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Sobre a lembrança e o esquecimento: o fenômeno do historicismo no século XIX e a crítica de Nietzsche ao excesso de memória

Marlon Baptista

Para compreender a perspectiva de Nietzsche sobre o ser humano como um ser que precisa esquecer para agir de forma decisiva, trataremos do modo como considera a relação entre a lembrança figurada na historiografia e o esquecimento. O sentido positivo do esquecimento em seu pensamento aponta para uma concepção de humanidade completamente distinta do ideal das filosofias da consciência e da representação da modernidade, assim como dos objetivos historicistas, pois o esquecimento é algo que escapa à consciência, é justamente aquilo que não é consciente em meio do que a frágil consciência está lançada. O esquecimento, justamente desse modo, viabiliza o funcionamento da capacidade criativa como contraposição ao valor – também importante – da lembrança que, como presente, estabiliza o que já foi criado.

Ao exigir o equilibro entre essas duas esferas de constituição do homem, Nietzsche expande o sentido da compreensão de “humanidade”, a qual vinha sofrendo em déficits vitais por conta de, no decorrer da história ocidental, ter valorado demais um lado somente dessa duplicidade necessária. Depois desses milênios, trata-se de reaprender a esquecer. Tratemos, pois, dessa habilidade; mas, para tanto, vejamos brevemente algumas características elementares do chamado historicismo do século XIX.

O historicismo

Com a morte do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel em 1832, as ideias de sistema e Filosofia especulativa caíram em descrédito, porque, por um lado, não se pensava mais na possibilidade da construção de um sistema de pensamento que fosse capaz de abarcar a compreensão do todo da realidade; e, por outro, porque o valor da experimentação e da demonstração científicas adquiriu legitimidade por se mostrar como método seguro para o conhecimento, pois extrapolava a subjetividade das visões de mundo de filósofo A ou B. Por sua vez, a ciência histórica, no interior da já consolidada faculdade de Filologia, passou então a se desenvolver com intensidade cada vez maior, expandindo-se para as várias áreas do conhecimento. Com a progressiva introdução da História em todos os âmbitos da cultura, passou-se a negar as tradicionais perspectivas de entidades atemporais como a concepção de razão do Esclarecimento, de direitos naturais e da Teologia ortodoxa, pretendendo-se demonstrar a origem histórica de todos os âmbitos da realidade humana – e da realidade natural.

Com a crescente cientificização da cultura e a historicização da ciência, houve o intento de fazer com que a história se tornasse uma ciência, que passou a ser a única forma legítima de conhecimento. O primeiro problema encarado por essa corrente de pensamento que entendia a História como o princípio fundamental de compreensão principalmente dos fenômenos humanos, denominada historicismo, foi o desafio da conquista da objetividade, pois, ao contrário das ciências naturais, por exemplo, os fenômenos históricos nunca se repetem; assim, torna-se impossível a almejada universalização científica que possibilitasse a instauração de leis. Por sua vez, uma das primeiras formas de manifestação do historicismo foi a utilização do positivismo prático das recentes “ciências do espírito” (as Geisteswissenschaften, que cresciam em autoridade através da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia etc.), de modo que se trabalhava com o acúmulo e seleção de materiais e fatos não hierarquizados e com pretensões de objetividade, constituindo-se uma prática científica que se abstinha por completo de considerações de tipo prático, mantendo-se na tranquilidade que possibilita a não preocupação com questões morais, sociais ou políticas. Em suma, tratava-se de reunir as fontes e os materiais que facilitassem o acesso aos textos (Schnädelbach, 1991, p. 50).

Outra consequência do modo historicista de compreender o conhecimento foi a instauração de um corrosivo relativismo, que tinha como pressuposto a impossibilidade da validez científica, normativa ou estética. Desse modo, somente a constatação de fatos e conexões históricas poderia promover a garantia de objetividade, e a história assumiu a posição de exposição não valorativa dos fatos; noções de norma e valor não teriam justificação científica; por consequência, não se espera qualquer moralização do indivíduo que pratica ciência.

De forma geral, a tarefa fundamental do historicismo como um todo seria “observar, entender e explicar a totalidade dos fenômenos culturais desde sua historicidade” (ibidem). E, se a vida humana é resultado da ação do homem – descartando-se a ideia de desenvolvimento natural –, por consequência não há a inalterabilidade da razão defendida tanto pelo Iluminismo francês quanto pelo Esclarecimento alemão. O que resta à história é narrar o que aconteceu até o presente e apresentar aos nossos olhos o que a tradição tem a oferecer; isso dá margem à presença de certo conservadorismo. Desse modo, a neutra coleção de fatos, o relativismo e o conservadorismo são três características que aqui apresentamos como essenciais para se compreender o historicismo – mesmo que sem contar outras faces do decorrer dessa complexa corrente de pensamento.

Justamente devido à historicização da razão é que se tornou impossível a sustentação da reflexão filosófica sistemática como instância independente e de autoridade suprema sobre o pensamento. Porque, a partir de então, a razão também tem sua história, tem causas exteriores a ela – por muitas vezes até mesmo irracionais. Levando a cabo e radicalmente esse pensamento, ocorre a percepção de que o próprio historicismo é resultado de um decorrer histórico. Assim, o sujeito da investigação no caso passa também a ser conhecido quando se dá o conhecimento do mundo, o que desperta a consciência da finitude e da autonomia limitada frente à força superior da totalidade histórica, abrindo espaço para uma resignação prática que somente intensifica o relativismo citado e evidencia, apesar de tudo, outro momento da história do Ocidente, em que os paradigmas fundamentais da modernidade não dão mais conta de explicar a realidade, pois, pela primeira vez, tanto o homem como a razão são pensados como frutos de um processo, de uma história.

Além disso, faz-se necessário repensar os fundamentos da teoria do conhecimento que pressupunha uma diferença ontológica e a separação colocada entre o sujeito e o objeto de investigação – o que, diga-se de passagem, passaria a conferir à ciência histórica e às outras ciências do espírito sua peculiaridade, qual seja, o modo como o sujeito do conhecimento se “infiltra” em seu objeto para conhecê-lo.

É inegável a importância desse movimento na história do pensamento; refere-se à tomada de consciência da existência do homem no tempo como uma contrapartida em relação à tradição que sempre considerou de algum modo a soberania e a veracidade superior daquilo que é atemporal. Mas, dependendo de como o homem lida com essa consciência, as consequências podem ser desfavoráveis à intensificação desse “poder obscuro, propulsor, insaciável e desejante de si mesmo” (Nietzsche, 1988, p. 269) que é a vida e à pluralidade de modos de viver que façam jus a uma realização humana com metas mais elevadas.

O excesso de memória

Uma característica essencial da perspectiva histórica é a supervalorização da memória, de modo que o esquecimento se tornasse algo para ser evitado e considerado numa escala mais baixa de valor (ou seja, apesar de romper com as entidades atemporais da tradição, a historicização das visões de mundo, em seu sentido radical, reafirma, por outros meios, a importância da lembrança já realçada por meio de fundamentos metafísicos da tradição ocidental presente desde a teoria das reminiscências de Platão). Uma consequência do ponto de vista histórico é a sensação de que residimos no mais diáfano e etéreo devir. Ainda mais que, com a consciência histórica, o homem percebeu como os grandes personagens e impérios da humanidade foram consumidos de forma voraz por esse constante devir que tudo muda e destrói, de modo que, pensando historicamente, a grandeza dessas particularidades parece até menor, pois o olhar histórico não consegue estabilizar os fatos de forma a-histórica, para que esses fatos alcancem sua legítima grandeza, que só se faz possível esquecendo o caráter esmagador da totalidade do tempo. Ou seja, somente uma estabilização momentânea e não comparativa pode fazer com que o homem acabe por se sentir no direito de julgar com autoridade o passado, devido à sua tomada de consciência do caráter histórico da humanidade. E para que sua própria ação no presente não seja inviabilizada pela perda da capacidade de poder estar sendo de forma não histórica, para que então de fato se possa fazer história, através de atos que tragam novidades salutares e que lhe propiciem a intensificação e a criação de sua própria vida – atos estes, que, para poderem se efetivar, precisam do esquecimento (Vergessenheit).

Para aclarar o sentido do esquecimento, remetemos à segunda Consideração extemporâneada utilidade e desvantagem da história para a vida, em que, no primeiro capítulo, Nietzsche diz: “Para toda ação é necessário o esquecimento: assim como para a vida de todo orgânico é necessária não somente a luz, mas também a escuridão” (Nietzsche, 1988, p. 250). Com isso podemos entender que, se nos depararmos com um modo de ver a realidade em que nada se consolida – mesmo que temporariamente – numa aparência cuja fixidez ontológica nos permita apreendê-la como algo com o mínimo de estabilidade, toda a realidade se desfaz num devir implacável que a tudo consome, fazendo com que toda “coisa” ou todo “ato” perca a razão de ser por se tornar efêmero demais. Ou seja, é necessário não pensar historicamente também – entendendo-se “historicamente” como plena instabilidade e mutabilidade.

Assim, Nietzsche estabelece uma relação muito próxima entre o homem que quer sedentamente viver somente de forma histórica com um tipo de homem que não quer dormir, que é incapaz de não se pautar na memória, de não se pautar em qualquer resquício do que passou para criar o presente. É nesse sentido que o autor ressalta a tarefa de não nos tornarmos coveiros do presente (Totengräber des Gegenwärtigen) (ibidem, p. 251), pois é necessário que tenhamos força plástica para “reconfigurar e assimilar o que nos é estranho e passado, curar feridas, compensar perdas, dar novas formas ao que se quebrou” (ibidem). Quando não se sabe fazer isso, o indivíduo se torna fraco, pois, devido ao valor que dá à lembrança, não consegue dar espaço para as possibilidades componentes do devir, de modo que o que já aconteceu se mantém com força, como se de fato ainda fosse presente, inviabilizando assim o processo poético inerente à dinâmica de imprevisibilidade do próprio tempo. Daí ocorre a peculiar situação em que se pode chegar a perder a capacidade de ação por compreender-se o mundo historicamente como uma contínua passagem instável, voltando-se para o passado por pressupor que ao menos ele é algo acabado e seguro para se ater.

O estabelecimento de horizontes

Do mesmo modo que existem esses frágeis indivíduos que não conseguem dar forma que seja capaz de impelir o querer viver do presente, há aqueles que, perante as maiores desgraças em meio aos incidentes da vida, e quanto à maldade de seus próprios atos, acabam por não se prejudicar, pois mesmo durante (ou logo após) o acontecimento sua saúde psíquica é reconquistada de modo que um bem-estar (Wohlbefinden) toma conta dele, pois a força do esquecimento lhe possibilita a dedicação de sua força vital e criativa para outras vivências. Esse tipo de homem realiza uma economia vital, de modo que aquilo que ele não consegue controlar e fazer um bom uso para a sua existência é esquecido. Isso que é esquecido é como que colocado fora do horizonte a partir de então perceptível, de forma que não venha a interferir no âmbito de realizações que esse horizonte deve se limitar a abarcar. Essa perda da capacidade de se estabelecer e de se circunscrever no interior de um horizonte é o que faz o homem perder todo e qualquer ponto de referência para agir, pois os limites que sua visão alcança se mantêm numa constante oscilação, que não permite a dedicação a uma determinada tarefa ou propósito, de forma com que esse engajamento se dê com todas as forças possíveis, porque seu olhar não consegue manter-se focado nessas limitações momentâneas.

Essa avidez de querer novos horizontes, sem que haja o contentamento com o horizonte de possibilidades em que se está numa determinada conjuntura, é o espírito que Nietzsche vê no homem histórico, que, devido à ânsia de ampliar sua perspectiva, querendo saber irrestritamente, acaba por não explorar as várias dimensões possíveis residentes num mesmo ponto. Aquele que consegue se focar num mesmo ponto é o que consegue criar, pois preferiu o momentâneo não buscar saber para que sua ação nesse momento não fosse inviabilizada, pois a tarefa de saber como foram os tempos, os povos e culturas passadas pode significar séria displicência quanto à criação de um novo tempo, de uma nova cultura, estagnando os modos de decisão necessários à atribuição de sentido à existência que é agora.

E, além disso, essa ânsia acaba por não ter nenhum critério seletivo para determinar o que saber, impossibilitando a apreensão criativa do passado, de modo que ele pudesse servir à vida. Portanto, é preciso desenvolver a habilidade de saber lembrar e esquecer, na hora certa, o que diz respeito tanto ao indivíduo quanto à cultura.

Por mais injusta e cheia de erros que seja a limitação dos horizontes de alguém, se estes estiverem bem fixados, há a presença da saúde e da vivacidade, enquanto os “justos” e os “sábios”, que continuamente deslocam ansiosos esses horizontes de possibilidades, não conseguem se livrar do emaranhado de sua justiça e verdade para dar a devida vazão e o devido espaço ao querer (Wollen) e ao desejar (Begehren). Isso quer dizer que, sem o invólucro do sentido a-histórico, a história sequer teria começado, pois, estamos aqui levando em consideração a necessidade da delimitação do “espaço” para a ação como algo necessário para a efetivação de qualquer acontecimento. Os feitos realmente decisivos, ou seja, que fazem história, somente são possíveis quando os agentes que o provocam se encerram nessa densa nuvem de esquecimento que faz com que sua percepção se contente com o que lhe é possível abarcar nesse momento.

Ignorando todas as outras possibilidades, torna-se inconsciente de tudo que não se refira àquele propósito que ele teve a força de determinar valorativamente a ponto de se manter firmemente nessa resolução que lhe proporcionou a decisão e a ação. É neste sentido que cabe entender a afirmação de que todo acontecimento só se faz devido ao esquecimento, pois a viabilização das forças devido à não ocupação com toda uma amplitude de possíveis considerações se torna poderosa quando pode se dedicar de maneira tão exclusiva a realizações selecionadas por uma memória que aprendeu a selecionar o lembrado conforme o nível com que isto lhe intensifique a força de querer viver e do querer moldar o tipo de configuração dessa vida.

A conquista da serenidade do agir

Agora vai se tornando possível compreender o que Nietzsche estava querendo dizer ao escrever que “a serenidade, a boa consciência, os atos felizes, a confiança no que está por vir” (ibidem, p. 251) somente se fazem possíveis com o esquecimento através da delimitação de horizontes, pois encaminhar-se para a condição de serenidade, de jovialidade é ir com audácia e com todo arsenal possível em direção às decisões tomadas. A partir do momento em que é tomada uma decisão, deve-se debruçar-se sobre a possibilidade acolhida, pois o que foi escolhido é que determinará o modo de configuração que constituirá a vida de quem decidiu. A serenidade (Heiterkeit) é consequência do nível de força aplicado sobre a tarefa norteadora do alcance do êxito, independendo de acontecer o êxito.

Aqui se aplica de forma notável a instauração de horizontes existenciais como modo de dever ser do homem, como a capacidade de criar horizontes que viabilizem um processo de compreensão e distinção acerca do que de fato se refere ao que lhe é mais próprio, de modo que esses horizontes interfiram na possibilitação do conhecimento de si mesmo, mas, ao mesmo tempo, de forma consciente dos segredos que nos constituem e que extrapolam nossa capacidade de compreensão estritamente racional e consciente. Trata-se da constituição de uma vida em que haja constantes tentativas de autodeterminação da própria personalidade com a consciência de que ela também apresenta traços que nos são inacessíveis ou que não se nos revelam inteiramente. De qualquer modo, querendo ou não, o homem está inserido em horizontes de visibilidade e, tendo isso como pressuposto, há ao menos dois modos distintos de esse homem se comportar.

Por um lado, o homem pode colocar-se na posição de, perante o tempo, apresentar uma atitude deveras devotada ao passado. A postura científica transforma a reflexão sobre o próprio devir – a história, o tempo – num conhecimento com pretensões de objetividade, de objetividade histórica. Aqueles que se voltam demais para as manifestações daquilo que já aconteceu, ao invés de se aterem de forma privilegiada ao presente, acabam por não afirmar com plena força os caminhos que se lhes apresentam e evidenciam suas cruas possibilidades. É bom lembrar que, além disso, a postura que visa à coleta dos fatos históricos com o intuito de organizá-los de forma compreensível e, até certo ponto, lógica, se vê obrigada a praticar violência sobre o passado ao acomodar a incompatibilidade ocasional dos dados – os quais são por muitas vezes contraditórios entre si –, de modo a provê-los de relações causais que pretendem eliminar a arbitrariedade e singularidade oriundas, na verdade, de causas indeterminadas e desconhecidas. Dessa forma, torna-se impossível a aplicação plena às ações assumidas por meio de decisões, fazendo com que aquilo que é sua efetiva e decisiva existência entre os outros e as coisas assuma características que denunciam a falta da devida atenção à construção do presente. Mas então alguém poderia dizer: “o cientista devotado ao seu trabalho é um exemplo de alguém que sabe circunscrever suas possibilidades e, consequentemente, alcançar a serenidade que uma proba vontade proporciona”. Mas essa afirmação é problemática, porque não basta o engajamento por si só, não basta simplesmente a escolha.

O que Nietzsche afirma é a necessidade de que os frutos da decisão interfiram diretamente nos modos de disposição, de configuração da personalidade daquele que escolhe, pois o conhecimento por si só não é capaz nem deve substituir os valores, a capacidade de julgar, de estabelecer medidas e equivalências. Porque assim o valor da personalidade é substituído pelo da objetividade, a ciência se torna algo buscado em si mesmo pelos experts (pelos Gelehrten, especialistas), que adquirem a função de proteger a cultura do excesso de exigência de sentido e valores morais relativos à ideia de personalidade, autenticidade, grandeza e criação. Assim, o homem educado historicamente é aquele cuja instância de atenção temporal privilegiada se volta para aquilo que é impossível mudar, porque não é mais: o passado.

Por outro lado, o homem educado entre o uso da memória e do esquecimento considera a história como algo passível de sofrer reconfigurações plásticas. E, extrapolando as pretensões de alcance dos fatos – do factum histórico como realidade objetiva –, relaciona-se também com o caráter necessário da ignorância, do não dar-se conta, e, ao invés de se voltar engajadamente para a apreensão ou busca contínua pelos fatos históricos, compreende o “não saber” como valor também afirmativo. Isso não significa algum tipo de apologia à ignorância voluntária ou coisa que o valha, mas quer dizer que esquecer é muito importante para uma adequada delimitação de interesses no interior de horizontes que torne possível a plenitude do esforço frente ao desejo presente, de tal modo que a ida para a realização do plano e a própria realização do plano (de ação) possam até mesmo se tornar tranquilas e serenas.

A serenidade ocorre devido à consciência acerca da intensidade da autoentrega para o que se está sendo, pois, ao se perceber na aplicação máxima e exausta por sobre um modo de ser escolhido para si, o indivíduo pode se sentir mais à vontade para lidar de forma mais afetuosa e atenciosa com o mundo. Uma afetuosidade e atenção cuidadosa que propicia instantes de leveza, de uma sensação de destino, de que o que poderia ser feito para a realização de determinado propósito está sendo ou já foi feito. A consciência de que foi feito o máximo possibilita à ação essa tranquilidade, pois, caso não dê certo o propósito visado e ocorra uma frustração, esta poderá daí ser entendida somente como resultado de algo que de fato tinha que ser do jeito que foi: destino. A vitória ou a derrota acabam por não ser aquilo que determina, porque ambas são referentes a um tempo que ainda está por vir. É óbvio que talvez a vitória seja desejada, mas o que é de fato importante é o desenvolvimento de um discernimento seletivo capaz de afastar da consciência as pré-ocupações que coloquem em risco o percurso que ainda está sendo percorrido.

Esse valor destinado ao instante é algo que Nietzsche percebe como faltante nessa cultura histórica que toma conta da Alemanha no século XIX, impedindo a realização de uma cultura dedicada ao novo e inédito, ao engendramento de indivíduos que, por conta de suas criações, se destaquem da massa presente nas escolas, ruas, teatros e assembleias. E a grande ação se faz realmente com o esquecimento, porque, enquanto dermos tanto valor ao desejo de saber exatamente como foi o passado, perdemos a oportunidade de criar artisticamente esse passado a partir de nosso presente – extrapolando a necessidade de estabelecer a conexão causal de uma totalidade histórica, que pratica violência contra seu caráter inacessível, obscuro, apaixonado e absurdo –, e de criar o próprio presente e nossas vidas. Ou seja, com tanta ânsia histórica nos tornamos menos fecundos e mais eruditos.

O conhecimento histórico tem sua importância, sim, mas não como conhecimento puro, objetivo e desinteressado, e sim como um tipo de conhecimento que só deve ser realmente empreendido na medida em que nos auxilie a viver. E para que isso aconteça é necessário que seja dado o devido valor ao esquecimento, de modo que o excesso de história seja dominado em prol da intensificação do presente, do futuro e da vida.

Bibliografia

NIETZSCHE, F. Unzeitgemässe Betrachtungen II: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben in Kritische Studienausgabe (KSA, Band I). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino

NIETZSCHE, F. Considerações intempestivas II - Da utilidade e dos inconvenientes da História para a vida. Trad. Lemos de Azevedo. Lisboa: Presença; São Paulo: Martins Fontes, s.d.

SCHNÄDELBACH, Herbert. Filosofía en Alemania (1831 - 1933). Trad. Pepa Linares. Madrid: Cátedra, 1991.

Publicado em 25 de maio de 2010

Publicado em 25 de maio de 2010

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