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Ler uma canção, escutar um poema

Alexandre Amorim

O dicionário Houaiss define o termo “poesia” como uma composição em versos, geralmente com associações harmoniosas de palavras, ritmos e imagens. A definição se aproxima muito do que chamamos de canção, uma vez que harmonia rítmica e de palavras nos remete à poesia musicada. A relação entre poesia e música sempre foi íntima, quase complementar. Na Grécia antiga, a composição poética feita para ser cantada, seja por uma voz ou por coro, era chamada de lírica, porque era geralmente acompanhada por uma lira. O termo “lírico” acabou por se tornar um sinônimo da expressão de sentimentos ou pensamentos íntimos, ao contrário da narrativa, que expressa uma história. É claro que essas definições se misturam, uma vez que uma narrativa pode ser lírica (como a história de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, ou a poesia narrativa de Morte e vida severina). O lirismo, se associado ao sentimento poético, pode ser encontrado em canções, poemas, na prosa ou mesmo em textos teatrais. Baudelaire, Guimarães Rosa, Raduan Nassar e vários outros autores escreveram textos em formato de prosa, sem métrica, rima ou mesmo ritmo, mas utilizando a função poética da língua para trazer lirismo (isto é, poesia) a esses textos. Assim, expressar o eu lírico do personagem é uma forma de trazer poesia à narrativa, o que não necessariamente faz dessa narrativa escrita um poema.

Da mesma forma, muitos compositores conseguem impor lirismo às letras de suas canções. Diferentemente, porém, da prosa, o modo como a canção é aceita hoje obriga a haver também ritmo e métrica para que a letra caiba em sua melodia. Até mesmo a respiração entre as palavras, sua tônica e a separação de suas sílabas são levadas em consideração na maioria das vezes. Por isso, é difícil concordar com a ideia de que a letra de uma canção – lírica, com métrica, ritmo e harmonia em sua composição – não possa ser aceita como um poema.

Mesmo que se argumente que muitas canções não se preocupam com métrica – se considerarmos o hip-hop como canção, por exemplo –, ainda assim haveria o contra-argumento dos versos livres de Walt Whitman, Fernando Pessoa e grande parte dos modernistas brasileiros. Não é poema o que faz Fernando Pessoa sob o heterônimo de Álvaro de Campos? Não é um grande poema a Canção de mim mesmo (Song of myself), de Whitman? E não se encontra ali métrica ou rima. Ritmo, por vezes. Lirismo, o tempo inteiro.

Há também o argumento de que a função poética da língua funciona bem em letras de canções, mas não as transforma em poemas. Nesse argumento está subentendido que a letra da canção ainda deve ser transformada em poesia. Além disso, também pode-se ler nas suas entrelinhas que a letra só funciona porque está contida em uma canção. A discussão se torna pouco frutífera se levarmos em consideração o fato de raramente podermos conhecer uma letra de canção antes de conhecer a canção em si. Letra e música quase sempre chegam juntas à nossa crítica estética. Mesmo que se pegue um encarte de disco e se leia uma letra antes de ouvir a canção, existe já a suposição de um complemento, que é a música. Portanto, não é possível fingir que não existe companhia para uma letra de música. Mas é possível – e necessário – que se veja a poesia inserida naquela letra e o poema que aquela letra pode ser. Existem, inclusive, aqueles que conseguem ver canções em poemas que ainda não foram musicados, como o maestro Tom Jobim, que compôs canções com sonetos de Vinícius de Moraes e poemas de Fernando Pessoa.

O termo poiêsis é um substantivo grego derivado do verbo poieô, que significa produzir. Poesia, portanto, vem de produzir, e poema é o resultado dessa produção. Como a língua é viva e mutante, o termo poesia passou a ter o significado já descrito no início deste artigo. Mas parece haver uma tentativa, por parte de certa casta intelectual, de determinar literariamente o que é um poema, mesmo que não haja regras claras para essa determinação.
O poema não pode ser musicado? Se na Grécia já existiam poemas musicados, os trovadores medievais mantiveram essa tradição e os compositores atuais seguem essa tendência sem prejudicar de nenhuma forma a noção de poesia ou de poema. Se o poema deve ter rima, como classificar Basílio da Gama ou Murilo Mendes? Se deve ter métrica, como ler Manuel Bandeira e Drummond? E se o poema deve ter forma, estrofe, combinações AA-BB ou coisa que o valha, é melhor jogar no lixo todos os livros de poemas concretos e apagar os irmãos Campos da história literária do Brasil.

No documentário Palavra (en)cantada (2009), de Helena Solberg, o compositor e escritor Chico Buarque de Hollanda afirma que não faz questão de ser chamado de poeta nem sabe dizer se suas letras são ou não poemas. Ao declamar algumas de suas letras, acaba por cantá-las e, durante a leitura da letra de Uma palavra, o próprio Chico diz que a repetição de “palavra” ao final das estrofes acontece justamente por uma questão musical, para que coubesse na melodia. Estaria aí a diferença entre letras de canções e poemas? Seria a obrigação do encaixe na melodia a maior responsável por essa discussão?

Por mero exercício de exemplificação, vamos levar em consideração essa tentativa de teorizar uma possível diferença entre letra de canção e poema. A letra ficaria assim:

“Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra

Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra.”

E o poema, dessa forma:

“Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento

Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento.”

A diferença entre letra de canções e poemas é cortar palavras, então.

O exemplo acaba se provando um exercício de ironia, uma vez que se prova ridícula a tentativa de diferenciar as duas formas de poesia. Se em certo momento o poema cabe em uma música e vira letra de canção, ele não perde sua classificação de poema. As duas formas podem ser literárias, carregadas de lirismo e de intenção poética. A literariedade (isto é, a produção de um texto que pode ser reconhecido como de literatura), apesar de ser também um conceito escorregadio e amplo demais, pode ser encontrada em discos de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, José Miguel Wisnik, Cartola e outros que não estão ao alcance das mãos deste que escreve. Ao demonstrar desprezo pela classificação ou não de poeta, Chico se faz produtor, apenas. Se essa produção pode ser chamada de poema, não lhe importa. Cabe a nós, críticos, resolver a questão.

Vinícius de Moraes, que teve musicados sonetos anteriormente apenas publicados em livros e letras escritas especificamente para virar canções, já chamou o debate de “besteira”. Dizia que João Cabral de Melo Neto e ele sabiam que não existia diferença. A julgar pelo desprezo que Cabral dizia ter pela música, é bom saber que um poeta de renome se posicione contra uma tentativa de elitizar a poesia, mesmo sabendo que Vinícius pode muito bem ter usado o nome de seu colega sem tê-lo consultado. É conhecida a tensa espera pela reação do autor de Morte e vida severina quando saberia, em 1966, que um jovem compositor havia musicado seu poema dramático.

Quase dez anos depois, em 1975, o mesmo Chico Buarque adotou e adaptou a “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, para, em uma passagem da peça Gota d’água, retratar a contradição entre a dor da protagonista e a alegria de seus vizinhos, que celebram uma falsa trégua. O poema de Drummond começa se assemelhando a uma cantiga, não bastasse seu título já remeter a danças folclóricas, mas termina de modo brusco e com ritmo quebrado, dando ênfase à desilusão sobre qualquer possibilidade de relacionamentos amorosos:

“João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.”

A canção de Chico começa com uma descrição crítica de uma comunidade que sofre pressões sociais e ao mesmo tempo abriga personagens que vivem questões existenciais (a peça é uma adaptação da Medeia de Eurípedes). No final, a adaptação do poema de Drummond se torna um círculo vicioso que reflete o convívio tenso entre os moradores da Vila Maria.

“Carlos amava Dora
Que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava
Carlos que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita
Que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha.”

A estrofe passa pela imitação, se rende ao poeta mineiro e termina como homenagem. Ao mesmo tempo, suscita novamente a questão: é uma obra em verso, tem ritmo e até mesmo métrica. Mas será um poema? Alguns podem reclamar que não há lirismo, outros podem interpretar a estrofe como sátira. Ao que se poderia responder que o lirismo é evidente na angústia de cada um que não resolve seu amor, e que poemas satíricos são comuns há séculos.

Existe uma deficiência no método de classificar o que é um poema porque textos escritos em versos se diversificaram de tal modo que não é mais possível estabelecer definições sem cair em subjetividades e achismos. Algumas vezes, esses achismos se tornam uma regra entre um grupo literário, e esse grupo passa a tentar impor essa regra à sociedade. Felizmente, essas tentativas acabam passando e nós podemos voltar a ler uma letra de música ou ouvir um poema sendo declamado ritmadamente sem nos preocuparmos com categorizações estéreis. Só nos ocupando do que é mais importante: a poesia.

Leia também:
Exemplos de como música e poesia se influenciam.
Falar de música. Falar de poesia.

Publicado em 27 de abril de 2010.

Publicado em 27 de abril de 2010

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