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Novas inquisições
Pablo Capistrano
Poucos fenômenos sociais marcaram tão fortemente a Península Ibérica e as suas colônias quanto a Inquisição. Não se tem números muito exatos dessa tragédia social e humana, mas sabe-se que, apenas entre 1543 e 1684, Portugal havia queimado em autos de fé (espécie de espetáculos públicos de imolação e sacrifício) 1.379 pessoas (uma média de dez por ano). Mas não era apenas a fogueira. Havia outros suplícios, torturas e humilhações que reduziam pessoas à miséria, destruíam famílias, enlouqueciam e levavam acusados ao suicídio.
Só nesse período foram 19.247 condenações da parte do tribunal do Santo Ofício. Muita gente fugiu para o Brasil nessa época, tentando encontrar aqui um espaço com alguma liberdade. Curiosamente, muitas das vítimas brasileiras da Inquisição eram membros do clero. O caso mais famoso foi o do padre Manoel Lopes de Carvalho, nascido na Bahia e queimado em Lisboa no ano de 1726, aos 45 anos.
O caráter herético do clero brasileiro foi objeto de desconfiança da Coroa portuguesa (que estava simbioticamente ligada à Igreja) durante todo o período colonial, e a tolerância sincrética que o catolicismo brasileiro ajudou a construir (hoje objeto de críticas por parte do Vaticano) foi sempre vista como uma marca de fragilidade doutrinária.
As marcas da Inquisição no corpo psicossocial dos povos que viveram sob a influência dos países ibéricos ainda não foram totalmente dimensionadas, mas o atraso cultural e social a que esses lugares foram submetidos não pode ser entendido sem uma análise sincera delas.
No Brasil, muito provavelmente a maior estudiosa do assunto é Anita Novinsky, professora da USP. Ela teve o mérito de recolher o maior acervo de documentos sobre a atuação da Inquisição no Brasil e conseguiu, com seu núcleo de estudos da intolerância, impulsionar a pesquisa sobre o assunto em um país ainda marcado por uma capa de obscuridade e silêncio em relação a esse tema.
A Editora Brasiliense lançou em 1982, na coleção Tudo é História, um livro curto (103 páginas) sobre o tema. O texto tem o mérito de abordar de forma sintética a história e os procedimentos da Inquisição, mais particularmente daquela que atuou no mundo ibérico, levando ao suicídio, ao degredo, à loucura, à mendicância e ao cárcere perpétuo gerações e gerações de cristãos-novos, mulheres acusadas de feitiçaria, homossexuais, livres-pensadores ou mesmo qualquer opositor político do regime de plantão.
Pessoas morriam porque não comiam porco, porque guardavam o sábado, porque “cometiam atos contra a honestidade da religião” ou apenas porque “desfaziam amor e casamento” ou “lançavam mau-olhado sobre crianças”.
O terror desses anos sombrios destruiu a intelectualidade ibérica, arrasou a liberdade de pensamento, criou sentimento de opressão e necessidade de camuflagem e dissimulação, que se mostra em uma passividade política quase obsessiva ou um pânico fóbico em expor a própria opinião e “desagradar alguém”.
No Brasil, onde todo mundo é católico até que se prove o contrário, a Inquisição instituiu leis de segregação racial que vedavam a qualquer pessoa que tivesse sangue judeu a participação na vida pública, a ocupação de cargos importantes na Igreja ou na administração real. Daí essa obsessão da genealogia pátria em encontrar, para nossas famílias, ancestrais da nobreza portuguesa, puros de sangue e de crença.
Neste tempo em que novas inquisições se articulam, no Irã, no Cinturão da Bíblia no meio-oeste norte-americano ou mesmo no Vaticano, voltar aos estudos da professora Anita Novinsky é um imperativo moral de memória, para que os vivos não voltem a sofrer com o flagelo dos seus mortos.
Publicado em 25 de maio de 2010
Publicado em 25 de maio de 2010
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