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A cidade da beleza e do caos

Mariana Cruz

O Rio de Janeiro é uma cidade de contrastes. Assim como o resto do Brasil. Mas no Rio, bem, no Rio parece que as cores são mais fortes. A Cidade Maravilhosa é conhecida tanto pela beleza natural, já explicita em sua própria alcunha, quanto pela violência. Até mesmo o modo pelo qual as diferenças sociais aparecem estão associadas a outro tipo de contraste que não apenas o econômico, o geográfico: o morro e o asfalto. É lá em cima que a guerra explode, seja pela disputa do comando do morro entre os traficantes, seja pela luta com a polícia. Os verdadeiros chefões do tráfico, porém, dizem por aí, moram à beira-mar, estão longe da mira da violência. Perto deles só a brisa marítima. E a bala perdida que, invariavelmente, invade a janela dos barracos, acertando alguém que dormia inocente, não alcança os poderosos chefões: esses estão protegidos por seus carros importados devidamente blindados.

Mas nos morros a violência é apenas uma face. As músicas, o vocabulário, o estilo vira e mexe desce a ladeira e vem se integrar com o que acontece no asfalto. Os garotões bronzeados de Ipanema usando as gírias do negro franzino da Rocinha, a patricinha do Leblon dançando como a popozuda do Borel. Isso sem falar nas rodas de samba que agora tomam conta das casas mais sofisticadas (e caras) da Lapa, com direito a filas quilométricas repletas de representantes da classe média e alta carioca. E como falar em samba é falar em carnaval, o que dizer dos desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí? Lá os moradores das comunidades são as estrelas principais desfilando sua arte e luxo para a elite de mundo inteiro aplaudir de camarote, enquanto na arquibancada aglomera-se o povão com seu farnelzinho e muita disposição de ficar aguardando a passagem da escola do coração. Esse é o Rio que na época da bossa nova era romanticamente cantado: “Rio, serras de veludo / Sorrio pro meu rio / Que sorri de tudo (...) Rio é mar, eterno se fazer amar” e hoje em dia tem como descrição mais apropriada: "Rio 40 graus, cidade purgatório da beleza e do caos (...) Capital do sangue quente / Do melhor e do pior do Brasil (...) O Rio é uma cidade / De cidades misturadas / O Rio é uma cidade/ De cidades camufladas / Com governos misturados / Camuflados, paralelos / Ocultando comandos”. Mas até mesmo tal música já apresenta partes obsoletas, não tanto pela transformação da “Cidade sangue quente maravilha mutante” e sim pelas alterações climáticas que mexem com o mundo todo. Quem passou os primeiros meses deste ano no Rio pode sentir na pele: quarenta graus eram os dias frescos. Mas não podemos deixar de levar em consideração que o título da música Rio quarenta graus pode ter sido inspirado no filme homônimo de Nelson Pereira dos Santos, de 1955. Se assim for, desculpa aceita. Cabe a nós fazer os devidos ajustes climáticos proporcionais ao aumento gradativo do buraco da camada de ozônio ao longo dos anos.

Ainda tendo a música de Fernanda Abreu como fio condutor, um dos lugares que mais traduz o Rio como “uma cidade de cidade misturadas” é a Lapa. Quem cruzar a Rua Joaquim Silva na Lapa em uma sexta à noite vai entender o que digo. Em poucos minutos vai escutar do forró brega ao universitário, do pagode meloso ao samba de raiz, do techno ao funk, hip hop e reggae. Lá pertinho, no Circo Voador, há shows para todos os gostos. E quem quiser ver o tambor de crioula, maracatu, capoeira, dança afro, é só atravessar a rua e participar das oficinas da Fundição Progresso.

A mistura de classes pode ser empiricamente percebida em diversos cantos do Rio. Mas há especificamente dois lugares em que isso se dá de forma tão natural que por vezes passa despercebida: na praia e nos ônibus. Na praia do Arpoador, por exemplo, é comum ver surfistas de todas as raças, “trocando ideia” no mar, enquanto esperam a onda perfeita. É o garotão do Pavão-Pavãozinho que fala com o playboy da Vieira Souto, “e aí, brô, beleza?” “Beleza, brô!”, responde o “brother”. Ainda no Arpoador vemos aquelas cinquentonas saradas com seus chapelões e óculos que cobrem metade do rosto recostadas nas cadeiras, lado a lado com a gurizada da favela dando saltos mortais na beira do mar, correndo entre as barracas e jogando areia para todos os lados. De vez em quando alguém reclama da farofada, mas não pelo fato de serem meninos do morro, sim por serem crianças aprontado. A molecada nem se importa, quer mesmo é rolar na areia e ficar à milanesa. E no ônibus, o que eu antes pensava ser normal: todo mundo pega ônibus. Vi que em outros lugares isso não acontece, pelo menos de acordo com o relato de duas amigas, uma de Brasília e outra de Belo Horizonte; elas disseram que em suas cidades o ônibus é utilizado somente pelas classes baixas (deve ser um pouco de exagero). Aliás, um dos programas dessa amiga de BH quando está no Rio é levar o filho para andar de ônibus, pois para ele é algo inusitado e ele adora. Diante disso, comecei a observar se de fato ocorria essa mistura de classes no ônibus. Só precisei de um dia para perceber que realmente no Rio o “transporte coletivo” faz jus ao nome. No ônibus que pego quando volto do trabalho, ao invés de ficar olhando pela janela como de costume, resolvi dar uma checada na população flutuante: jovens com celulares de última geração, mochilas de marca (um dos pontos fica próximo a uma faculdade caríssima aqui no Centro) executivos, profissionais liberais, trabalhadores tirando uma soneca, cansados da pesada labuta do dia, batendo involuntariamente suas cabeças do vidro. Nessa viagem, porém, o que mais me chamou atenção foram duas elegantes mulheres de meia idade, cada uma com sua bolsa em punho, uma Dolce & Gabbana e outra Vitor Hugo. Ou seja, duas módicas peças que somadas devem ser... não, com certeza são mais caras que o meu guarda-roupa inteiro. Eis que um senhor de aparência bem humilde entrou no ônibus e uma das mulheres, do alto de sua bota de couro legítimo, cedeu gentilmente seu lugar. Afinal, como dizia um dos que adotou o Rio para mostrar sua obra: gentileza gera gentileza. Talvez o Profeta Gentileza tenha percebido que só em um lugar tão caótico e belo quanto o Rio é que poderia ter seu trabalho reconhecido. Mesmo que postumamente.

Publicado em 25 de junho de 2010

Publicado em 15 de junho de 2010

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