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O divórcio das siamesas

Alcione Araújo

Se o cérebro está numa das siamesas e o coração na outra, o corpo compartilhado só se manterá saudável se elas permanecerem unidas – assim sobrevivem as siamesas: salvas pelo fraterno abraço de náufragos. Se uma desfalecer, a outra carregará o vazio da perda, sentindo as comichões que sentem os amputados no vazio do membro extirpado. Separá-las deixará uma exangue e a outra asfixiada; e o corpo único em agonia. O projeto humano original foi dimensionado para viver e agir no mundo com dois braços, duas pernas, dois olhos, duas narinas e sete sentidos – o que não significa que eventuais lacunas inviabilizem o protótipo –, mas apreendemos o mundo com um único cérebro e o sentimos com um só coração. A percepção do mundo – objetiva e subjetiva – é resultado da ação simultânea – subjetiva e objetiva – da educação e da cultura.

Reunidas como irmãs siamesas, a educação e a cultura se completam. Uma – racional e objetiva – entende a ordem oculta da natureza, a lógica da ciência, do metabolismo humano, dos meios de produção e do poder. Outra – sensível e subjetiva – acumula vivências do que não viveu com as prefigurações das artes – do cinema, do teatro e do romance –, sente a solidão silenciosa num olhar pintado na tela, devaneia induzida pela música ou por um poema e transcende a si própria na leitura de um livro. Viver a plenitude humana no atual estágio da civilização requer vivenciar a educação e a cultura. Siamesas, precisam ter peso e volume compatíveis – a grotesca assimetria de Davi atado a Golias romperia o elo e o elã vitais.

Recomendável é que o crescimento de uma seja pari passu o crescimento da outra: cérebro e coração, razão e emoção, corpo e espírito, objetivo e subjetivo, educação e cultura – além de inseparáveis, avançam ombro a ombro e de mãos dadas, como dualidades constitutivas de cada ser único e singular. Nesse sentido, somos metaforicamente siameses. Circulam em nós, digeridos e metabolizados em indiscernível química, os sumos – summus e sucus – da educação e da cultura, síntese que nos permite sentir e pensar o ser humano, a sociedade e o mundo.

Porém, são várias as formas de pensar e sentir o ser humano. No confronto entre duas delas, duas bombas atômicas explodiram em duas cidades japonesas, espalhando radiação e estilhaços que, no Brasil, romperam a união das duas siamesas – num divórcio sigiloso que, no entanto, vem repercutindo e disseminando consequências em silêncio. Explico.

De origem europeia – portuguesa e, depois, francesa –, a orientação da educação brasileira cruzou o Atlântico para abraçar o modelo norte-americano, cuja ênfase tecnológica garantira a vitória aliada. A redução dos currículos ao fio d’água da especialização eliminou as disciplinas chamadas de Humanidades, voltadas ao sentir – artes e cultura – e ao pensar – filosofia, antropologia, sociologia –, logo consideradas supérfluas.

O modelo recuou aos níveis médio e fundamental, renunciando ao tripé universal: formação do profissional, do cidadão e do ser humano. Hoje, a educação brasileira, apartada da cultura como uma siamesa da outra, tornou-se mera trajetória de adestramento para a produção, de onde vêm os engenheiros que nunca foram ao teatro, médicos que jamais leram um romance, economistas que não se comovem com a música, políticos que desdenham a educação e tratam a cultura como cosmético. Uma siamesa está exangue.

A educação não pode prescindir da cultura, que é dependente da educação. À falta do público induzida pela educação, a produção artística sai em busca de um mercado que não a reconhece: se autodesqualifica, inibe o impulso criador do artista e perde sua plateia cativa remanescente.

Sem espectadores, leitores e ouvintes, artista e arte perdem sua função, o público empobrece e estreita o horizonte da sociedade. A perda da autonomia econômica torna a cultura dependente do Estado, suscetível à discriminação política, seduzida pela acomodação estética.

A história reconhece na aliança entre educação e cultura a primazia de criar sonhos e inventar meios para realizá-los. O valor simbólico da cultura fecunda o processo civilizatório – dos valores às leis, da política à vida. Como ocorre com as siamesas, divorciar a educação da cultura deixará uma exangue, a outra asfixiada e o corpo que as acolhe em agonia.

Publicado em 11/05/2010

Publicado em 11 de maio de 2010

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