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Pierre Lévy e a semântica global
Alexandre Amorim
Quando a Europa se voltou para o que viria ser a América, o velho continente já havia estabelecido uma sociedade funcional entre seus países. França, Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra e outras nações já trabalhavam de maneira conjunta para a expansão de seus impérios. Mas não esperavam ter que lidar com novas sociedades e linguagens tão díspares do outro lado do Oceano Atlântico. Tupinambás, iroqueses, incas, astecas, maias, guaranis e outros povos viviam em sociedades distintas, havia pouca ou nenhuma interação entre elas e a maioria foi dizimada após a chegada de espanhóis, portugueses, holandeses, franceses e ingleses. O Novo Mundo começou assim: visto pelos europeus como novo, apesar de já existirem civilizações de milhares de anos vivendo aqui.
Este é apenas um exemplo de como uma estrutura social se revela voraz o suficiente para dizimar outras sociedades. Sua forma de pensar, seus valores morais e econômicos – sua cultura, enfim – são imbuídos de uma fome de poder que, à época das descobertas, tinha como princípio expandir seus territórios e impor sua ideologia. Hoje, o termo imperialismo caiu em desuso, parcialmente substituído pelo termo “globalização”. A coletivização de costumes e da economia afeta as sociedades de modo diferente; as mais fortes são favorecidas pela manutenção de seu status, enquanto sociedades mais instáveis ou menos próximas do modelo globalizante se submetem à nova ordem mundial.
Como exemplos dessa relação desigual podemos citar alguns países submetidos abertamente a regras norte-americanas de economia, como Porto Rico, Panamá ou Filipinas. Os países africanos também sofrem com a desigualdade em relação a países desenvolvidos; mesmo países naturalmente ricos, como Zaire e África do Sul, servem como base na construção da globalização. Antigas colônias que ainda penam entre guerras civis e o desprezo de países ricos continuam à margem do processo mundial de coletivização da economia e da informação.
O pensador Pierre Lévy, 54 anos, professor residente da Universidade de Ottawa (Canadá), é conhecido por seu conceito de “inteligência coletiva”; ele afirma que o mundo virtual pode modificar essa relação de forças. Na sua opinião, o progresso nas telecomunicações levou à interatividade da internet, em que os usuários podem desenvolver seus conceitos e ideias. Essa possibilidade de conhecimento compartilhado é a base para chegar ao que Lévy chama de “esfera semântica”, uma evolução da própria rede de computadores que organizaria dados conceituais de modo fácil e acessível a todos os usuários da rede. Durante o Seminário Internacional sobre Inovação e Educação, promovido em março deste ano pelo Senai e pela Firjan, o acadêmico expôs suas considerações a respeito do que considera o meio de comunicação e colaboração por excelência: a internet.
A nova mídia oferece ao homem a oportunidade de compartilhar seu conhecimento e sua imaginação. Lévy supõe que esse compartilhamento pode levar a uma “democracia em tempo real”, renovando até mesmo as relações econômicas. A longo prazo, a inserção do indivíduo na rede faria com que as relações se tornassem mais igualitárias, uma vez que todo conhecimento estaria à disposição e ao alcance de todos. O autor situa o projeto da inteligência coletiva em uma perspectiva antropológica de longa duração; essa inteligência pode ser compartilhada e aproveitada por tempo indeterminado, já que a rede virtual não teria limites de armazenamento. De acordo com Lévy, a identidade e o vínculo social se desenvolveram na relação com a economia, com os territórios e com o universo e podem se expandir ainda mais na troca de conhecimentos.
O ciberespaço é a região por excelência dessa troca e, consequentemente, do desenvolvimento da inteligência coletiva. Como afirma Mário José Lopes Guimarães Júnior, em seu trabalho A cibercultura e o surgimento de novas formas de sociabilidade, é no ciberespaço que o “mundo real migra para um mundo de interações virtuais”. Lévy afirma que "o real assemelha-se ao possível; em troca, o atual em nada se assemelha ao virtual: responde-lhe", o que significa que o atual não está para o virtual como o real está para o possível. Se o real é a efetivação do possível, o atual é apenas uma das muitas facetas do virtual. Guimarães Júnior deduz então que
o virtual não pode ser compreendido como o possível, pois este já está determinado, mas sim como um ‘complexo problemático’ que dialoga e interage com o atual, transformando-se de acordo com as peculiaridades de cada contexto. (...) O ciberespaço pode ser, portanto, considerado uma virtualização da realidade, uma migração do mundo real para um mundo de interações virtuais. A desterritorialização, saída do ‘agora’ e do ‘isto’, é uma das vias régias da virtualização, por transformar a coerção do tempo e do espaço em uma variável contingente.
Portanto, o ciberespaço traz novos tipos de relação entre indivíduo e realidade, porque ambos vão viver em um mundo virtual, fora da tradição de territórios, sistemas econômicos e culturais. O mundo virtual é um constante pedido de resposta, porque sempre vai depender da relação entre o indivíduo e sua própria condição naquele momento. No mundo virtual não existe a realização de um potencial, mas inúmeras atualizações de uma ideia ou, em termos cunhados por Lévy, atualizações de várias semânticas e inteligências. A inteligência coletiva, portanto, se forma das várias inteligências que colaboram ou competem entre si, com a ajuda dos meios de comunicação.
Lévy considera a informática a analogia ideal para demonstrar sua tese. “Nosso sistema operacional é o sistema simbólico”, ele diz, o que nos leva a uma determinação de uma inteligência simbólica: podemos refletir sobre nós mesmos e sobre os outros, isto é, dialogar e compreender sistemas cognitivos. Além disso, desenvolvemos também a habilidade de contar histórias, o que fortalece em muito nossa capacidade de manter nossa memória, especialmente através de uma ferramenta poderosíssima: a escrita.
O sistema simbólico, aliado à capacidade de memória, é um indicativo da evolução do que o pensador denomina Mediasphere (ou Midiaesfera): a partir da oralidade, passando pela escrita e pela mídia de massa, chegamos ao meio digital. Lévy chama atenção para o fato de que a economia industrial, baseada na mídia de massa e na mensagem impressa, evoluiu para a economia do conhecimento, baseada no meio digital. A partir dessa evolução, é necessário levar em consideração dois tipos de gerência:
- Gerência de conhecimento pessoal, em que o indivíduo deve se preparar para fazer suas próprias escolhas, dentro da quantidade absurda de informação encontrada na internet: definir interesses, prioridades e áreas de especialização (adquiridas e desejadas). A partir dessa preparação, o indivíduo poderá se conectar às fontes certas, filtrar e categorizar o conhecimento desejado, registrar e sintetizar esse conhecimento para enfim compartilhá-lo de acordo com suas próprias ideias.
- Gerência de conhecimento social, que consiste em transformar conhecimento implícito em conhecimento comum. Lévy aponta três movimentos necessários para a realização dessa transformação: centrípeto, partindo de vários pontos de vista para uma visão comum; centrífugo, partindo do senso comum para o pessoal; e dialético, que seria uma conversação entre os conhecimentos para que se crie a prática comum.
Essa evolução traz dois problemas fundamentais: a diferença entre as linguagens naturais e o grande número de comunidades e sub-redes existente na internet. Os sistemas simbólicos atuais não exploram suficientemente bem o potencial de uma rede como a internet porque ainda não souberam conjugar as variedades existentes entre as linguagens usadas e não souberam ligar de modo satisfatório as diferentes comunidades virtuais.
A cibercultura promove mudanças profundas no imaginário do indivíduo e na natureza das relações com a tecnologia. Ao mesmo tempo, a tecnologia influencia a subjetividade quando altera nossa forma de representar e interagir com o mundo. Lévy afirma que a tecnologia afeta o registro da memória coletiva social; a partir daí, cunha o termo "tecnologia intelectual": toda sociedade humana é afetada pelo modo como esse registro é realizado. Se, nos anos 1950, conseguíamos manipular símbolos automáticos através de um computador, a internet nos anos 1980 trouxe o registro dessa memória coletiva para uma rede que pode manipular esses dados de modo mais complexo porque inaugura a coletivização desses dados. A comunicação entre computadores, então, evoluiu para a troca de dados e documentos e caminha para o que Lévy chama de “esfera semântica”, em que uma grande base de dados interativa será a base para troca de conceitos. A progressão na abstração dessa troca de informações acompanha a maior complexidade da inteligência coletiva que a humanidade constrói. A conexão entre ideias se tornará automática e todos os sistemas serão dialéticos entre si, isto é, conversarão entre si, de forma que cada sistema de ideias registrado na internet possa ser conhecido e criticado online. Pierre Lévy chama esse processo de “conversação criativa online”.
O complexo de possibilidades formado pelo mundo virtual já existe hoje no ciberespaço. A esfera semântica preconizada por Lévy parece ser possível, uma vez que a rede de dados tende a se transformar em uma rede de conceitos, em uma constante troca de informações. A inteligência coletiva parece ser a gerente necessária para que essa esfera virtual semântica se consolide.
No entanto, é necessário investigar a origem e o resultado dessa inteligência coletiva. Se essa coletividade é formada por várias inteligências que colaboram ou competem entre si, é fundamental indagar se essas colaborações são feitas entre sistemas já estabelecidos e tradicionalmente regulamentadores dessa coletividade. Assim como os países europeus que colaboravam entre si para expandir sua ideologia e sua economia durante a era das “descobertas”, existem hoje comunidades com poder de expansão de sua inteligência e de seu sistema semântico (e simbólico) suficiente para dominar a inteligência coletiva a ponto de fazê-la tornar-se homogênea e medíocre, como tem acontecido com o que chamamos de globalização.
Se a rede mundial de computadores é tão rica e variada, resta saber se estamos prontos para aproveitar inteligências tão heterogêneas e conviver através de uma inteligência coletiva sem que esta se torne um mero pastiche do que realmente deve ser a convivência entre diferenças.
Publicado em 13 de abril de 2010
Publicado em 13 de abril de 2010
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