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Educação e escola: entre a autoridade e o autoritarismo
Lúcio Alves de Barros
Professor universitário, doutor em Ciências Humanas e Sociais pela UFMG
Um aluno grita com a professora de Matemática, que chora. Outro empurra uma jovem docente de Letras e finge que não viu. Um professor é ameaçado com arma fora da sala. Outro aluno utiliza o celular e, quando advertido, manda o docente calar a boca. Alunos colocam bomba embaixo da mesa do professor e uma aluna bate na docente ainda ingênua. Episódios como estes, infelizmente, passaram a fazer parte de nosso cotidiano escolar. Uma crise cega e silenciosa perpassa as salas de aula. Professores andam com medo e os alunos, por diversos motivos, andam violentos, estressados e desmotivados.
Em algum lugar do passado algo mudou e não foi para melhor. Aparentemente, os anos de autoritarismo fizeram grande confusão com o que entendemos “ser autoridade”. O docente já não é o mesmo. Talvez os ventos da década de 1960 ou mesmo os de 1980 fizeram mal a boa parte da saúde espiritual dos discentes em sala de aula. Alunos e alunas andam confundindo as coisas e, diante da sociedade hedonista e do consumo, têm perdido qualquer referência. Provavelmente o fenômeno tem começo na família. O filho, antes cuidado e educado pelo pai e pela mãe, hoje sofre a terceirização da fantástica arte de educar. De duas uma: (1) ou são entregues a babás e à TV ou (2) são despejados em escolhinhas e/ou escolas, as quais há tempos já vêm tomando boa parte do tempo da criança que deveria, por definição, estar com os pais. A escola, nesse caso, tem servido como o depositário de crianças e adolescentes porque os pais simplesmente trabalham. Sem limites na família, o aluno e a aluna encontram outros valores no ambiente escolar e o conflito é iminente.
A diferença institucional é clara e traz medo e insegurança. Todavia, os alunos e as alunas decidiram trocar os próprios papéis. Nas escolas, andam de um lugar a outro sem saber para onde ir, entopem os ouvidos dos mestres com conversas ociosas, não respeitam os limites com celulares e aparelhos de som ligados, colam até falar que “quem não cola não sai da escola” e “zoam”, esta é a palavra (gíria?), “zoam” de tudo e de todos. Como alvo fácil, em um período no qual não se sabe o que é a autoridade, o professor passa de “algoz”, em uma pedagogia tradicional, a “docente vítima”, numa pedagogia “nova” e construtivista. O fato é que estamos perdendo a batalha para o que um dia se chamou autoridade por mérito, idade, vivência ou cultura. Crucificamos, primeiro, os pais; agora estamos empurrando com a cruz e tudo a crise das escolas, que atingiu em cheio o professorado. Culpa? De quem? Um dia falaram “é proibido proibir”, depois comentaram que “quem manda é autoritário” e, por fim, veio a ideia sem conteúdo de que o conhecimento é algo que todos podem atingir com o tempo, sem esforço, sofrimento, muito trabalho, disciplina e força de vontade. Avacalharam tudo: a escola – aos poucos – está deixando de ser um local de conhecimento, no qual o discente respeita o “corpo docente” e desabafa os conflitos com respeito e limites. Chegamos ao cúmulo dos pais se revoltarem contra os mesmos docentes, partindo para uma espécie de judicialização da educação. A vingança é a força motora da vez, e não são perceptíveis mudanças em longo prazo; um novo cenário esperançosamente há que ser construído, simplesmente porque andamos confundindo autoridade com autoritarismo.
O professor Régis de Morais disse que “o autoritarismo é a doença da autoridade” e que “toda autoridade é um valor, pois que é garantia da liberdade” (Morais, 1988). É óbvio que existem os autoritários de ocasião, e nada como acordos, negociações, contratos e leis para criar limites. Todavia, como recuperar a autoridade discricionária do professor sobre o aluno que, no espaço doméstico, sequer conversa com o pai e com a mãe? Como pensar em autoridades capazes de servir como exemplo de vida, verdadeiros arautos, lideranças a seguir no intuito de controlar interesses e impulsos? Em toda parte perdemos a capacidade de respeitar o poder, seja ele institucionalizado ou não: o poder que, por natureza, os pais têm sobre os filhos, os mestres sobre os alunos, o pastores e padres sobre os devotos e assim por diante. Não exercitamos a obediência. Por vezes a vemos como algo a ser execrado, desconfiado, como se fosse somente parte de um processo de submissão. O fato é que nem todas as circunstâncias são assim. A autoridade carrega por natureza a possibilidade da ordem, da harmonia e da liderança. Liderança conquistada por mérito baseado na hierarquia latente ou manifesta. Diferentemente dos mecanismos autoritários, nos quais não lidamos com lideranças, mas com chefes, verdadeiros capatazes, os quais mandam e não sugerem a ponto de matar ou torturar – a autoridade se firma no bem continuado, na liberdade da ação e do diálogo. O autoritarismo – por definição – é um mal descontínuo. Todavia, são dois lados de uma mesma moeda que, no jogar para cima, contra qualquer lei da probabilidade, tem caído em favor do lado do autoritarismo.
Algo tem que ser feito: estamos sem capacidade de receber, exigir ou trocar respeito, relação essa somente possível com a maturação e desenvolvimento dos mecanismos de autoridade. A humanidade não foi capaz de criar outros meios. A questão é séria e, para não alongar, pensemos na seguinte hipótese: uma criança não deseja e/ou não encontra autoridade e, por ressonância, limites dentro de casa. Sem restrições e valores familiares, é um passo para que se torne um pequeno tirano, haja vista que deseja – tal como disse o jovem professor Hugo –, “atenção e limites”. Autoritária, é bem possível que ela repita o mesmo comportamento na escola com os professores e os alunos, lembrando que, em conjunto com os pais, não conseguiu os limites necessários. Como a escola está longe de cumprir o seu papel (isso se souber que possui um) a contento, é questão de tempo para que a pequena criança se torne um forte e robusto adolescente que se acha acima dos outros e de Deus. Acompanhado dos hormônios sem controle e das crises próprias da idade, o aluno ou aluna segue “rompendo as barreiras” e, como diz Lya Luft: “Resultado, crianças e adolescentes insuportáveis, pais confusos e professores atônitos: como controlar a má-criação dos que chegam às escolas, se uma censura séria por uma atitude grave pode provocar indignação e até processo de parte dos pais?” (Veja, setembro 2009, p. 26).
Com receio, os pais caem nas teorias de educadores, psicólogos, psiquiatras, da mídia e do Estado. Adolescentes e crianças chegam mesmo a ameaçar os pais em nome do conselho tutelar ou da polícia. Uma grande piada esse Estado, porque a criança quer autoridade fora de casa e, medrosos, os pais cedem por não ter a ciência de uma outra autoridade que sequer tem competência para garantir uma educação de qualidade. Fora do lar e da escola, pais e mães são incapazes de controlar os meninos e as meninas movidas a shopping center, e é questão de muito pouco tempo para que se encontre uma bengala.
É nesse campo que entram o cigarro, o álcool, a melhor “amiga”, o melhor “amigo”, os grupos das “baladas”, as gangues e por aí vai. Nesse meio é que aparece a figura do adolescente “mais adulto” que empurra a garotada cheia de hormônio e em crise familiar e escolar para o espaço sombrio e obscuro das várias drogas à disposição. Nessa esfera, encontra-se uma autoridade movida a dinheiro e muito poder: o traficante. Está aí o final da conversa sobre autoridade. Na rua, no “copo sujo”, no “boteco” e nas “bocadas” de fumo se esconde o pequeno e grande vendedor que exercerá (no vácuo da falta) no adolescente ou na criança sem autoridade um autoritarismo travestido de legitimidade porque detém o monopólio da droga e da possibilidade do endividamento do iniciante ainda não viciado. Um círculo vicioso rapidamente se forma. O traficante se impõe como autoridade sem ser, o menino e a menina se encantam pelo poder dele, que possui a droga do momento, e a família e a escola tornam-se verdadeiras instituições reféns de um processo longe de seu fim. Este talvez seja o grande problema desta imaginária modernidade, a inversão da casa com a rua e a queda dos pais e professores para a sombra que não precisa de muito esforço para a manutenção do poder. É preciso maior atenção em relação às gerações que estão por vir. A despeito de todos os problemas, a família e a escola ainda são dois universos com relativos poderes de segurança par o público jovem e o adulto, bastando para isso a recuperação das relações de autoridade e singelos princípios que marcam com força a alma da criança ou do adolescente.
Referência
MORAIS, Régis de. Sala de aula. Que espaço é esse? Campinas: Papirus, 1988.
Publicado em 19/01/2010.
Publicado em 19 de janeiro de 2010
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