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Os meninos da minha escola

Hilan Bensusan

Os meninos da minha escola me pareciam cruéis.
Mas eram de uma crueldade que eu tinha que chamar cotidiana.
Eles não tinham empatia e detestavam tudo que não era deles.
Quase parecia que eles eram todos máquinas programadas.
Mas as máquinas nunca acham que o que fazem está certo.
Aqueles meninos jamais duvidavam de seus programas,
bons e maus alunos tinham todos os padrões como patrões.
Às vezes eles pareciam militares pequenos, todos tratando a unhadas e dentadas
tudo que alguém mandava tratar a unhadas e dentadas.
(Como é possível, eu pensava, que uma escola pareça um quartel?)
Eles tinham o ar de quem sabe, de quem pode, de quem tem.
Como era fácil, para quase todos, ter aquele ar.
Era como se fossem feitos de pretensão e empáfia.
Eram todos jovens e todos sábios.
Hoje eu me pergunto onde estão os meninos maus da minha escola.
Eles hoje são donos, são poderosos, são respeitados.
Já na escola tinham o instinto de seus privilégios.
(Como é possível, eu penso, que os mais psicopatas se tornem os mais bem-sucedidos?)

Os meninos da minha escola me pareciam selvagens.
Mas eram de uma selvageria que eu tinha que chamar ordem.
Cada um queria cotovelar e exibir tudo que tinha.
Aprenderam no berço a morder quem não morde e fugir de quem é grande.
Aprenderam que quem pode deve poder e quem não pode deve perder.
E aprenderam tudo isto, lição difícil, sem nunca vacilar, nunca titubear.
Aprenderam a controlar os outros antes de aprenderem a controlar as mãos.
Eu, entre eles, procurava o roteiro cheio de minúcias que eles seguiam;
procurava porque sem o roteiro tudo que eu fazia parecia muito errado.
(Como é possível, eu pensava, que estes preguiçosos
que não conseguem lembrar a data de 1917
podem lembrar de um roteiro com tantas minúcias?)
Eu nunca li o roteiro e agora sei que eles todos improvisavam.
Cada um copiava de quem parecia ter nariz mais levantado.
Hoje eu me pergunto onde estão os meninos maus da minha escola.
Hoje eles educam; eles hoje são exemplos.
Ainda não desaprenderam a copiar quem é forte ou firme.
(Como é possível, eu penso, que os que mais imitavam são os mais imitados?)

Os meninos da minha escola me pareciam torpes.
Mas eram de uma torpeza que eu tinha que achar social.
Cada um dedicava toda a sua originalidade a serem invejados.
Os outros, eu pensava com medo, serviriam apenas para admirá-los?
E admiravam para serem admirados, conheciam os preços uns dos outros.
Eu tinha apenas dúvidas, vivia de hesitações, tremia de incertezas,
e eles pareciam ter razão mesmo quando estavam errados.
Cada um fingia não poder ser desprezado pelos outros.
E eram homens, não mulherzinhas; não faziam coisas de mulherzinhas,
não gostavam de quem parecia mulherzinha e, talvez para provar isso,
falavam em comer as mulherzinhas, o que me parecia coisa canibal.
(Como é possível, eu pensava, que estes meninos asseados queiram devorar gente?) 
Eles ensinavam às meninas encabuladas que eram elas as mulherzinhas,
ensinavam com as mãos, com os lábios, com os olhos.
E quem estivesse com uma mulherzinha sem beliscá-la
tornava-se também mulherzinha, era contagioso, parecia.
Hoje eu me pergunto onde estão os meninos maus da minha escola.
Eles hoje estão casados com alguém que saiba como ser uma mulherzinha.
E eles ensinam seus filhos e filhas quem deve mandar e quem serve para admirar.
Ainda têm muito medo de, por distração, parecerem mulherzinhas.
(Como é possível, eu penso, que esses canibais medrosos queiram esbanjar poder?)

Os meninos da minha escola me pareciam desumanos.
Mas eram de uma desumanidade que era um parâmetro de humanidade.
Batiam, brigavam, esbravejavam e gostavam de fazer os outros
apanharem, socarem e chutarem em um espetáculo de porrada,
esperado como o acontecimento que dignifica o dia.
Contorciam-se para enxergar uma fresta da diversão pura
e se entretinham ainda mais quando corria sangue ou quebrava algum osso.
Ninguém queria estar sendo socado, estar sendo esmurrado,
mas dedicavam-se apenas a não serem os que apanham jamais.
Aprendiam nas rodas de pontapés que tinham que anunciar porrada
ou dar porrada. E todo o resto eram detalhes.
(Como é possível, eu pensava, que estes meninos educados gostem
tanto de ossos partidos?)
Eles contavam uns para os outros dos espetáculos que deram,
dos espetáculos que viram, e não importava que mentissem,
que contassem vantagens que não tinham: apenas queriam olhares com medo.
Hoje me pergunto onde estão os meninos maus da minha escola.
Estão rodeados de olhares com medo, sentados em poltronas confortáveis,
longe da escola. Mas fazem de tudo o que fazem ou assistem
a uma representação fiel das barulhentas rodinhas de porrada.
(Como é possível, eu penso, que gente que passou anos uivando por sangue
tenha crescido para ser respeitável?)

Os meninos da minha escola me pareciam bárbaros.
Mas eram de uma barbárie que eu tinha que achar civilizada;
já sabiam que seus direitos eram diviníssimos
e que quem não tinha esses direitos para sempre adquiridos
merecia um sacolejo de ombros ou insultos com gargalhadas.
Tinham um conhecimento vasto sobre como roupas e modos
revelavam quem devia mandar e quem devia se humilhar.
No fundo, sabiam tudo: no fim das contas valem apenas os músculos.
Eu tentava imaginar onde eles guardavam todas as aulas
que tínhamos sobre justiça, paz e respeito aos outros
que nunca eram longas demais para mim mas que sempre eram improvisadas
e sempre pareciam pouco importantes e sobre temas menores.
(Como é possível, eu pensava, que esses meninos já saibam
o que deviam aprender e o que devia parecer que aprendem?)
Nada ameaçava eles, nada importava a eles, eles seriam poderosos
quaisquer que fossem os princípios ou as regras dos jogos.
Eles me pareciam todos predestinados.
Hoje me pergunto onde estão os meninos maus da minha escola.
Estão defendendo a civilização com os princípios
de sacolejos de ombros e demonstração de músculos
que aprenderam bem na escola. Direitos e justiça
eles deixaram nos cadernos da escola. E eles mofaram.
(Como é possível, eu penso, que a civilização esteja na mão
de quem deixou os melhores cadernos mofarem sem serem lidos?)

Os meninos da minha escola me pareciam arrogantes.
Mas eram de uma arrogância que eu tinha que achar legítima.
Eles tinham palavras cheias de ódio e ressentimento,
cheias de conotações obscuras, ditas com asco,
palavras que todos temiam, ninguém entendia
e com as quais todos aprendiam a suspeitar.
Antes de sabermos que as pessoas se desejavam
e que os poderosos tinham o que desejavam,
sabíamos que as putas eram tortas, os bichas desprezíveis.
(Como é possível, eu pensava, que algumas pessoas possam ser,
assim de cara, tão erradas?)
Parecia que todos traziam um sinal de destino na cara:
estes foram feitos para galhofa, foram feitos para se envergonhar.
Pelos gestos contavam o que eram para todos com precisão,
em um código que eu não interpretava mas que os outros
compreendiam melhor do que compreendiam seus pensamentos.
Hoje me pergunto onde estão os meninos maus da minha escola.
Estão cheios de certezas e cobertos de pretensões toleradas.
Ainda se enojam com os gestos dos bichas, ainda se acham melhores que as putas.
Mas agora, convictos de que são admiráveis, eles decidem a vida de todos.
(Como é possível, eu penso, que os rabiscos nos banheiros da escola exprimam tudo que temos que desejar?)

Publicado em 15/06/2010

Publicado em 15 de junho de 2010

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