Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.
Entrevista com Raimundo
Alexandre Amorim
Há anos aquele homem está ali, sentado e escrevendo, rodeado de plásticos e garrafas, numa ilha entre as pistas da Avenida Pedroso de Moraes, na esquina com a Praça Ernani Braga, no bairro do Alto de Pinheiros, em São Paulo. Vestido com um gorro e uma capa de plástico preto, sua figura não é das mais convidativas, mas logo no primeiro contato Raimundo Arruda Sobrinho, que chama a si mesmo de “Condicionado”, mostra ser íntegro, paciente e até cavalheiro, como poucos restam hoje.
A primeira vez que falei com Raimundo foi em 2001. Ele escrevia de cabeça baixa e quase não me notou. Recebi um amável “pois não”. Na primeira pergunta, pedi a ele que se apresentasse. Na primeira resposta, comecei a entender por que Raimundo é um homem marginalizado e por que o Condicionado é um homem sozinho.
Raimundo: Eu sou um simples analfabeto, as condições em que me encontro autodefinem-me: um simples cadáver de racional.
E o senhor escreve sobre o quê?
Raimundo: Eu não escrevo sobre nada, eu sou escritor sobre nada no sentido de... O escritor tem a sua temática, escreve normalmente e se firma como escritor por uma temática geral, por exemplo: prosador, poeta, autor didata. Eu não tenho o político, o filosófico, eu não sou nada, eu escrevo só assuntos de natureza pessoal.
O senhor tem anotadas todas as coisas que o senhor ganhou, e como gastou. E é isso que o senhor faz durante o dia, fica anotando...
Raimundo (interrompendo): Não, isso eu não faço durante o dia porque isso a gente faz em poucos minutos. Faço outras coisas, outros assuntos. Tem a minha redação normal. Depois da minha redação normal eu fico... Bem, eu gasto o tempo todo escrevendo pequenos borrões, pequenos textos. Mas nunca escrevi um livro. Eu faço e dou.
Sobre o que o senhor escreve?
Raimundo: Qualquer bobagem, qualquer coisa que me excitar.
O senhor distribui o que escreve?
Raimundo: Não, só faço esses pequenos textos e dou. Pequenos textos, qualquer bobagem.
(Pega o texto, escrito em uma tira de papel de embrulho, um dos “borrões” que ele costuma escrever.)
Oferta: Gestas – páginas autógrafas. Insiste. O perguntador...(consertando a leitura) Insiste o perguntador: Que é calúnia? Não sei. E injúria? Não sei... (não consegue ler uma palavra do texto; Cintia lê: “Infâmia”). Insiste o perguntador: Que é calúnia? Não sei. E injúria? Não sei. E infâmia? Não sei. Assina o Condicionado, São Paulo, 3 de setembro de 1999 + 1, Condicionado.
E o que é 1999 + 1?
Raimundo: Isso aqui é do ano passado. Eu não escrevo 2000, eu sei que tudo é falso na entrada do ano 2000. Eu escrevo 1999 + 1.
E o senhor se assina “O Condicionado”?
Raimundo: O Condicionado. Meu nome é Raimundo Arruda Sobrinho. Apelidaram-me O Condicionado e eu assino pelo apelido que me deram, (Mostra o outro lado da tira do papel onde está escrito o texto) Isso aqui é o título: “Insiste”, número 23. Aqui... Foi feito ontem: 3 de abril de 1999 + 2, O Condicionado. Aqui no meu calendário, hoje é 4 de abril (a entrevista foi feita no dia 10 de março). Se quiser levar esse pedacinho... (oferece a tira de papel com o texto)
O senhor se sente bem em passar esses escritos para os outros lerem?
Raimundo: O senhor está chegando agora, o que o senhor vai dizer? O que eu vou dizer? Eu, estando escravizado psiquiatricamente, não adianta. Tudo isso aqui, se o senhor pegar isso aí, se fizer uma perícia nesse pequeno pedacinho de papel que eu dei, na minha crença, o senhor vai comprovar que é uma reprodução, não é mais o original. O original é isso aqui (mostra outro papel, com o mesmo texto).
O senhor escreve para quê? Para vender, para o senhor mesmo, para os outros lerem?
Raimundo: Olha, eu não quero... No momento, eu sintetizo assim: não quero ler ninguém, nem ser lido.
Só quer escrever?
Raimundo: Não é querer, não é querer... Isso aqui é porque não tem outra coisa pra fazer.
O senhor escreve porque não tem outra coisa para fazer?
Raimundo: Não tem outra coisa pra fazer. Não deixaram arranjar serviço, nem servente de pedreiro eu consegui arranjar. Eu trabalhava de servente de pedreiro e não pagavam tudo o que eu ganhava.
As pessoas que leem seus textos conversam com o senhor sobre eles?
Raimundo: Ninguém vem aqui com capacidade pra conversar comigo, pra dialogar... Os que vêm aqui não têm nível. O que parece é o seguinte: eu estou num pedestal intelectual mais alto do que os outros. O meu linguajar é tão alto, o meu linguajar intelectual é tão alto que eles não compreendem.
Não entendem nem o que o senhor escreve?
Raimundo: Não, exatamente. Mas a verdade não é essa. Eu estou cercado de falsidade, traição e traidores. É o inverso. O nível intelectual daqueles que vêm aqui é que está acima das nuvens, é o inverso. Os que vêm aqui é que estão acima das nuvens, o nível intelectual é acima das nuvens. Vêm doutores, professores, catedráticos de tudo quanto é coisa, altas personalidades. Verdadeiras universidades. E eu não tenho diploma de nada, não tenho diploma, não sei nada, não tenho diploma de nada.
E o senhor acha que quem vem aqui não quer entender o senhor... Não consegue entender...
Raimundo: Olha, vem só parasita. Vem só sugar os meus rudimentos culturais em ruínas. E só isso, nada mais. Eu tô cercado de falsidade, traição e traidores.
O senhor escreve sobre o que quer escrever?
Raimundo: Olha, eu, estando sob lavagem cerebral, é a psiquiatria quem decide. O cavalheiro compreendeu?
E o senhor não se interessa em ler outras coisas?
Raimundo: Não me interesso.
Por quê?
Raimundo: Eu não disse que isso aqui já pode ser falso? Eu estou escrevendo, o senhor está me vendo com a pena na mão, acabando de fazer essa anotação e isso aqui já pode ser falso.
E um livro com uma história que já nasceu falsa, só uma história de mentira?
Raimundo: Olha, a ficção literária é uma coisa, mas isso não... Aí, não adianta muito, porque não tem muito sentido pra gente.
Para o senhor a ficção literária não tem sentido?
Raimundo: O senhor diz uma coisa que é totalmente falsa?
Totalmente inventada.
Raimundo: Não, aí no momento eu não tô interessado. Eu não tô interessado em literatura. Não tô interessado em nada porque tá tudo nessas condições (mostra em volta seus sacos de lixo, a imundície em torno dele). Não tem o que fazer com elas.
Nem escrever uma coisa que o senhor quiser inventar?
Raimundo: Eu não sou escritor, não tenho nada para publicar. Eu escrevo a realidade, escrevo alguma coisa que eu observo. O que eu observo, penso. Mas não tenho condições de escrever um conto, de escrever uma novela, de escrever um romance, de escrever poesia, nada.
O senhor quer dizer alguma coisa para quem lê seus textos?
Raimundo: Olhe, pra gente, eu prefiro... Eu prezo, acima de tudo, a modéstia. Eu não disse que sou um simples cadáver de racional? Um cadáver de racional vale menos do que o irracional dele. Um cadáver humano vale mais do que outro cadáver. Aqui é um simples cadáver de racional. Eu amo a modéstia acima de tudo, mas mesmo assim, quando eles me desequilibram com essas vozes que eu ouço e não sei quem fala e nem de onde – eu me enalteço de uma maneira incrível.
Como o senhor consegue papel?
Raimundo: O papel, eu compro. O povo me dá qualquer migalha, e com essas migalhas que as pessoas me dão eu compro o que eu posso.
E sobre o que o senhor pensa em escrever, ultimamente?
Raimundo: Isso aqui é assunto de natureza pessoal... Eu tenho a minha redação, a redação da casa, vamos dizer, e outros textos. Eu não lhe dei esse pedacinho de papel? Então, eu passo o dia fazendo esse pedacinho de papel e dou. Esse aí, a gente faz em poucos minutos. Em poucos minutos, eu faço um pedacinho de papel desses. Eu lhe mostrei como ele é feito? (pega um papel pardo dobrado, mostra pedaços do papel pardo cortado em tiras) Ele é feito nesse formato, o papel desse jeito, desse tamanho. Eu corto o papel, coloco aqui nessa folha e escrevo o texto.
Está tudo bem guardado, muito organizado...
Raimundo: Não, nada aqui merece elogio...
(Combino de trazer papel e caneta para ele) A caneta pode ser de qualquer cor?
Raimundo: Eu uso preta. (Mais tarde, ele explica que usa a vermelha para correção, mas compraram a verde e a azul, e ele está usando) Eu só uso papel almaço sem pauta. Eu usava pautado, esconderam, suprimiram nas papelarias. Aí, eu fui obrigado a comprar esse aqui. Muitos anos depois, disseram que esconderam o papel pautado pra obrigar-me a escrever em papel sem pauta, porque o papel sem pauta consome muito mais. A mão desequilibra e consome muito mais do que o papel pautado. Então, o objetivo é fazer-me gastar. E é mais fácil pra controlar: papel pautado tem tantas linhas, não é isso? Esse aqui, a gente escreveu a página e, pra controlar quantas linhas, não sabe. Então, é bandalheira e exploração da psiquiatria. Tudo aqui é perseguição, tudo aqui é pra acabar comigo (Levanta o plástico preto que cobre seus pertences, abre uma pasta de plástico e mostra páginas escritas em formas de documentos ou cartas). Olhe, é isso aqui, a redação é essa: “Diário de uma Vítima de Violação de Direitos Humanos - O Condicionado, sem endereço certo desde 29 de abril de 1978. São Paulo, 4 de abril de 1999 + 2, Condicionado = Falso, sexta-feira. Ano 15 seria o número 5132, 5156, 5106, e o vigésimo terceiro em desabrigo.
Noite semelhante à anterior, com onda nas partes íntimas, perfumes vários que obrigam-me constantemente...” (a chuva atrapalha a leitura, ele guarda a pasta). Quantas folhas vai me trazer?
Há quanto tempo o senhor está em desabrigo?
Raimundo: Desde 29 de abril de 1978.
Qual sua idade?
Raimundo: Eu nasci em 1 de agosto de 1938. Não sabendo em que ano estamos, não posso saber a minha idade.
O senhor quer que eu diga?
Raimundo: Não, porque o senhor vai dizer considerando o ano 2001, e nós não estamos no ano de 2001.
E seus estudos?
Raimundo: Cheguei aqui na segunda série ginasial, não consegui ultrapassar o primeiro colegial... (estende outro papel) Olhe aqui, leve esse outro texto. Gestas é o nome da editora – é um simulacro de editora, porque tudo tem nome. Sua revista tem nome, não tem? O senhor tem nome, tudo tem nome. “Gestas” significa uma coisa primitiva, rudimentar. Uma coisa muito atrasada, uma pessoa... Um irracional, um pobre irracional. É uma coisa despretensiosa, rudimentar.
E o que significa “páginas autógrafas”?
Raimundo: Porque é escrita traço por traço. Isso aqui é tudo autógrafo, trabalho manual.
Olhe, me desculpe, sou uma pessoa que já descobri, por vários textos... Após falar comigo, leve a certeza de que não o recebi como gostaria. Justificativa: a escravidão psiquiátrica não admite socializar. Eu vivo numa impaciência que, socialmente... Eu já disse a muita gente, sou socialmente estragado. Isso é um pequeno texto que eu fazia e dava, explicando isso. Me desculpando, porque a insociabilidade é muito grande. Isso é a psiquiatria que controla. Por isso, a gente não consegue um diálogo distinto, polido do princípio ao fim. Em consequência disso, a população tá controlada pra chegar aqui e se mostrar de uma maneira revoltante. Não chega pra conversar com delicadeza. A gente não encontra uma pessoa que chegue aqui com seu nível intelectual. É controlado. As ruínas vêm pra explorar meus rudimentos culturais, e não deixar transparecer coisa nenhuma para que haja intercâmbio. O cavalheiro pergunta, eu respondo. O que fala, não fala: tá controlado para falar de uma maneira que a gente não aproveita coisa nenhuma. A população tá controlada para não deixar transparecer coisa nenhuma daquilo que valha a pena fazer intercâmbio.
Eu vou conversar com um animal e ele não me compreende. Aqui, também. Basta usar um vocabulário que a pessoa não compreende, ela não tem condição de acompanhar o raciocínio.
Por consequência da exploração há décadas, a gente está permanentemente mal-humorado. Não é uma coisa de um dia ou de outro. Eu estou assim desde 1977, com essas vozes na cabeça, noite e dia falando e dizendo tudo o que querem e eu respondendo, gritando, brigando com aquilo. Então, eu quero mostrar que está sedimentado a pessoa estar com a paciência curta. Vem fazer perguntas infantis, sem fundamento, coisas pra revoltar.
Por isso, estou me desculpando – se eu falei qualquer coisa agora em que denotei isso, mas que, dentro de um protocolo diplomático distinto, não alteraria.
19/01/2010
Publicado em 19 de janeiro de 2010
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.