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A interpretação de Umberto Eco

Alexandre Amorim

Umberto Eco se preocupa com o exagero da interpretação que ocorre na leitura. Seria apenas mais uma preocupação filosófica neste vasto mundo de questionamentos se a interpretação de textos não fosse um dos pontos mais polêmicos entre leitores e acadêmicos, entre alunos e professores. Quando o pensador italiano, ao estudar a dialética entre o direito do texto e o direito do intérprete, diz considerar este último exagerado, pode querer dizer que existe um limite para a interpretação. E, se existe, qual será?

Hermenêutica é um termo grego proveniente do deus Hermes, que intermediava deuses e homens. Era também o pai das artes e um deus “sonso e ladrão”, como diz a letra de Choro Bandido, de Chico Buarque e Edu Lobo: além de mestre da lira e da flauta, Hemes ainda bebê roubou o gado do irmão, Apolo, e se negou a confessar o roubo perante o julgamento de seu próprio pai, Zeus, o deus soberano. Umberto Eco o chama de “volátil e ambíguo”, porque a ética grega se baseava em uma negação do princípio da identidade: não havia razão para que Hermes fosse coerente ou mesmo honesto em suas decisões. Portanto, a hermenêutica nasce de um personagem inconfiável, ainda que Zeus o tenha escolhido como mensageiro e condutor das almas ao Hades. A habilidade e as artimanhas de Hermes mostravam, além de seu caráter, sua capacidade criadora e intelectual. A hermenêutica estava ligada à criação. A interpretação, ligada à arte.

Não havia, como aconteceu mais tarde em Roma, um contrato social baseado na necessidade de uma moderação racional. Se a filosofia grega já propunha uma categorização, com Aristóteles, Roma trouxe definitivamente a imposição de normas à interpretação. A necessidade de manutenção da ordem política em um império recentemente reunido se traduzia na necessidade da criação de regras e ética em todas as áreas, inclusive a artística. O próprio Hermes se transformava em Hermes Trismegisto, uma espécie de fusão entre o deus grego e o deus egípcio Thoth, ligado à organização e à lógica do universo. O deus sonso e ambíguo se transformava em um deus hermético e racional, isto é, coerente e dono da verdade. A interpretação se tornaria, a partir daí, aceitável apenas se fosse uma visão única e muitas vezes fechada em seu significado, uma vez que é indefinida: na natureza mística do novo hermetismo, a interpretação (a faculdade de pensar criticamente) tem um fundo divino, e o novo Deus, que é uno, se permite ser inexplicável. A chave da interpretação está nas mãos de poucos. A hermenêutica passa a ser hermética. O termo hermetismo não tem sua raiz em outro conceito que não o Hermes Trismegisto da interpretação esotérica, uma vez que, nesse novo personagem, a faculdade de criar ideias se deve a uma intuição mística. Não havia mais espaço para uma opinião ou percepção interpretativa, porque se impôs uma interpretação única, que será considerada a verdadeira.

Umberto Eco critica o uso esotérico da interpretação, fazendo ver que um texto não pode ser aprisionado por uma única verdade, e demonstra que a vontade de uma interpretação única é, afinal, a vontade de manutenção de um segredo, ou seja, de manutenção de poder.

Essa crítica, porém, não desfaz a impressão do pensador italiano de que a interpretação não pode ser meramente uma impressão subjetiva do texto. Cabe a nós sermos “servos respeitosos” da semiótica. Se nós, leitores, podemos achar no texto um significado, cabe a nós ter claro que esse significado é uma referência nossa, que nem sempre vai respeitar o texto original. A discussão em torno da possível traição de Capitu, em Dom Casmurro, é um exemplo disso. A discussão cabe perfeitamente no texto de Machado de Assis, mas definir se houve ou não traição será sempre um mero exercício de inserir novos significados a esse texto, e significados carregados da subjetividade do leitor. Eco conta a aproximação dos maçônicos e rosa-cruzes com o texto de Dante aplicando toda sua crença na simbologia poética do autor florentino a partir de uma menção ao véu que cobriria o significado real de seus versos. Toda uma leitura aplicada à ideologia maçônica foi construída sobre metáforas e signos de Dante, e Eco tenta provar que nem mesmo a maçonaria (e, por conseguinte, seus símbolos) existia como tal na época do poeta.

Umberto Eco advoga que existe a intentio lectoris e a intentio operis, isto é a intenção do leitor e a do texto. Enquanto a intenção do leitor pode ser reconhecida, a intenção do texto parece para sempre perdida, mas deve ser conjecturada por esse leitor, pelo menos através de coerência: “qualquer interpretação feita de uma certa parte de um texto poderá ser aceita se for confirmada por outra parte do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se a contradisser”. É um princípio lógico, racional e pode deixar escapar interpretações afetivas e subjetivas, mas Eco defende a visão de que existe, sim, um limite para a interpretação.

Segundo o autor e filósofo, pode-se usar um texto para uma paródia, por exemplo, ou para se inspirar a escrever novos textos. Mas são modos de leitura que se afastam do que Eco chama de interpretação. Interpretar, segundo ele, é especular sobre a intenção do texto, utilizando o reconhecimento da estratégia textual, seguindo uma coerência e uma linha hermenêutica.

O livro Interpretação e superinterpretação é uma coletânea de ensaios em que Eco professa sua visão da hermenêutica e permite que colegas acadêmicos respondam a ele com novos ensaios, mas também se permite fechar o livro com uma réplica. Insiste na ideia de que toda interpretação é uma nova escrita da obra interpretada e que essa nova escrita pode ser mais ou menos próxima da intenção da obra original.

Os intérpretes têm a mesma vontade, mas não os mesmos objetivos. Querem compreender e interpretar; alguns o fazem por hedonismo, outros por recompensa financeira, um punhado deles o faz para publicar um novo livro ou para defender essa interpretação perante um júri de semelhantes. Não só por isso, pronunciam suas percepções, críticas e imagens, o que pode determinar novas interpretações a quem lhes cruzar o caminho. São diálogos em que nem sempre há sinal de síntese e, no entanto, o mundo se move, continua. Os intérpretes falam e ouvem antes, durante e após sua própria leitura do texto. A alteridade está durante todo o tempo, e não é por isso que a leitura vai se tornar menos prazerosa ou menos necessária. Ter sua própria leitura é o primeiro passo para apreender a obra, que continua sedutora. Ter a própria leitura é aceitar a sedução de Machado, Euclides, Lobato, Guimarães e tantos outros nomes que aguardam o leitor e suas interpretações, ao oferecer suas obras. Cabe ao leitor, segundo Eco, fazer valer essa oferta.

Publicado em 04 de maio de 2010.

Publicado em 04 de maio de 2010

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