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Sobre a origem da universidade moderna
Marlon Baptista
Doutorando em Filosofia
O Conflito das Faculdades
Em 1794, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804) publicou uma coletânea de textos escritos ao longo de alguns anos ao qual foi dado o nome de Conflito das Faculdades. Esse texto foi o início da reflexão sobre a universidade moderna e o marco para a mudança na determinação de seu sentido. Ele representa essa mudança por se contrapor ao modelo de universidade medieval, constituída pelas três faculdades superiores (Teologia, Direito e Medicina) e a faculdade inferior (a Filosofia). A hierarquia dessa organização refletia uma ordem decorrente das necessidades empíricas percebidas pelo Estado, pois a universidade lhe servia para formar indivíduos que teriam como tarefa simplesmente cumprir seu papel do modo como foi aprendido.
Assim, o teólogo assume a autoridade quanto às questões referentes a Deus a partir da leitura da Bíblia, sem colocar em questão a validade do discurso ou a veracidade da doutrina. O jurista aprende e segue o código de leis promulgado pelo governo sem ter o direito de colocar em questão a justiça dessas leis. O médico, apesar de ser mais livre – devido ao fato de que as leis de sua técnica não podem ser definidas por um legislador, pois são determinadas pela natureza –, ainda assim, ao ter conhecimento sobre o corpo e a saúde, age como polícia médica, também em conformidade com os interesses do Estado em relação ao bem-estar físico ou não de seus súditos. Nessa tríade das faculdades superiores estaria figurada a preocupação com três fatores elementares: o bem eterno, o bem civil e o bem corporal.
Assim, por meio do controle dessas faculdades, o Estado estabelece sua influência sobre o povo. À faculdade inferior fica relegado o cuidado com os interesses da ciência, sendo ela considerada inferior “porque pode lidar com suas proposições do modo como achar melhor” (Kant, 1964, p. 281). Em suma, Kant afirma que as faculdades superiores funcionam tendo como fundamento a autoridade do Estado na figura de um governante, ao invés de se alicerçarem no poder reflexivo e crítico da razão.
Kant parte do princípio de que a supremacia das faculdades superiores se identifica com uma ideia de bem-estar do povo que não reside na liberdade, mas, ao invés disso, o mantém atrelado ao poder irrefletido de forças superiores que estabelecem que o que deve ser garantido são os fins naturais residentes na felicidade após a morte e na felicidade terrena figurada nos direitos legais da vida civil e no gozo do corpo. Com a autoridade sobre essas três questões concedida a eruditos versados no assunto, o Estado mantém o povo somente acomodado e não esclarecido, de modo a não refletir sobre as doutrinas que lhe são impostas – nem mesmo aos eruditos é dado o direito de discutir questões referentes ao fundamento de certos conhecimentos que lhes são infligidos. Esse estado de coisas faz com que reine o estado de menoridade intelectual: o povo é dirigido pelo clero, pelos juristas e pelos médicos por leis que, ao invés de promanarem do puro discernimento dos sábios das faculdades, provêm dos interesses do governo, que, por meio de decretos e determinados hábitos impostos, exerce seu poder sobre o povo. Trata-se de um estado de coisas ilegal, segundo Kant, por incitar o povo a se manter na comodidade de suas inclinações irrefletidas.
Isso significa que as leis arbitrariamente impostas podem não se harmonizar com o que a razão entende por necessário. A razão propriamente dita reside na faculdade de Filosofia, que tem por obrigação exigir que o quer que seja afirmado seja verdadeiro. E, ao se falar em verdades, estas não podem ser impostas, devem ser julgadas de forma autônoma. O que, por consequência, quer dizer que a faculdade de filosofia não deve obediência alguma ao governo, mas somente à razão, tendo, assim, como função fazer das doutrinas das faculdades superiores seu objeto de crítica, visando “o benefício das ciências” (ibidem, p. 291). Com isso, Kant inverte o critério valorativo dos polos opostos que formavam a universidade para afirmar a sua existência como um campo de conflito entre as faculdades superiores por um lado, que são defendidas pelo Estado não pela sua verdade, mas pela sua vantagem, e que nunca vão renunciar ao desejo de continuar governando; e a faculdade inferior, por outro, que visa a verdade, colocando-se na posição de esquerda, de oposição à manutenção do estado de coisas vigente e exigindo o direito de se tornar superior como conselheira do governo, o qual, a seu ver, teria muito mais êxito em seus empreendimentos e mais fundamento em suas deliberações se fosse influenciado e determinado pela clara voz da razão, que exige o direito de expor suas dúvidas quanto a qualquer determinação dirigida às outras faculdades.
É essa inversão que marca a passagem da universidade medieval para a universidade moderna, de modo que a função da faculdade de Filosofia seria interrogar os juízos do senso comum e pensar nas condições de possibilidade da própria linguagem que constrói discursos e legitima governos.
A instauração da nova universidade constituída filosoficamente
Nesse momento, na maioria das universidades imperava a opinião pronta e acabada do velho caderno do professor, ao invés da troca de perspectivas e a prática de discussões e descobertas. Somente conhecimentos prontos eram transmitidos e não se praticava a elaboração crítica do saber; em suma, a Aufklärung (esclarecimento) não era praticada nas universidades. Na universidade inglesa, os frequentadores aristocratas eram alheios à investigação ou consideração de cunho prático, configurando um tipo de modelo medieval comandado pela Igreja, ou seja, tratava-se da transmissão de um corpo estático de conhecimentos num formato enciclopédico de obras reconhecidas pela sua autoridade, de modo que a criatividade não era algo bem-vindo, pois a verdade já estava estabelecida, era só questão de aprendê-la. Enquanto isso, a investigação era feita pela burguesia em associações privadas. Na França, por outro lado, as 22 universidades antigas se transformaram em escolas técnicas controladas pela instituição chamada Universidade Imperial, criada por Napoleão em 1806. Sob a influência da avassaladora expansão dos ideais iluministas franceses para todos os âmbitos da sociedade, deixou de haver preocupação com as disciplinas entendidas como teóricas, de modo que o objetivo dessas instituições passou a ser somente a ilustração do Estado, fazendo com que o caráter investigativo se tornasse alheio às universidades e que estas se tornassem centros de cursos de capacitação técnica sob o controle do Estado. Na Alemanha também, desde meados do século XVIII, intensificara-se a presença de escolas superiores voltadas para a especialização técnica e cada vez mais se abandonavam as instituições que não se vinculavam diretamente com a realidade em seu sentido pragmático e técnico.
Para piorar, no que diz respeito à Alemanha, em 1806, com a invasão das tropas de Napoleão, foi perdida a sua principal instituição de ensino superior, a Universidade de Halle, que se encontrava na área ocupada. Numa tentativa de realizar uma espécie de contrapartida cultural frente ao desastre militar, viu-se a necessidade de criação de instituições adequadas para o desenvolvimento da ciência, num sentido distinto da mera produção de técnica, manipulação da natureza e aplicação positiva. O sentido de ciência aqui passou a se referir à compreensão da totalidade do saber humano de forma sistematicamente ordenada, de modo que todos os saberes configurassem um sistema de inter-relações e de dependência recíproca, ou seja, tratamos aqui do sentido de ciência entendido pelo idealismo alemão, o qual se apropria da Filosofia kantiana e se transforma num projeto filosófico cuja meta é a constante aproximação teórica e prática de um sistema que fosse capaz de ordenar e dotar de inteligibilidade todo o real, conceitualizando todos os seus âmbitos, determinando a lógica que estabelece o vínculo entre esses diversos campos, situando toda a multiplicidade da realidade em lugares específicos, de modo a constituir uma totalidade orgânica em que cada elemento ocupasse uma função específica e imprescindível. Foi neste sentido de unificação da multiplicidade do saber de forma sistemática, visando o saber pelo seu valor intrínseco por meio da pesquisa científica orientada pelo fundamento universalizante racional figurado na filosofia, que surgiu a universidade alemã moderna. Para além de uma reação cultural perante a realidade de uma nação derrotada, ou, nas palavras de Wilhelm Von Humboldt (1767-1835), de “um novo zelo e calor para o reflorescimento” da nação; entendia-se que seria a ciência que possibilitaria a conquista da liberdade, a qual, ao invés de se circunscrever ao cenário político, como na França revolucionária, proporcionaria o desenvolvimento completo do homem por meio da compreensão proveniente de um projeto filosófico que viabilizaria um tipo de formação em que a ciência – entendida no sentido alemão – mostrar-se-ia como o modo de determinação do saber e da moral dos homens em sua interioridade, de modo que eles tornar-se-iam muito mais aptos a buscar, por si mesmos, suas autênticas metas e ideais, além de poderem trabalhar como educadores da humanidade.
Humboldt desenvolveu o relatório Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim para a fundação de uma nova forma de instituição pautada no conceito de ciência do idealismo para constituir uma universidade filosófica. A ciência é apresentada por Humboldt como uma “pura ideia” que provém “das profundezas do espírito”, e que, por definição, não é realizável. Isso é muito importante porque é um fator essencial de diferenciação da universidade alemã em relação à escola e em relação às universidades de outras nações, pois, além de entender a ciência a partir da perspectiva do sistema idealista, a universidade alemã tem por fundamento – por coerência com o próprio idealismo – a impossibilidade do conhecimento da totalidade sistemática dos fenômenos, o que possibilita a ideia de progresso infinito do conhecimento das ciências e justifica a concepção de ciência como um processo de correção e aperfeiçoamento infinito, de modo a não ser possível estabelecer um quadro ou sistema de sua totalidade, mas, ao invés disso, um progresso no decorrer da história humana e das gerações que entende a ciência (enquanto compreensão unificada e sistemática de um todo) como processo em progresso, mas sem que seja possível uma última palavra definitiva. Trata-se do conhecimento como processo progressivo que nunca chega a abranger o conhecimento da totalidade, ainda que essa conquista deva ser mantida como ideal. É neste sentido que Humboldt afirma que “a ciência deve sempre ser tratada como um problema ainda não totalmente resolvido, e, por isso, mantendo-se sempre como pesquisa” (Humboldt, 1996, p. 256).
Isso assinala a particularidade do projeto de universidade alemã que entende a ciência como busca, sempre aberta a desenvolvimentos não trabalhados. Ou seja, o que marca o caráter distintivo das instituições de ensino alemãs é a separação bem clara entre conhecimento puramente científico e técnico. Na universidade, o aluno e o professor vivenciam um tipo peculiar de interação em relação à escola, pois, ao invés de o segundo ter como finalidade o primeiro, ambos têm como fim último a ciência por si mesma, ambos trabalham para e pela ciência, entendida “como algo ainda não totalmente encontrado e nunca totalmente descoberto” (ibidem, p. 257).
Nossa herança
Nesse sentido, podemos nos perguntar o que compartilhamos hoje, em nossa realidade brasileira, com o projeto da universidade moderna, criado na Alemanha. A pretensão de sistematização do todo por meio da Filosofia nunca foi posta em prática, nem aqui, nem na Alemanha, nem em lugar nenhum. Mas por quê? Devido à impossibilidade dessa sistematização? Mas o sistema é somente uma ideia, não é para ser consumado. Mesmo assim podemos constatar o fracasso deste projeto do idealismo. Um dos motivos talvez seja pelo fato de, já no século XIX, quando se deu a fundação da universidade que conhecemos hoje, as ciências já vinham conquistando tamanha autonomia que passaram a independer de qualquer maior abrangência que as vinculasse à necessidade de uma totalidade. Principalmente na segunda metade do século XIX, com o colapso dos sistemas idealistas e com o apogeu das ciências humanas, a Filosofia perdeu de vez o crédito milenar de conhecimento soberano, principalmente para as então recentes ciências históricas, a historiografia. Foi nesse contexto que surgiu a disciplina de História da Filosofia como estratégia para que a Filosofia não fosse excluída de vez das áreas de conhecimento no interior da universidade. Um tosco reflexo que ainda temos desse projeto de uma universidade fundada na Filosofia é a presença das disciplinas introdutórias à Filosofia em todos os cursos da universidade. E aí a filosofia passou a se restringir ao espaço universitário, tornando-se cada vez mais estéril no que se refere à sua efetiva participação e intervenção na realidade social e política, tornando-se algo restrito a iniciados, sem qualquer consequência prática.
O sentido da universidade como lugar de pesquisa é algo que mantemos (apesar de existirem sempre problemas), pois todo legítimo professor universitário deve ser acima de tudo um pesquisador; e não só ele, também os alunos, que são iniciados cientificamente desde a graduação. Isso significa que a presença, no interior da universidade, de professores que não estejam envolvidos com a pesquisa é um contrassenso em relação a uma das características mais fundamentais do sentido originário da universidade: a busca pela verdade num eterno projeto, a inquietação e a consciência da inexistência de um ponto final do conhecimento.
Um fator que é problemático no caráter distorcido de nossa herança é a crescente indiferenciação entre escola e universidade. Pois é recorrente a experiência de graduandos e mesmo de pós-graduandos que vivenciam uma rotina universitária muito parecida com a escolar: assistindo a aulas em que é realizada chamada, assimilando conteúdo sem consequências, fazendo provas para demonstrar um conhecimento pronto, adquirido. Um dos motivos pelos quais isso acontece é por causa do modo como se entende a docência: a relação entre o professor e os alunos se dá simplesmente por meio da ideia de “aula”; tudo é resumido a essa ideia, sendo que, em sua origem, o funcionamento da universidade não era assim. Daí a diferenciação entre “conferência” (Vorlesung, vor = diante, em frente; lesen = ler, ou seja, a leitura diante de um público de estudantes) e “seminário”: a primeira teria caráter de produção de pesquisa do professor, que a apresenta sempre por meio de novos textos escritos por ele para um grande auditório; a segunda forma de interação seria a oportunidade de maior aproximação entre docente e discente, em que, com um número reduzido de estudantes, se realiza de forma conjunta a produção da pesquisa. Estamos mal acostumados com a cômoda posição de assistir a aulas expositivas, de forma passiva, como ouvintes, deixando ao professor toda a responsabilidade da lida com o conhecimento; poderia ser mais frutífero se houvesse a produção conjunta de ideias e de discurso a partir de um engajamento mais legítimo e consciente de que a universidade precisa garantir uma distinção em relação às outras formas de relação com o saber.
Bibliografia
HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre a Organização Interna e Externa das Instituições Científicas Superiores em Berlim. In: KRETSCHMER, Johannes; ROCHA João Cezar de Castro (orgs). Um mundo sem universidades? Rio de Janeiro, Eduerj, 1997.
HUMBOLDT, Wilhelm von. Über die Innere und Äussere Organisation der Höheren Wissenschaftlichen Anstalten in Berlin. In: Werke (Band IV). Stuttgart: J. G. Cotta’sche, 1996.
KANT, Immanuel. O conflito das faculdades. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1993.
SCHNÄDELBACH, Herbert. Filosofía en Alemania (1831 - 1933). Trad. Pepa Linares. Madrid: Cátedra, 1991.
Publicado em 19/01/2010.
Publicado em 19 de janeiro de 2010
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