Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Os vestígios do Rio colonial

Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva

Desde sua fundação, o Rio de Janeiro despontou como centro de convergência e irradiação das estruturas econômicas, política, social e cultural para o resto da colônia. Em 1763, passou a ser cidade-sede do vice-reino. Sua posição estratégica em relação a Salvador (BA) e a São Vicente (SP) foi também importante para que o Rio se tornasse capital.

A formação do Rio

Também foram fatores significativos para isso: a vinda da Família Real para o Brasil, em 1808, instalando no Rio a sua administração; a elevação do Brasil à condição de Reino Unido em 1815, centralizando na cidade a administração do “mundo” português; o processo de Independência do Brasil que logrou manter a unidade nacional e o governo central no Rio. Além disso, a criação do Município Neutro (também em 1815) marcou a separação política da cidade da Província Fluminense, situação que avançou pela República e só findou com a transferência da capital para Brasília, no Planalto Central, em 1960. Somente em 1975, com a fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio, foi formalmente reconstituído o recorte territorial preexistente à constituição do Município Neutro.

O Rio de Janeiro só se tornou o entreposto de escoamento da prata vinda do Patosí e do ouro das Gerais porque tinha a Baía da Guanabara, que oferecia local seguro para o fundeio dos navios a vela, condição indispensável aos navegadores da época. A cidade, protegida por sistema de fortes estrategicamente instalados na entrada, inviabilizava ações de corsários e invasões; somava-se a isso a facilidade de acesso ao sertão em direção ao Rio da Prata e às Gerais. Por essas condições é que o Rio despontou como local seguro para transitar a riqueza dos minérios, o lucrativo tráfico de escravos e a importação de produtos, tornando seu porto a principal porta de acesso à África, às Índias e à Europa. O porto, onde se processavam o tráfico de escravos e grandes transações mercantis, era o ponto inicial das transformações da cidade. A partir dele, riqueza e diversas culturas se espalham, modificando o espaço geográfico nas proximidades da baía e em direção ao interior.

No período colonial, foi de grande importância a atuação dos ourives, comerciantes influentes nas questões de economia e política; a pequena e crescente burguesia e os donos das grandes propriedades (a família Sá) representavam os interesses da Coroa, além, é claro, da influência e da riqueza da Igreja. O Rio passou por sérios problemas em consequência da escassez de água; isso influenciou decisivamente na distribuição socioespacial da população: os ricos recorriam às fontes de águas instalando-se em chácaras nos altos; os pobres se empilhavam no centro, em volta dos chafarizes, sob condições terríveis de higiene.

A posição estratégica em relação às demais cidades da colônia oferecia a combinação perfeita: porto seguro (a baía), o acesso ao Rio da Prata e as minas de ouro das Gerais; isso mudou o caminho das riquezas da colônia, centralizando no Rio o comércio português. Esse fluxo de capital atraiu as atenções de Portugal e do mundo. A Corte Portuguesa enviou seus legítimos representantes para coibir o contrabando e controlar o fluxo de ouro e o comércio exterior, cuja centralização no Rio facilitava o gerenciamento português sobre as riquezas da colônia; foi montada infraestrutura eficiente para fazer a fiscalização.

A cidade foi beneficiada com diversas construções, como prédios para a administração, um sistema viário/portuário eficiente, bom sistema de abastecimento de água e logradouros públicos. A presença da Corte Portuguesa no Brasil foi decisiva. Com ela veio um contingente que modificou o conceito da cidade, de vila colonial para cidade “cosmopolita”; foram criados vários órgãos como o Banco do Brasil, força policial etc. A renda per capita deu um salto, e as atividades econômicas e sociais se diversificaram. Houve melhorias na infraestrutura, como iluminação pública, e mudanças na área da educação: abriam-se escolas, instituições de nível superior e bibliotecas. A atividade cultural transformou-se com a abertura de teatros para atender ao gosto refinado da corte. No popular, valorizou-se a música em que se destaca o lundu e a modinha, frutos da miscigenação do processo de formação do povo brasileiro, marca indelével na formação cultural.

Na Independência, em 1822, o Rio foi mantido como cidade-sede do Império, centro das decisões políticas, econômicas e militares. Recebeu número crescente de imigrantes europeus, franceses e ingleses que influenciaram o dia a dia do carioca. No Rio foi proclamada a República (1889), mantendo-se na cidade as decisões políticas até 1960, quando a capital foi transferida para o Planalto Central.

O Rio assumiu a incontestável posição de cidade capital, reconhecida nacional e internacionalmente como a “porta” de entrada do Brasil, por sua história rica em fatos que moldaram o perfil do povo brasileiro, por sua politização, seus costumes e tradições, sua crença; tornou-se centro de difusão da cultura nacional. A sua vocação de capital está no somatório das mudanças ocorridas; o eixo do poder se direciona para a cidade, trazendo consigo estrutura e infraestrutura. Depois, seguiu-se um processo migratório que enriqueceu mais a cidade com sua força de trabalho e cultura.

No Rio se formou um dialeto próprio, com peculiaridades notáveis, traduzindo relacionamentos sociais e socioculturais. O conjunto dos símbolos do dialeto que surgiu imprimiu de gírias, calões e jargões regionais (Lyotard, 1988), realidades absolutamente particularizadas que a história social e sociocultural tem como instrumento de verificação. O plano sociocultural, por seu caráter de aproximar a visão científica do mais verdadeiro todo e porque afeta nosso dia a dia, é o mais importante. O segundo mais importante talvez seja o socioeconômico (Geremek, 1976, p. 34), pelas mesmas razões e pela necessidade de continuar vivendo. O exemplo disso está no clássico sinal deixado por ‘Lampeão’ e os Lampeônidas, porque fez escola, grassando pelo Brasil nordestino, do início do século XX até os nossos dias, multiplicando em exemplos mais modernos, reverberando pelo urbano e pelo interior da nação e capital.

O dicionário Aurélio entende gíria como a linguagem característica de muitos grupos de excluídos sociais que com ela procuram não ser entendidos pelas outras pessoas – principalmente as autoridades policiais, no caso dos marginais –, podendo servir como um verdadeiro código do ludíbrio.

A partir do conceito do professor Benedicto Silva (“as palavras se apresentam de forma diferenciada, separadas e identificadas com segmentos sociais distintos”), afirmamos que dialeto aparece como uma derivação do grego Dialektos (Paoli, 1974; Foracchi, s.d.), que designava, na Grécia antiga, todos os sistemas linguísticos usados para a expressão de determinado gênero literário, sem o prejuízo de sua condição de língua de comunicação usual. Contudo, na língua atual, a gíria compreende as várias formas de língua dotadas de sistemas lexical (Kowarick, 1975; Cardoso, 1972, p. 84), sintático (Hobsbawm, 1976, p. 128-136; Lyotard, 1988) e fonético (Cardoso, 1972, p. 84) diferentes em relação à língua da qual deriva. Todavia, guardam traços de seu recíproco parentesco, já que língua e dialeto pertencem à mesma família linguística. O calão nos interessa especificamente, pois permite verificar o comportamento dos excluídos sociais.

Segundo o professor Benedito Silva, o calão corresponde a uma acepção básica do dialeto, porque é dotado de variação semântica, introduzida quer pela criação neológica, quer pela conotação. O calão se constitui em um caminho para a identificação grupal. É uma forma diferente em relação aos demais, notadamente aqueles que compõem estamentos sociais dominantes. Nos vestígios do Rio Colonial, podemos ver que ele se corporificou.

Entretanto, seu uso permanece restrito àqueles grupos de excluídos sociais que são usados por elementos não pertencentes a outros grupos em momentos e circunstâncias extremamente particularizadas. As ciências sociais apresentam o calão de maneira peculiar, e sua conceituação e o diferencia da gíria. Durkheim o associa à diferenciação social, ao aumento do número de grupos e à impessoalidade e autonomia das relações sociais (Berlink, 1977, p. 11-42). Estava frequentemente presente entre a então considerada marginalidade urbana em suas praticas de comunicação e interação e guardava (ainda guarda) elementos fundamentais de identidade. Para Boaventura de Sousa Santos (2002), são identitárias da sua conformação como corpo social e sociocultural.

Não temos informações completas que permitam verificar a diferenciação intergrupal por meio dos calões usados pela marginalidade do século XIX no Rio de Janeiro. Sabemos que a língua é o elemento básico na difusão do saber, que veicula e promove a maneira como uma determinada sociedade se comporta e existe. Em se tratando de sua propagação, ela permite ver mais, pois consegue perceber a dinâmica interna de um determinado corpo. Classifica hierarquicamente e esclarece a relação de poder dentro do corpo. Possibilita extrair o perfil de sua dinâmica social e comportamental. Pela língua‚ é possível identificar até mesmo a etnicidade de um corpo (Lyotard, 1988). Observamos a marginalidade, e/ou a condição de excludência social e sociocultural (Forrester, 1996, 2001) na cidade do Rio de Janeiro, da segunda metade do século XIX para cá, a fim de abordar sua existência e seus comportamentos, mediante seus símbolos comuns, revelando, se possível, seu mundo do saber, ou pré-saberes. Nosso propósito é tentar reconstruir os móveis que compunham seus ajustes e desajustes para, com a maior precisão possível, saber sua história social e sociocultural.

A configuração hoje reconhecida e tratada como pós-escravidão caracterizou a época e o espaço frequentados por essas tipologias de pessoas, que se comunicavam com facilidade dentro do seu mundo. Suas maneiras de usar palavras pouco comuns ao convívio da sociedade oficial moram em sua inventiva diária, adquirida na complexidade de suas vidas, o que traduz e veicula uma cultura particular, eivada de um saber singular que lhes conferia poder e lhes garantia – como garante hoje – o espaço do poder necessário à sua autodefesa, individual e do grupo.

Em suma, esse saber, ou saberes, era e continua sendo formado por um conjunto de signos legíveis que serve ainda como um escudo contra os possíveis invasores. Principalmente a polícia.

Os estudos da etno-história e da arqueologia sobre a escrita e a língua, sobretudo os trabalhos de Alfredo Austin, Angel M. Garibay e Pina-Chan (Lemos, 2001), apresentaram excelentes resultados para maior compreensão dessa sociedade. A reconstituição das concepções mentais dos dois corpos se faz urgentíssima. Mikhail Bakhtin, em sua obra sobre Rebelais, revelou a visão do mundo pela cultura popular, que se contrapõe fortemente, sobretudo na Idade Média, ao dogmatismo das classes dominantes. Isso nos leva a questionar, como o citado Bakhtin, se temos a dicotomia cultural, dialeticamente posta, e o novidadeiro fenômeno de circularidade, influxo recíproco entre o que se considera cultura subalterna ou, por outro, a cultura hegemônica, particularmente intensa na primeira metade do século XVI.

No tratamento da relação do afrodescendente excluído com o cidadão de classe média de nossa cidade poderemos notar descalabros comportamentais, um relacionamento conflitivo que talvez esconda farsas comportamentais de ambos os lados. A ascensão social do negro num cenário de pós-escravidão afrodescendente, em confronto com o tradicionalismo lusodescendente colonial/imperial, em que os valores dos antigos senhores de engenho e seus descendentes, travestidos de novos senhores urbanos modernos, surpreende por ter a força repressora do Estado, a qual não se poderia conceber em outros tempos. Os embates recentes parecem contrapor as práticas policiais às dos velhos capoeiras.

Acreditamos que a cidade do Rio de Janeiro tenha vivido no final do século XIX o seu mais complexo mundo de relacionamentos sociais urbanos. Foi um momento de nossa história sociocultural que deve ser levantado sob o signo do início da fase aguda da construção do comportamento de liberdade para os escravos que viviam no espaço urbano.

REFERÊNCIAS

BERLINCK, Manoel. Marginalidade social e relações de classe em São Paulo. Petrópolis: Vozes, 1977.

CARDOSO, Fernando H. Participação e marginalidade na América Latina. In: Modelo Político Brasileiro. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.

FORACCHI, Marialice M. As condições sociais da mobilização da força de trabalho: algumas características do subemprego urbano (mimeo).

FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Unesp, 1996.

FORRESTER, Viviane. Uma estranha ditadura. São Paulo: Unesp, 2001.

GEREMEK, Bronislaw. Les marginaux parisiens aux  XIV et XV siècles. Paris: Flamarion, 1976.

HOBSBAWM, E. J, Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976.

KOWARICK, Lúcio. Capitalismo e marginalidade na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1988.

LEMOS, Teresa Toríbio Brittes. Corpo calado: imaginário em confronto. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.

PAOLI, Maria Célia. Desenvolvimento e marginalidade. São Paulo: Pioneira, 1974.

SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SILVA, Eduardo Marques da. Pós-escravidão, a educação submissa na cibercidadania. Disponível em: www.educacaopublica.rj.gov.br. Publicado em 21 de agosto de 2007.

Publicado em 18 de maio de 2010

Publicado em 18 de maio de 2010

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.