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Em cima do cangote de Deus

Pablo Capistrano

Um homem atravessava o deserto. Sempre que olhava para trás, percebia que, junto às suas pegadas, aparecia sempre outro par, como se uma presença invisível o acompanhasse. O homem se sentia confortado sempre que via as misteriosas pegadas. Seu medo dos estranhos perigos do deserto, das ameaças do mundo, dos riscos da vida dissolvia-se, porque ele sabia, em seu íntimo, que Deus caminhava com ele. Um belo dia, enquanto atravessava o deserto mais uma vez, o homem caiu em desgraça. Olhou para trás e ficou profundamente abalado ao perceber que só havia, atrás dele, as suas próprias pegadas. Em pânico, cortado pelo estranho desespero e pelo sentimento desconcertante de orfandade, gritou para o céu: “Senhor! Como Você pôde me abandonar em um momento tão difícil!?!”. Repentinamente, uma voz respondeu: “Eu não te abandonei seu idiota, eu estou te carregando!”.

Essa é uma historinha de que eu gosto particularmente porque me ensina algo bem significativo acerca da estranha relação que Deus mantém com o homem, especialmente no universo da religião judaica. Toda a história do judaísmo parece ser a história de uma crise conjugal entre Deus e os judeus. O pacto firmado com Noé e depois selado com Abraão precisa ser o tempo todo confirmado e reafirmado. De um lado, Deus parece se magoar com o povo judeu porque ele frequentemente se esquece de cumprir o pacto. Por outro lado, vez ou outra os judeus se sentem abandonados por Deus e caem em um desespero muito parecido com o do pobre homem da nossa história.

Se a gente comparar as narrativas do Antigo Testamento cristão (mais especificamente o Pentateuco, que corresponde, guardadas as devidas variações de tradução, ao Sepher Torah – o livro sagrado da Lei Judaica) com a Ilíada e a Odisseia, do poeta grego Homero, percebe de cara que há uma diferença fundamental entre os deuses pagãos e o Senhor Deus de Israel.

Entre os antigos gregos, os deuses andam normalmente entre os homens e convivem em uma montanha mágica, em uma espécie de “clube privado para seres imortais”, realizando um tipo muito particular de reality show teológico. Lá os deuses gregos vivem suas aventuras, seus dramas, suas escapulidas sexuais, seus conflitos bélicos, suas festas, suas crises de ciúme e seus jogos políticos. Esses deuses vivem em uma espécie de politeia (palavrinha grega que significa regime político e que vem da palavra polis, que designava a Cidade-Estado).

No mundo de Homero, os deuses se metiam na vida dos homens não para impor algum tipo de princípio moral de conduta, não para corrigi-los, mas sim para manipular suas emoções e fazer com que os homens servissem aos desejos dos deuses. Isso acontece por um motivo simples: os gregos, assim como os hindus, são politeístas, e suas divindades são tão humanas quanto aqueles que as cultuam.

O Deus de Israel, ao contrário de seus colegas gregos, é um deus solitário. No universo conceitual judaico, todos os deuses dos povos pagãos são ídolos de pedra e barro, nada mais do que imagens e formas virtuais de aspectos particulares dos próprios homens. Amor, dor, prazer, ira, inteligência, vida, morte, saúde e doença, aspectos da vida dos homens, podem ser representados em imagens que materializam aquilo que os homens guardam em seus corações e que povoa seu imaginário.

No judaísmo, Deus está sozinho. Seu poder absoluto e incontestável lhe dá um status que não permite o estabelecimento de relação com outros que podem ser iguais a Ele. Talvez seja por isso que, naquela sexta-feira da criação, justo no fim da tarde (quando todo lar judeu acende suas velas de Shabat), próximo do grande happy hour cósmico do sábado, o Deus de Israel tenha padecido daquele angustiante vazio, daquele imenso silêncio de um mundo perfeito, de uma realidade absolutamente ordenada e coerente, de um imenso paraíso sem voz nem fala. Diante do silêncio do mundo, só a própria voz daquele Deus solitário parecia ecoar. O homem no judaísmo nasce para, de certo modo, diminuir a solidão divina.

O sentimento de encontrar-se solitário não tem implicações apenas sociais. As vezes a solidão nos acomete quando estamos em meio a uma multidão, como quando nos pegamos em um país estrangeiro, cercados por inúmeras pessoas que não falam nossa língua. Estar solitário é bem diferente de estar sozinho.

O Deus de Israel, no mundo judaico, não está sozinho porque o mundo está cheio de coisas e as coisas parecem ser a totalidade do mundo. Sua solidão é muito parecida com a solidão autoimposta do próprio povo judeu. O isolamento do Deus de Israel que nega a realidade dos deuses pagãos parece com a do povo judeu que nega a sua semelhança com outras culturas e outras religiões, mantendo sua diferença a partir de seus casamentos endogâmicos e de suas regras de conduta.

Um acordo une esses dois personagens solitários da narrativa bíblica. Um casamento místico que levaria a humanidade a um estado de harmonia cósmica. O problema é que a história dessa relação está cheia de desencontros, abandonos, traições e ciúme. A trama dessa novela (uma das peças mais fascinantes da literatura universal) é justamente essa: enquanto a gente procura Deus ao nosso lado, Ele está nos carregando no cangote. Enquanto desconfiamos que Ele não está lá e padecemos em nosso desamparo e nossa orfandade, Ele sofre com sua própria solidão divina, incapaz, em sua paradoxal onipotência, de fazer com que sua mais preciosa criação o compreenda.

Publicado em 27 de abril de 2010.

Publicado em 27 de abril de 2010

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