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Fontes sonoras não convencionais em Rumos, de Ernst Widmer

Andersen Viana

Membro da Academia Mundial de Trilha Sonora; doutorando em Música (UFBA

Introdução

O século XX foi caracterizado pelo desenvolvimento acelerado da ciência, da tecnologia e do conhecimento em todas as áreas, iniciado após a Revolução Industrial no final do século XIX. Como resultado de uma sociedade múltipla e efervescente, as artes acompanharam esse processo de desenvolvimento de forma vertiginosa posicionando-se, paulatinamente, na vanguarda do pensamento ocidental. Na música, os avanços foram conseguidos de maneira tão rápida durante o último século que, comparando com os séculos anteriores, em toda a história nunca houve tanto progresso. Com a tonalidade expandida, e finalmente com a ruptura do tonalismo, com o advento da Segunda Escola de Viena, a música começou sua jornada por novos e desconhecidos caminhos.

O desenvolvimento e a percepção do ritmo como força independente, a politonalidade, o serialismo integral, a hermética arte da microtonalidade, a improvisação, a aleatoriedade ou indeterminismo, o advento da música concreta, da música eletrônica, da música estocástica, da música computadorizada – que está ainda em sua infância e que promete ser um dos grandes pilares sonoros do século XXI –, pintaram uma enorme paleta colorida plena de possibilidades nunca antes imaginada, em que os compositores e intérpretes puderam expor ao público novas estruturas sonoras e formais.

Dentre as variadas formas de ouvir e pensar a música, inúmeros teóricos têm comparado a arte dos sons com outras artes e, até com certo sucesso, fazendo surgir novas formas de perceber a música, novos paradigmas e suas relações intrínsecas do passado com o presente. Estudiosos têm determinado que certas estruturas sonoras oriundas da técnica do século XX – por exemplo, harmônicos de violinos, violas e flautas na região aguda formando um acorde, contrastando com estruturas poliacordais na região grave e subgrave emitidas por violoncelos, contrabaixos, tímpanos, bombo e piano – possam se assemelhar a contrastes de cores, como se se tratasse de uma pintura em que a luz se opõe à sombra, criando texturas próprias de cada atmosfera sonora.

Alguns grandes compositores, como Korsakov e Scriabin, foram influenciados pela ideia sugestiva de encontrar um ponto em comum entre as artes visuais – mais especificamente a pintura – e a música. Poderíamos posicionar o início dessa ideia no século XVII, com as peças dos Minesingers, como: Melodia da Estrela Azul, Melodia Vermelha da Tarde, Melodia da Pele Amarela do Leão. Não se pode subtrair o valor conceitual dessas variadas confluências, mesmo porque a música tem extraído denominações estéticas da arquitetura (no Barroco), da literatura (no Romantismo) e da pintura (no Modernismo e Pós-modernismo). Naquilo que é intitulado colorido orquestral, variados matizes sonoros e novas tessituras, por exemplo, é onde se situa a obra Rumos op.72, de Ernst Widmer, que, consolidando uma parceria com Walter Smetak – um dos grandes expoentes da criação de novos instrumentos e novas cores sonoras com ampla aplicação –, desenvolveu uma abordagem original e única no ambiente sinfônico. Nesse contexto, pretende-se analisar aspectos da utilização de elementos sonoros não convencionais na obra e seu significado, tendo como intenção investigativa desvendar algumas propostas feitas pelo compositor com essa obra.

Rumos oferece diversas possibilidades de interpretação. Foi dividida em duas grandes seções: RUMOS NO MUNDO SONORO e RUMO SOL-ESPIRAL (o grifo é do próprio autor). A primeira parte – que é a parte pedagógica e ilustrativa – não pode ser apresentada separada da segunda, porém a segunda – a obra sob a forma de concerto propriamente dita – poderá ser apresentada sem a primeira. A obra musical é complementar à tese para o concurso de professor titular do Departamento de Composição, Literatura e Estruturação Musical da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, intitulada ENTROncamentos SONoros – Ensaio a uma didática da música contemporânea. Tanto a tese quanto a obra musical foram realizadas entre os anos de 1971 e 1972. Rumos é, portanto, uma obra artística que tem como grande meta a sua função pedagógico-social. Em um texto de cunho didático revelador, Widmer consegue como poucos ultrapassar as fronteiras do convencionalismo sem ser, contudo, hermético. O compositor utilizou meios novos, antigos, eruditos e populares, alcançando objetivos múltiplos: o objetivo artístico que todo compositor persegue; o objetivo pedagógico, dirigido ao músico executante que entrará em contato com procedimentos da música contemporânea; e o direcionamento ao público especializado para finalmente atingir o público leigo, que conhecerá uma obra de caráter experimental inovador.

Para tanto, Widmer utiliza meios não convencionais para atrair a atenção da plateia e acaba por incluí-la na obra, expandindo seus limites sonoros, direcionando-a ao humano, ao participativo, ao inclusivo. Essa experiência de inclusão e participação do público está entre as mais bem-vindas tarefas que podem ser feitas por um compositor, e Widmer conseguiu realizá-la com exímia maestria. Nas palavras do compositor: “Finalmente, a obra Rumos op.72, que completa o presente estudo, evitando soluções simplistas, pretende não negligenciar o complexo e contribuir para uma percepção natural e espontânea da música contemporânea através de impacto e participação” (Widmer, 1972, p. 17).

Para melhor compreensão dessa obra, organizamos nossa abordagem com base nos seguintes tópicos e subtópicos: 1. Instrumentos não convencionais (1.1. Instrumentos percussivos, 1.2. Instrumentos não percussivos, 1.3. Instrumentos de Smetak); 2. Aspectos de notação (2.1. Notação convencional, 2.2. Notação não convencional); 3. Participação do público (3.1. Fontes sonoras diversas, 3.2. A voz como fonte sonora).

1. Instrumentos não convencionais

Além de todos os instrumentos tradicionais de uma orquestra e maneiras diversas de extrair sons desses instrumentos, Widmer utiliza dois elementos que são também fundamentais para a sonoridade vanguardista que é conseguida nesta obra: a fita magnética e o vibrafone. No decurso da obra o compositor usa este último instrumento em um motivo composto por si, dó, dó#, ré, alternando as classes de notas. É o único instrumento melódico do complexo sonoro criado dentro de um contexto em que se encontram instrumentos de percussão de altura não determinada, formando um todo de rica sonoridade, produzindo “sons incrivelmente suaves e etéreos” (Widmer, 1971).

1.1 Instrumentos percussivos

O compositor discorre sobre a seção da percussão como “a mais nova família da orquestra sinfônica. Deixando de ser subordinada aos demais instrumentos”. Isso trouxe, na obra, independência percussiva orientando novos elementos sonoros dispostos na paleta orquestral. Com seis percussionistas, Widmer escreve para um grande aparato de percussão com sons conhecidos e desconhecidos do público: papel celofane, pedras, glockenspiel, tímpanos, vibrafone (com arco e sem arco), caixa-clara, templeblock, bombo, xilofone, prato suspenso, reco-reco, triângulo, matraca, castanholas, chicote, lixas, tantã, bongô, folha de flandres e folha de estanho. Esses sons são apresentados de forma individual e em combinações, formando novas sonoridades resultantes.

No século XX, outros compositores utilizaram os instrumentos de percussão de forma inovadora, dando a esse conjunto uma independência até então não imaginada. A utilização de novos sons percussivos foi feita, entre outros, por Humperdinck (1854-1921), em sua ópera Hansel und Gretel – com um instrumento imitativo do cuco; George Gershwin (1898-1937), em Um americano em Paris, utiliza buzinas de automóveis imitando os táxis da capital francesa; Edgar Varèse (1883-1965), na obra para orquestra Intégrales, usa dezessete instrumentos de percussão, entre eles correntes (chains); Gilberto Mendes (1922), em sua Música para 12 instrumentos, propõe o berimbau da capoeira; Luis Carlos Vinholes (1933), em Tempo-espaço VIII, usa uma “caixa de madeira”, assim como inúmeras partituras que pertencem ao Grupo de Compositores da Bahia trazem a utilização da percussão em sua máxima possibilidade expressiva, dentre as quais Rumos.

1.2 Instrumentos não percussivos

A utilização da fita magnética – produzida pelo compositor em estúdio de gravação com elementos da música concreta – traz para o âmbito da obra elementos sonoros que não poderiam ser escutados se não fosse o uso desse artifício, como os delicados sons de gotas de água. Na obra, Widmer utiliza celofane, pedras e lixas, antecipando de forma imitativa a entrada da fita magnética. Por meio desta última, o compositor utiliza sons de gotas de água, sons de motores, pássaros e do ruído branco. Widmer, nesse trecho, exemplifica a experiência sônica da vida trazendo para o contexto da obra artística os sons da natureza.

Importante ressaltar que a procura por novas sonoridades foi um dos grandes objetivos dos compositores no século XX. No âmbito dessa atitude composicional pode-se citar a inclusão de novas sonoridades obtidas pelo instrumento Ondas Martenot, um dos instrumentos solistas na sinfonia Turangalila, do francês Olivier Messiaen, escrita de forma absolutamente convencional.

Observando os exemplos nota-se a continuidade sonoro-eletrônica da fita magnética, que é simbolizada pela continuidade de uma linha grossa expressa na partitura. Essa linha é utilizada por Widmer para expressar diversas situações em que o som deve ser prolongado; esse procedimento também é utilizado por diversos compositores contemporâneos. A diferença entre as duas linhas reside no fato de que uma é mensurada, de acordo com a métrica do compasso 2/4, e a outra é contada através de segundos, trazendo duas temporalidades distintas com a utilização de um mesmo recurso.

Exemplo 1

Exemplo 2

 

1.3 Instrumentos de Smetak

Nos últimos oito compassos da obra, o compositor realiza – se a reação do público assim o determinar – o encerramento com a citação da canção popular É doce morrer no mar, de Dorival Caymmi, de forma fragmentada e distribuída entre os instrumentos convencionais da orquestra, terminando definitivamente com o instrumento de Walter Smetak intitulado ronda, último instrumento a ter sua entrada na obra. Talvez para entender a profundidade do pensamento smetakiano seja preciso antes desvendar conhecimentos ligados à filosofia, à psicologia, ao misticismo das variadas linhas de pensamento religioso do Ocidente e do Oriente, à física, à matemática, aos saberes de origem popular. “O tempo é um aspecto fugitivo da eternidade” (Smetak, 2001, p. 139). O que é mais fascinante é que cada instrumento parece possuir um caráter particular, como se fosse uma criatura viva com personalidade própria. Interessante o processo de antropofagia cultural que acontece com Smetak nos instrumentos intitulados por borés, datados de 1972. Um tubo de PVC, uma cabaça como campana do instrumento e bocal por onde o ar é soprado, “Dando bramidos, típicos dos índios, para a chamada da guerra” (Smetak, 2001, p. 177). São utilizados na obra como o primeiro instrumento de Smetak a ser ouvido. O instrumento três sóis propõe, de acordo com o construtor, alegria e diversão. Construído com três rodas de tamanhos variados que circulam sobre um eixo central, o sistema que o faz soar são as rodas que atingem molas, resultando em diversos sons, tendo uma caixa de isopor como caixa acústica. Com o fim do impulso, acaba-se também a geração de som. Widmer escreve no texto de apresentação da obra Pizzicato mecânico dos três sóis em dinâmica forte. Smetak relaciona ronda com a ampulheta do tempo, sugerindo sua ligação com o movimento e o espaço. Sobre este instrumento ele discorre: “Está na nossa frente a ampulheta, o relógio do tempo, no qual o mesmo se esgota. Areias de desertos, areias sem fim, mares de areias” (Smetak, 2001, p. 139).

Essa ideia remete a Kramer (1988, p. 330) quando salienta que “Music theory usually ignores the considerable variance in the ways different people perceive both music and temporal relationships. The subjectivity of time is, however, a center concern of cognitive psychology”.

Ainda sobre a afinação do instrumento ronda, o construtor diz que ela é arbitrária e pode-se tocar da maneira que melhor convier ao executante; o ponto mais valorizado por Smetak nesse instrumento é “o profundo silêncio no qual a nota, a vibração, se encontra com si própria” (Smetak, 2001, p. 139). Finalmente o instrumento baixo mono, que é construído sobre uma tábua comprida e tem uma corda grave de piano estendida tocada por um arco curvo com duas caixas acústicas que produzem um som de longa duração. O construtor propõe a utilização de vários instrumentos desse tipo para a obtenção de “efeitos extraordinários”; contudo, Widmer utiliza apenas um desses instrumentos com diferentes ataques de arco.

Aspectos de notação

O sistema de notação musical evoluiu gradativamente através dos tempos e ainda continua sendo modificado, especialmente em alguns instrumentos solistas. A escrita musical tem recebido diversas propostas de novas notações por inúmeros compositores – algumas muito interessantes e inovadoras, como no caso da notação gráfica proposta e desenvolvida também por Robert Moran – mas, que não foram efetivamente absorvidas no âmbito das escolas de música e dos conservatórios, e, consequentemente, relegadas a um último plano.

Contudo, uma nova música se desenvolveu durante todo o século XX e para grafar essa nova música deveriam ser desenvolvidas novas formas de expressão gráfica e musical. Dessas representações de novos efeitos sonoros e estruturas musicais novas dentro de um sistema comum é que algumas modificações foram incorporadas ao sistema de notação convencional. Isso acabou por incorporar novas notações, inclusive, hoje em dia, com o uso intensivo de softwares profissionais de edição de partituras.

No exemplo 3 está demonstrado como Widmer grafa os quatro tipos de instrumentos construídos por Walter Smetak: os três sóis e a ronda empregam uma notação circular, seguindo a forma estética da construção dos instrumentos. O borel, devido à sua natureza de tubo soprado – obviamente dentro da série harmônica –, sustenta a nota atingindo subitamente a região aguda, “como um grito de guerra dos nossos índios no passado”, logo efetuando um glissando descendente e terminando o som. Já o baixo mono,utilizando um arco curvo, efetua o ataque – o mais forte possível mantendo a sonoridade da corda até onde acaba o arco. O compositor procurou grafar estes efeitos de acordo com suas características físicas e sonoras, o que faz com que a relação entre som, instrumento e notação torne-se mais coerente.

Exemplo 3

No Exemplo 4 está uma forma híbrida de notação musical que Widmer utiliza na obra Rumos com muito êxito.

Exemplo 4

A partir do Exemplo 4, em um dos momentos interessantes da obra, o compositor soma os sons dos instrumentos convencionais aos instrumentos de Smetak e a sons percussivos, juntamente com a fita magnética. A notação desenvolve-se livremente, contando para isso com uma bula na segunda página da obra.

2.1 Notação convencional

Nesta obra encontram-se citações da canção popular de Dorival Caymmi É doce morrer no mar feitas pelo coro na tonalidade de mi menor, que é utilizada para finalizar a obra de forma fragmentada. Por vezes a notação convencional exemplifica de forma mais sintética o pensamento musical – ou onde simplesmente não há a necessidade de maiores sofisticações para a escrita, trazendo logo no início da obra um efeito sonoro particular:

Exemplo 5

Com três sonoridades diferentes expressas por apenas um tipo de instrumento – o trompete –, Widmer apresenta ao público uma melodia de timbres na qual a altura permanece a mesma, variando o timbre com a utilização de outras duas surdinas (metal e cartão) e um pouco a intensidade do instrumento. Isso, para quem nunca tinha presenciado o trompete tocar outros sons que não o habitual, representa sem dúvida um avanço na área do conhecimento sonoro.

2.2 Notação não convencional

Para mostrar ao público novas ideias sonoras e efeitos nunca antes realizados, os compositores do século XX começaram a se exprimir de forma cada vez mais abstrata, mas coerente com o pensamento da contemporaneidade. Móbiles, símbolos, grafismos, bula, notação verbal, todo esse arsenal esteve à disposição dos compositores para expressar o novo. Não se pode esperar uma notação convencional de uma obra musical conceitual composta, por exemplo, para dez instrumentos cirúrgicos à escolha do executante.

Um aspecto muito interessante da obra Rumos encontra-se quase no final dela. Os variados diálogos propostos pelo compositor entre coro, orquestra e público trazem outra possibilidade de terminar a obra. No final, inicia-se a proposta de uma sequência de perguntas e respostas entre orquestra e público que se repete até três vezes. Caso não haja nenhuma resposta por parte da plateia, a execução segue normalmente até o fim. São experimentos sonoros provocativos que podem (ou não) ter reações calorosas por parte da plateia, e não há como prever essas reações. Para o caso de haver tumulto na plateia, o compositor muito habilmente desenvolveu um final emergencial para que se possa terminar a obra:

Exemplo 6

De maneira peculiar, este final está posicionado entre dois ataques fortes com um grande crescendo que culmina com um último ataque fortíssimo em tutti. Nesse caso, há a possibilidade de que o público possa vaiar, assobiar, gritar ou fazer qualquer tipo de barulho ou manifestação, e a única solução seria o aumento do nível de decibéis por parte dos intérpretes.

Participação do público

A alta especialização existente em qualquer área do conhecimento humano se mostra às vezes contraproducente, pela possibilidade de ficar restrita a um pequeno número de pessoas ou experts, tornando essa atividade uma atividade elitista, e, no caso da música culta, distanciando os profissionais envolvidos e o público do trabalho do artista. Widmer, na obra Rumos, resolveu trilhar o caminho inverso. Mesmo com uma linguagem sonora complexa, conseguiu, como poucos, fazer do espectador um participante ativo na execução da obra como protagonista e não como espectador, utilizando para isso os meios disponíveis: voz humana, chaveiros, pulseiras e balangandãs.

3.1 Fontes sonoras diversas

O compositor consegue incluir a participação do público na obra como a segunda atividade, que seria o uso de “artefatos cotidianos percussivos”. Para tanto, o texto do compositor narrado por um apresentador conduz a plateia de forma a participar e a conseguir o efeito do tilintar de chaves diversas, o som das pulseiras das mulheres, brincos, colares, miçangas ou qualquer artefato de uso que possa emitir som. Essas possibilidades são inúmeras, como eram os variados artefatos utilizados no período, especialmente pelas mulheres.

Exemplo 7

Como demonstrado no Exemplo 7, nota-se que Widmer coloca uma linha contínua envolta em incontáveis eventos sonoros que distingue bem a ideia de continuidade do som pelo complexo sonoro bem como a multiplicidade de artefatos de diversas origens com sons geralmente muito curtos e secos.

3.2 A voz como fonte sonora

Como forma de participação e inclusão do público, o compositor utiliza, tanto em RUMOS NO MUNDO SONORO quanto em RUMO SOL-ESPIRAL, a participação da voz humana. Para tanto, o texto lido pelo narrador introduz as mudanças de relação entre compositor-intérprete-público, convidando este último a participar efetivamente da composição.

O intérprete vê a sua participação cada vez mais requisitada, quer para pesquisar timbres especiais, quer para completar trechos aleatórios, isto é, parcialmente improvisados. O público deixa de ser mero apreciador, podendo chegar a cooperar de maneira decisiva e vital. Vamos repetir o último trecho e vocês poderão acompanhar o crescendo da orquestra começando por murmurar, falando cada vez mais alto, até chegar a soltar um grito. Para vencer o acanhamento, poderão ler o programa ou um jornal, iniciando em qualquer página ou lugar. O regente dará a entrada e o sinal para o grito (Widmer, 1972, p. 22).           

Exemplo 8

Widmer utiliza a voz de maneira a introduzir o ruído como nova forma de expressão sonora, englobando tanto a música popular – com a canção de Caymmi – quanto a simulação do ruído pela voz com a utilização de consoantes como v, z, l, m, x, ch e consoantes com vogais, como ul, en. Em outro efeito especial, o compositor consegue a imitação do temple-block pelo público utilizando para isso o “golpe de língua”. No exemplo anterior, de forma bastante simplificada para a plateia, o compositor insere o público em um crescendo orquestral denso, em que se encontra todo o efetivo da orquestra e coral, destacando-se as seções da percussão e cordas com seus movimentos contrários e virtuosísticos em fortíssimo.

Conclusão

“Quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (Freire, 1996, p. 23). Estas palavras do professor Paulo Freire poderiam se encaixar no escopo da obra Rumos, do compositor suíço-brasileiro Ernst Widmer, tal é o nível de troca obtido entre os participantes com essa nova proposta artística e pedagógica. Os variados processos utilizados na obra, sua forma única de inclusão social de uma plateia leiga, sua forma inovadora interpretativa e educativa direcionada não somente aos músicos, musicólogos e pesquisadores como também ao público em geral, fazem com que a obra seja um elo muito importante entre música-músico-público. No mesmo nível artístico de Prokofiev, com a conhecida obra Pedro e o Lobo, assim como o Guia Musical para a Juventude, de Britten, e A Cigarra e a Orquestra, deste autor, Widmer utiliza elementos da contemporaneidade, da música popular, da música experimental, da música étnica, da música concreta e da literatura para criar uma obra de caráter singularmente nacional e ao mesmo tempo universal.

Interessante esse processo de fusão encontrado na obra do compositor, pois o posiciona como um autor genuinamente brasileiro dentro de um sistema de aculturação eurocentrista bastante arraigado no Brasil, mas com toda a autenticidade de uma formação cultural brasileira, que impulsionou o desenvolvimento da música no Brasil, influenciando novas gerações, fazendo com que compositores novos e veteranos possam trazer outros rumos para a música culta da Terra Brasilis.

Bibliografia

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FORSYTH, Cecil.  Orchestration. New York: Dover Publications, 1982.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GOMES, Wellington. Grupo de Compositores da Bahia, estratégias orquestrais. Salvador: UFBA, 2002.

KRAMER, Jonathan D. The Time of Music. New York: Shirmer Books, 1988.

RIBEIRO, Artur Andrés. Uakti - Um estudo sobre a construção de novos instrumentos musicais acústicos. Belo Horizonte: C/Arte, 2004.

ROGERS, Bernard. The Art of Orchestration. Westport: Greenwood Press, 1970.

SMETAK, Walter. Simbologia dos instrumentos. Salvador: Associação dos Amigos de Smetak, 2001.

STILLER, Andrew. Handbook of instrumentation. Berkeley: University of California Press, 1985.

WIDMER, Ernst. ENTROncamentos SONoros, ensaio a uma didática da música contemporânea. Salvador: manuscrito, 1972.

WIDMER, Ernst. Rumos op.72. Salvador: manuscrito, 1971.

13 de abril de 2010

Publicado em 13 de abril de 2010

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