobre a menina seria a que se repetirá mais tarde para com sua irmã Carlota, vinda da corte sem terminar os estudos, possivelmente para substituir as imagens da mãe e da criança: "servir como motivo de alegria, de descontração, de quebra do pesadelo. (...) A comunidade pressiona para que o passado possua a força suficiente de se repetir no presente, repetição cuja plenitude exigiria que a recém-vinda [Carlota] fosse sucessora da mãe e da irmã, enquanto se preparava para realizar o contrato de casamento" (idem, p. 142). Uma vez que a menina é "adorada pelos integrados nas linhas antagônicas, sua posição não estaria a priori decidida. Caberá portanto a Carlota, enquanto rompedora do equilíbrio, situá-la" (idem, p. 145).

Carlota, que surge como aliada da ordem reinante e acaba escolhendo destruí-la, recusando-se a um casamento de conveniência e desestruturando a organização rígida imposta por seu pai, teria sido responsável pela decifração do enigma da fazenda, percebendo o papel desempenhado pela menina e por outros personagens nessa organização. Vemos, então, surgir em Carlota o ponto de cruzamento  de duas linhas "que têm o Comendador e Mariana como principais e primeiros representantes". O lugar simbólico da Menina Morta não está definido: ela pertence ao passado, seu retrato é um fetiche que, em dado momento, as mulheres da fazenda suspeitam que Carlota haja feito desaparecer, assumindo porém ela mesma o seu lugar. Carlota, contudo, após um período de indecisão entre casar-se com o noivo que não escolhera, servindo assim aos interesses econômicos e políticos do pai, e fugir do estreito círculo que a faz prever um futuro de estagnação e sofrimento, um destino semelhante ao de sua mãe, escolhe a segunda hipótese e desmancha o casamento.

Enquanto a menina morta "trazia bálsamo", Carlota espalha a destruição, rompendo o mito da irmã e o círculo onde a vida era alimentada "pela morte lenta de seus membros". Carlota não inaugura outro tipo de vida, porque não muda a forma da organização. Ela destrói o que existia e não estabelece condições de substituição, tornando-se assim "morta-viva": é uma ordem em que "a morte assume a posição de sujeito para que mate a inversão perpetuadora da ordem 'real'" (p. 149).

Um encontro de casos

São evidentes as diferenças entre um e outro texto. Somente guardando as devidas proporções entre suas respectivas características de gênero, estilo e linguagem, e atentando aos diferentes graus de concentração focal de cada um, pode-se perceber até que ponto é apreensível a analogia entre os enigmas propostos por um e outro. Desafiadoramente, o enigma se edita e reedita em signos ambíguos, insinua-se pela subtração de dados e define dois mundos cujos contornos escapam de um ou de outro modo aos registros de nossa experiência por um detalhe ou uma lacuna deixada pelos fatos supostamente omitidos.

Assim, também há em ambos os textos despreocupação quanto à elucidação dos respectivos enigmas: a explicação fica em aberto, o que os exclui do rol das histórias de mistério. Nenhum fato desvendador se anuncia, nenhuma suposição pode ser mais que uma hipótese forjada com dados entrevistos. Na verdade, o mistério é o coração do conto e o espírito impalpável que permeia o romance. Mas as afinidades entre os dois nos parecem fortes o bastante para justificar uma análise comparativa.

A solidão presumidamente voluntária dos irmãos contrasta com a solidão misteriosamente circunstancial dos habitantes da Fazenda do Grotão, nos meados do século XIX, na região do Vale do Paraíba: cada qual circunscrito a seu espaço, usando a medo as áreas de circulação, encontrando-se com reserva à mesa. O narrador da “Casa tomada” alude a um duvidoso bem-estar que o autor de A menina morta não pretende simular mas que, bem ao contrário, fica tacitamente interdito na casa da fazenda. A julgar verdadeiro o apego excessivo dos dois irmãos do conto à casa herdada dos antepassados, no entanto, a qualidade de sua solidão poderia ser considerada de uma espécie bem diversa à do confinamento a que estavam condenados os moradores do Grotão, observadas as diferenças quanto ao relacionamento e ao tipo de vida – que na fazenda beiravam as dimensões da tragédia.

Dois fatores se destacam na caracterização dessas diferenças: o papel dos interiores das construções em questão, tanto no que diz respeito à influência do ambiente e da arquitetura no clima dominante em cada narrativa como enquanto signo desse clima, e o fator onírico, óbvio e declarado pelo autor de “Casa tomada”, porém difuso e veladamente onipresente no romance de Cornélio Penna.

No que se refere à vida na fazenda, o texto não deixa dúvidas quanto ao papel metafórico das paredes inusitadamente altas, das grades e cortinas em excesso, da escassa luz interior e do vulto opressivo da construção, onde a decoração e o mobiliário reforçam a rudeza da vida e seu caráter penitencial observados por Costa Lima (1976). A Fazenda do Grotão é verdadeiramente uma prisão, um lugar de desolação e de ausência da alegria.

Em “Casa tomada”, o autor se estende na descrição da casa que "tinha diante dos olhos" (1991, p. 52), recém-desperto do pesadelo em que a vira com detalhes. A divisão do interior e o ambiente de cada cômodo são delineados com um cuidado que se justifica pela divisão da ação em duas etapas, cada qual em um dos lados da casa. A impressão que se procura passar ao leitor é a de lugar de conforto e bem-estar, embora a insistência sobre o excesso de espaço num lado sem uso da casa sugira a iminência do fantástico. Considerada a sugestão do incesto, não haveria por que duvidar do bem-estar, uma vez que a casa seria a morada de eleição, além de agradável por si mesma. A ocorrência da invasão altera esse "ponto pacífico", porque outra realidade aí se desvela sem ser explicada e todo o resto fica tingido de dúvida e ambiguidade. O conto é como uma gravura de contornos límpidos e cores definidas sobre a qual se derramasse um vidro de solvente.

Na fazenda, a situação já é por si penosa e desagradável: desde o primeiro capítulo se apresenta um mundo de pesadelo, obscuro e sofrido, de cores carregadas, em que os personagens arrastam medos e angústias, e onde, em oposição ao que acontece no conto, o comodismo e o desejo de fruição seriam crimes imperdoáveis, aliás previamente censurados por um esquema rígido de interdições em graus variados e hierarquização avassaladora da própria personalidade de cada um.

No tipo de vida nas duas casas pode residir a mais decisiva e profunda discrepância entre os dois textos. O da fazenda é documento dos costumes de uma época e de um espaço geográfico por si sós muito diversos dos descritos no conto argentino. Se em ambos se valoriza metaforicamente a construção que serve de cenário à ação, os signos de importância na compreensão do papel desempenhado por essas construções diferem não de modo diametral, por causa do caráter enigmático específico de cada um, mas de modo irredutível.

Entre o silêncio da Casa tomada e o do Grotão, uma diferença é definitiva: o primeiro é esconderijo, casulo e proteção contra uma ameaça misteriosa e onipresente, mas um esconderijo que se pretende agradável e confortador; o segundo é um silêncio-muralha, robusto o suficiente para abafar clamores de justiça ou liberdade com tanta eficiência que acaba por incorporá-los a esse próprio silêncio que os esmaga, fortalecendo-o ainda mais. O silêncio dos dois irmãos (ou ditado pelo irmão-narrador) pretende manter afastadas as outras pessoas; é um individualismo a dois, ostracismo voluntário onde só se toleram bem ruídos leves e suaves como o roçar de agulhas ou o das folhas do álbum de selos; o silêncio da fazenda, ao contrário, não pretende afastar as pessoas, mas sugá-las para seu próprio interior agreste e pesado, faustoso e arrogante, fazendo delas seus escravos servis e indispensáveis. O silêncio da Casa tomada parece esperar que algum ruído destrua seu aconchego provisório; mas o do Grotão é capaz de envolver e converter em intimidade sua qualquer som que possa perturbá-lo, como acontece com o riso da filha mais nova do senhor, signo da vida que alimenta a morte representada pela ordem vigente na fazenda.

Também afins por oposição seriam os processos previstos para o destino das respectivas casas. O narrador de Cortázar prevê uma destruição voluntária no futuro, signo de apego e zelo exagerado pela propriedade que não quer deixar cair em mãos alheias, ainda que da mesma família. Na casa grande do Grotão, mantida e organizada por uma ordem férrea imposta pelo senhor, onde não há lugar  para manifestações de afeto, a fazenda é entregue à filha que estudava na corte e deveria casar com um herdeiro vizinho para continuar o pequeno império do pai, a serviço do qual a moça abdicaria de sua própria vontade, substituindo ao mesmo tempo a mãe e a irmã mais nova na função de "trazer bálsamo" aos oprimidos do império.

Mas o fim efetivo das duas casas será curiosamente semelhante. Tanto em uma como na outra, a destruição ou seu equivalente virá por intermédio de um agenciamento externo aos primitivos donos (ao menos supostamente, no caso do conto). Na “Casa tomada”, o invasor inominado expulsa os moradores, herdeiros legítimos da casa; no Grotão, é a herdeira e nova senhora da fazenda que, recusando identificar-se às mulheres da família e dar continuidade à ordem estabelecida, determina o fim dessa ordem e, por consequência, sua destruição irreversível por desmantelamento.

Entre os habitantes fugitivos da Casa tomada e a herdeira iconoclasta do Grotão, contudo, a qualidade de herdeiros legítimos é o único traço comum. Enquanto os dois irmãos do conto cultivam um silêncio e um isolamento que já são como fuga, Carlota procura na condição de vida de outros, dos quais pela ordem reinante está hierarquicamente separada, a razão para não aceder à fuga que lhe fora proposta: ela representa o personagem forte e solidário que, antes de se entregar à fatalidade em nome da tradição da família, prefere quebrar todas as camadas do silêncio sólido e secular que cimenta a organização da fazenda.

Os dois irmãos de “Casa tomada” parecem guardar um mistério que provavelmente seria a chave do enigma do invasor inominado. No Grotão, foi a descoberta por Carlota do uso que se fazia da imagem de sua irmã, morta ainda criança, que desvendou o enigma que a narrativa mantém entretecido ao texto desde o início.

Ao leitor de Cortázar cabe um papel semelhante ao da filha mais velha do fazendeiro do romance de Penna. Mas, ao contrário do que acontece no romance, esse papel não se pode cumprir. Carlota busca a explicação de tanto sofrimento e opressão no desvendamento das condições ocultas da vida dentro da fazenda. Ela se põe a serviço dessas vidas apagadas, ao contrário do que o pai esperava dela; toma o rumo oposto ao que ele e toda a ordem estabelecida lhe indicavam. De sua procura e de sua vontade resulta uma soma que neutralizará a subtração sustentadora da vida na propriedade. Em “Casa tomada”, o leitor está impedido de ir além do bueiro onde jaz a chave da casa trancada e definitivamente inútil. A subtração aqui se confirma até a nulificação. Mas logo adiante os dois finais se encontrarão, numa outra nulificação mais abrangente e talvez mais espantosa que a da Casa tomada, porque o Grotão fora uma fazenda próspera e não uma casa de ócio.

É, no entanto, na opressão que vem da ameaça de algum mal que os dois textos mais se encontram. Ambos se organizam em torno de algo por vir que não chega a ser explicitado mas que se cumpre em toda a extensão. Se no romance os personagens diferem em seus destinos, no conto os dois sucumbem juntos e sem outra saída que a perda e as lágrimas de Irene. No romance, as lágrimas estão ausentes. Os personagens de A menina morta se assemelham aos da tragédia grega: morrem de pé ou longe dos olhos do leitor, sem perder a grandeza.

Bibliografia

ARRIGUCCI JR., Davi. Out of nowhere. Suplemento Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte: 25 de agosto de 1984.

CORTÁZAR, Julio. Casa tomada. In: CORTÁZAR, Julio. Bestiário. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971.

COSTA LIMA, Luís. A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

COSTA LIMA, Luís. A perversão do trapezista. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

PENNA, Cornélio. A menina morta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

PREGO, Omar. O fascínio das palavras. Entrevistas com Julio Cortázar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

Publicado em 6 de abril de 2010

Publicado em 06 de abril de 2010

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