Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Meu aluno Everaldo

Alexandre Alves

Assim que cheguei à escola, recebi a notícia: iríamos perder a sala da biblioteca, no térreo do prédio, porque seria transformada em sala de aula para atender a um aluno deficiente físico do turno da tarde. Nada mais justo do que fazer essa mudança, mas nossas estantes foram para o fundo da sala do laboratório de ciências – que, aliás, nunca havia sido usado. A bem da verdade, de laboratório só tinha as bancadas e as instalações de água e gás. Nem torneiras tinha.

No pátio, conheci Everaldo. Também deficiente físico – teve um encurtamento no braço direito, causado por uma cirurgia malfeita para corrigir a quebra do osso. O braço com problema só servia para apoiar o papel no qual ele escrevia.

Ele estava sentado no banco de cimento, no fundo do pátio. Sozinho. Já estávamos em abril, mas para nós é normal alunos começarem a estudar nessa época do ano, depois de trocar de escola em função de alguma tentativa malsucedida em outra. Quando o inspetor disse que ele seria meu aluno, aproveitei para trocar algumas palavras com Everaldo antes de entrar em sala, até para não causar algum constrangimento ao falar de seu problema.

Além disso, ele era mais velho do que eu imaginava. Já estava perto dos 25 anos, porém com jeito de no máximo 17. Pareceu atento, interessado, porém notei certo esforço em organizar as ideias para explicar por que ficou tanto tempo sem estudar.

Contou que morava em Campos, no norte do Estado do Rio, mas sempre sonhou vir para o Rio; não sabia como ia se sustentar aqui, mas que daria um jeito – e estava conseguindo. Achei que esse seu otimismo poderia ser muito bom pra ele, em função de algum tipo de preconceito que eu imaginava que viesse a sofrer.

Enganei-me: não houve qualquer tipo de distanciamento em relação a alunos, funcionários ou professores – ou se houve foi por muito pouco tempo. Mais que isso: já no fim do mês foi eleito representante da turma junto à direção da escola, com direito a participar da primeira parte dos conselhos de classe.

Tudo bem que não tem lá muito a ver com esse tipo de evento, mas ele preparou uma roda de capoeira para a festa junina e ficou em terceiro lugar na dança das cadeiras, além de participar ativamente da organização, com venda de rifas, compra de bebidas etc. e tal.

Às vezes faltava uma semana inteira. Quando voltava, avisava: esteve internado, pneumonia, bronquite, porque não se cuidou, quase sempre em Campos, onde foi visitar sua mãe.

Em sala de aula, questionava muito os professores, pedia novas explicações, mas era perceptível seu sofrimento para entender certas coisas básicas. Anotava muito em seu caderno, em garranchos pouco compreensíveis. Fora de sala, volta e meia reclamava comigo de algum professor, que não lhe dava a atenção que precisava – ou que achava que merecia.

Suas notas eram sempre sofríveis – a não ser quando havia questões de múltipla escolha. Nos trabalhos em grupo, pouco escrevia e muito falava. Quando encontrava quem anotasse suas ideias e opiniões, sua equipe se destacava. Nas apresentações orais, enquanto os outros alunos liam as anotações e cartazes, era sempre quem comentava os temas tratados.

Passava de ano raspando, muitas vezes por decisão do conselho de classe, que (ainda bem) levava em consideração outras características– especialmente sua capacidade de expressão oral e seu poder de liderança.

Uma vez ele ficou em recuperação comigo, no final do ano. Resolvi dar, como texto de interpretação, a letra da música Sinal Fechado, de Paulinho da Viola. Deixei-o sozinho; ele não conseguiu responder a uma questão sequer. No fim, só estava ele em sala – os outros poucos alunos já haviam acabado a prova. Perguntei a ele o que houve. Ele disse que não tinha entendido nada (essa justificativa eles dão sempre), que a poesia era muito difícil. Comecei a ler com ele, indiquei a situação em que se passava. Ele disse: “podemos fazer igual?”. “Vamos lá. Eu começo. Olá, como vai?” “Eu vou indo, e você, tudo bem?” Eu percebia sua dificuldade em ler, os vacilos ao esbarrar em algumas palavras ou expressões como “qual o quê” ou “eu também só ando a cem”. Nas respostas, escreveu errado muitas palavras – e eu aproveitei pra mostrar, no texto, como se escrevia. Mas, como eu esperava, a interpretação foi quase impecável. Ele mesmo deu a explicação: “lendo assim é mais fácil de entender”. Ao que eu retruquei: “o problema é que nem sempre tem alguém pra sentar do lado pra ler com você, não é?”

Ainda que fosse flamenguista doente, a ponto de ir, em dias de verão, com a camisa do time (que ele chamava de manto sagrado) por baixo da camiseta da escola, vinha me dar parabéns quando meu time fazia algo de destaque – uma vitória no campo do adversário, por exemplo. E vinha cobrar meus cumprimentos quando era o Flamengo que fazia algo notório.

Um dia veio me mostrar seu crachá de auxiliar de vendas em uma loja de materiais de construção. Estava feliz, radiante, empolgado com a nova oportunidade. “Mas é em Cordovil, demora um bocado pra chegar aqui na hora da aula”. Mais tarde, foi ser assistente de técnico de vôlei numa escolinha para alunos da rede pública, que tinha treinos num terreno do Metrô. Realmente seu prazer estava no esporte, mais do que em qualquer outra coisa, e a despeito de sua deficiência.

Ainda quando eu era seu professor, comunicou-me que tinha se matriculado num curso de redação e literatura, e pediu minha opinião. Claro que o incentivei. Toda semana vinha me falar de um escritor novo (para ele), de uma poesia que a professora leu e eles discutiram em sala. Além de melhorar ainda mais seu poder de argumentação, foi nítida a melhora na sua capacidade de escrever: menos erros, frases mais inteligíveis...

Em 2009 concluiu o Ensino Médio. Tinha planos de voltar para Campos e estudar Educação Física lá. “Já que eu não estou mesmo trabalhando aqui, vou tentar alguma coisa lá...” Era certamente um dos mais radiantes na festa de formatura. Saiu em quase todas as fotos, cumprimentava e abraçava os professores.

Este ano ainda não havia aparecido na escola.

Na volta da Semana Santa, ao entrar na escola percebi um certo clima pesado no pátio. Gut e Ana Paula vieram me dar a notícia: Everaldo estava em Campos quando teve um problema cardíaco agudo. Não resistiu.

Estou certo de que ter sido professor do Everaldo me ajudou a ser um professor melhor.

Publicado em 11 de maio de 2010

Publicado em 11 de maio de 2010

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.