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Manuel Bandeira e a melancolia de Clavadel

Alexandre Amorim

Dizia Valéry, de acordo com a lírica da severidade formal praticada por Mallarmé, que "uma poesia deve ser uma festa para o intelecto". Por sua vez, o surrealista André Breton formularia outro princípio, oposto ao primeiro; segundo ele, "uma poesia deve ser a derrocada do intelecto". Ambas as assertivas datam de 1929 e atestam tendências polarizadoras da poesia moderna. No entanto, coincidem "no tocante à fuga da mediocridade humana, ao afastamento do concreto normal e dos sentimentos usuais", substituídos por

uma sugestividade ambígua e a vontade de transformar a poesia em um quadro autônomo, objetivo de si própria, cujos conteúdos subsistem apenas graças à sua linguagem, à sua fantasia ilimitada ou a seu jogo irreal de sonho, e não graças a uma reprodução do mundo ou a uma expressão de sentimentos (Friedrich, 1978, p. 143-4).

Esse texto de Friedrich não chega a contradizer, senão momentaneamente, os pressupostos teóricos de um movimento que deixou frutos apreciáveis sem no entanto chegar a constituir-se numa tendência duradoura. A partir daquele enunciado, aceito como definidor da natureza da atividade poética em nosso tempo, vemos que a poesia contemporânea exibe tendências diversificadas, tanto no que diz respeito à linguagem e à forma como aos temas e ao modo menos ou mais substantivo de tratá-los. Tomando esse processo da perspectiva da demolição do "eu romântico" no final do século XVIII e início do século XIX, Jorge Wanderley aponta duas características comuns à política deste último período: "nova proposta racional, novo instrumento verbal". Nota ainda a presença de certa "nostalgia" do romantismo que transparece em valores, categorias e palavras recendentes a um clima romântico, a par com uma poesia que tende de modo mais pronunciado à negação e à destruição (Wanderley, 1981, p. 1-3).

Sem esquecer o devido temor da simplificação, recorremos a esse esclarecimento preliminar bem sucinto apenas com a intenção de situar o foco desta análise sobre Manuel Bandeira – em princípio passível de ser mencionado no campo dos "melancólicos".

Bandeira contava 27 anos quando foi internado no sanatório suíço de Clavadel. Os primeiros contatos de Bandeira com a pobreza se deram na infância, embora não tanto dentro de sua família, mas no ambiente que o cercava em Pernambuco, onde nasceu. Os personagens que poderiam tê-lo despertado de modo mais efetivo para os resultados das desigualdades sociais ficaram em sua memória com "a mesma consistência heroica dos personagens dos poemas homéricos", assim como pessoas da família e amigos do poeta. Arrigucci descreve com riqueza de expressão o processo de assimilação dos personagens reais da convivência de Bandeira ao seu universo paraficcional (Arrigucci, 1990, p. 50-52). Em casa, porém, "nunca faltava o pão, mas a luta era dura (...). Nunca brinquei com os moleques da rua, mas impregnei-me a fundo do realismo da gente do povo" (Bandeira, s.d., p. 13-15).

Seja como for, simplicidade de temas, domínio da linguagem poética e abertura às ideias novas são traços genericamente comuns a esse poeta. A "intensidade poética", no sentido do animus, da disposição criada para e pela poesia, em sua vida e em sua obra. Seu senso de justiça ou sua revolta não chegou ao ponto da destrutividade e da iconoclastia de um Corbière, Laforgue ou Rimbaud. Seguiu caminhos de certa forma previsíveis, não de todo originais, e suas angústias de renovação, conquanto genuínas, referem-se muito mais a impulsos de cunho afetivo-humanístico que de agressão e extermínio. Bandeira não é um poeta da negação.

Simplicidade e descrença na poesia de bandeira

O sofrimento de estar afastado da família e ameaçado por uma doença virtualmente letal, a solidão e mesmo a descrença de Bandeira quanto à transcendência – a descrença "moderna" a que o levou a "descoberta da morte de Deus" (Arrigucci, 1990), em princípio análoga à crise vivida por Mallarmé, não desembocariam, porém, na atitude supressiva do retranchement mallarmeano, mas sim naquilo que, parafraseando Friedrich (1978, p. 108), teríamos razão em chamar "o impiedoso desgaste do ontológico", num estilo que, pela humildade, aproxima-se da tradição cristã (Arrigucci, 1990, p. 132). Isso se daria pela aceitação do "humilde cotidiano" de onde Bandeira "desentranha" o alumbramento poético (Arrigucci, 1987, p. 27):

Neste confronto entre a ameaça inevitável de destruição e a fragilidade da existência humana, pelo trabalho cotidiano e humilde, Bandeira resgata um sentido de sua própria arte poética: a função social de sua palavra fraterna, solidária com a pobreza. (...) O poeta se sente amparado na experiência comum com os outros homens e pode reconhecer na força da fraqueza um poder paradoxal de expressão. (...) Nisto se revela também sua consciência aguda da fragilidade da vida, suspensa por milagre, mas perceptível na miséria, diante do poder da morte. E aí se compreende sua atitude humilde‚ a marca profunda de uma ironia trágica.

Datado de Teresópolis em 1912, antes portanto do tratamento em Clavadel, o poema Desencanto é talvez uma alusão às raízes mais antigas e pessoais da atitude bandeiriana diante do "mau destino". Três quadras de versos de nove sílabas, com tonicidade nas quartas, rimas singelas como a própria música e sentido límpido onde canta a ingenuidade que admirava em Antônio Nobre; termina, forte e fatal:

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
– Eu faço versos como quem morre.
Versos como
– Ah, como dói viver quando falta a esperança!
(Desesperança, 1962)
Ou o terceto final de Renúncia, escrito aos 20 anos, em 1906:
Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...
constam do primeiro livro, A cinza das horas. Em Carnaval, de 1919, a par com a ironia que eclode, surge um poema intitulado A Dama Branca, de tema recorrente – a Morte, cujo pensamento e a velada presença acompanham o poeta:
A Dama Branca
A Dama Branca que eu encontrei,
Faz tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.
Era sorriso de compaixão?
Era sorriso de zombaria?
Não era mofa nem dó. Senão,
Só nas tristezas me sorriria.

E a Dama Branca sorriu também
A cada júbilo interior.
Sorria como querendo bem.
E todavia não era amor.

Era desejo? – Credo! De tísicos?
Por histeria... quem sabe!?...
A Dama tinha caprichos físicos.
Era uma estranha vulgívaga.

Era... o gênio da corrupção.
Tábua de vícios adulterinos.
Tivera amantes: uma porção.
Até mulheres. Até meninos.
Ao pobre amante que lhe queria,
Se lhe furtava sarcástica.
Com uns perjura, com outros fria,
Com outros má.
– A Dama Branca que eu encontrei,
Há tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.
Essa constância de anos a fio,
Sutil, captara-me. E imaginai!
Por uma noite de muito frio,
A Dama Branca levou meu pai.

Num crescendo, o poema prepara o desenlace da última quadra (a oitava) descrevendo, nas três primeiras e nos dois primeiros versos da quarta, a calada e sorridente presença da Dama Branca ao longo de sua vida. A figura que se apresenta, enigmática, tão familiar e constante, parece confirmar a poesia do desencanto e da desesperança, aqui metamorfoseados e personificados na constante ameaça que, no entanto, se veste de branco e sorri nos bons e nos maus momentos da vida. Ela está sempre perceptível e tão inelutável e cotidiana que dispensa seus signos convencionais – o luto e o pranto. Ela é "de casa", e no entanto não há qualquer menção a seu espaço ou a espaço algum. Significativamente, porque sua presença é de natureza quase onírica, e sua manifestação é percebida apenas pelo eu-lírico do poeta. Isso se depreende do fato de que a descrição da presença, a inexatidão dos detalhes, a visualidade nebulosa que apenas deixa detectar a cor e o sorriso e, acima de tudo, o distanciamento deixam no ar temor e imprecisão, a despeito da constância dessa presença. Seria o caso de dizer que a escolha do branco e o enigma expresso no sorriso, que escapa a toda interpretação lógica e, portanto, pertence ao domínio da não razão, identificam-na ao sobrenatural e são signos de uma "assombração". Mas essa hipótese não chega a confirmar-se, pela natureza interiorizada e subjetiva da experiência do poeta.

Nos versos “Sorria como querendo bem / E todavia não era amor” define-se a primeira proposta sobre a personagem em relação ao poeta, estabelecendo-se, por assim dizer, o estado de coisas entre eles. As quadras seguintes, a quarta, a quinta e a sexta, descrevem o comportamento da personagem quanto aos outros. Aqui se identifica o amor carnal à morte. Se para o poeta a Dama Branca tinha sido até então uma ameaça não concretizada, habitual e apenas atemorizante, para outros fora danosa e cruel. A sétima quadra, que repete a primeira, repõe a situação individual, como que para lembrar por que, apesar de tudo, sua presença habitual e incorpórea "Sutil, captara-me". E, tendo-o conseguido, "por uma noite de muito frio, / A Dama Branca levou meu pai".

A Dama Branca é citada nominalmente cinco vezes, sempre sujeito, um dado condizente com seus poderes e com o peso paradoxal de sua imponderável presença. A última palavra‚ sua também no poema, está num verso que fecha o suspense criado pela presença terrível ao longo de tantos anos ali inscritos.

Os versos octossílabos passam a quadrissílabos no segundo da primeira quadra (que se repete no lugar da sétima quadra) e no último verso da sexta. A acentuação recai invariavelmente na quarta de cada verso; as rimas são cruzadas, na maioria, e como que encadeadas onde aparecem quadrissílabos. Entre as rimas cruzadas, a maioria de masculinas – mais um sinal de poder – e de rimas ricas. Mais tarde, já na década de 1940, a imagem da morte aparecia na forma de um anjo benfazejo. A Dama Branca, no entanto, parece uma comprovação de amadurecimento do poeta, quando o domínio da técnica se encontrava praticamente resolvido e a simplicidade, em linguagem elevada, já faz sentir a longa elaboração das vivências significativas, das exigências da linguagem e da própria necessidade da expressão poética, tema desenvolvido por Arrigucci em sua obra de 1990 sobre Bandeira.

Ainda segundo Arrigucci, no entanto, "sobretudo a partir de Libertinagem, na década de 1930, que a vida de relação, tal como se mostrava no dia a dia, se torna matéria literária" (idem, p. 53). De fato, aí vão aparecer poemas como Pneumotórax, O Cacto e esse manifesto da poesia moderna, Poética. Em Libertinagem aparece também o Poema tirado de uma notícia de jornal, instantâneo de uma poesia dolorosa e concentrada que Arrigucci analisa (1990, p. 89), além de outros poemas que evocariam para sempre o nome da Bandeira, como Vou-me embora pra Pasárgada.

A questão da linguagem poética em Bandeira se resolve menos retoricamente, a julgar pelos conceitos emitidos em Itinerário de Pasárgada:

mas ao mesmo tempo compreendi, ainda antes de conhecer a lição de Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e sentimentos, muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia. (...) Quantas vezes também vi (...) um verso defeituoso ou inexpressivo carregar-se de poesia pelo efeito encantatório de uma ou de algumas palavras... (Bandeira, s. d., p. 24-25).

O tom rebaixado, a familiaridade com a morte que reponta em toda a sua obra; a sensibilidade curtida, sofrida, às vezes magoada, mas humildemente magoada, aceita e acolhida de maneira simples; o amor que se expressa paternal, fraterno, sofredor, alumbrado ou erótico, atormentado e sedento, mas sempre triste de seu ar avulso; a autocompreensão, a compreensão dos outros, a delicadeza, a profunda amizade; uma visão própria e definida de poesia que, no entanto, apenas se esboça ou se mostra com ímpeto, como na Poética, em raros momentos de revolta, e a pureza de confessar "não sou mais digno de respirar o ar puro da roça" (Escusa, in Antologia Poética, 1976, p. 126) traçam um perfil muito fiel desse poeta em que a doçura se contamina de solidão. O silêncio que permeia a poesia de Bandeira parece surgir do próprio desentranhamento do poema, de que fala Arrigucci. A decidida adesão de sua poesia da maturidade à linguagem coloquial, a visão poética a partir de notícia, fatos do cotidiano e até de textos utilitários e banais como receitas, fórmulas de farmácia ou objetos da vida do dia a dia não são atitudes novas; outros poetas os teriam praticado, sobretudo a partir de Baudelaire (Arrigucci, 1990, p. 92-93) – mas os gestos da mesma natureza tomam aspectos diversos segundo quem os realiza. E no desentranhamento bandeiriano, em seus encontros alumbrados com a emoção poética, há um silêncio tecido de solidão e desencantada expectativa.

Citando o Valéry de "Mémoires d'un poème" (Variét‚ V), o próprio Bandeira nos confia sua convicção de ser um poeta menor, para o qual estaria sempre fechado "o mundo das grandes abstrações generosas" e que não percebia em si “aquela espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morais se transmudam em emoções estéticas: o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias”, porque, segundo confessara antes,

meu esforço consciente só resultava em insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente, numa espécie de transe ou alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústias. Longe de me sentir humilhado, rejubilava, como se de repente me tivessem posto em estado de graça. (...) A partir de Libertinagem‚ que me resignei à condição de poeta quando Deus‚ servido.

Referências

ARRIGUCCI JR., Davi. O humilde cotidiano de Manuel Bandeira. In: ARRIGUCCI JR., Davi. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte – a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

BANDEIRA, Manuel. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1976.

BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. 3ª ed. Rio de Janeiro, Editora do Autor, s.d.

BANDEIRA, Manuel. In: CÂNDIDO, Antonio & CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, v. 3.

Publicado em 20 de abril de 2010.

Publicado em 20 de abril de 2010

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