Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.
Os meninos da minha escola
Hilan Bensusan
Os meninos da minha escola me pareciam cruéis.
   Mas eram de uma crueldade que eu tinha que chamar cotidiana.
   Eles não tinham empatia e detestavam tudo que não  era deles.
   Quase parecia que eles eram todos máquinas  programadas.
   Mas as máquinas nunca acham que o que fazem está  certo.
   Aqueles meninos jamais duvidavam de seus programas, 
   bons e maus alunos tinham todos os padrões como  patrões.
   Às vezes eles pareciam militares pequenos, todos  tratando a unhadas e dentadas
   tudo que alguém mandava tratar a unhadas e  dentadas.
   (Como é possível, eu pensava, que uma escola pareça  um quartel?)
   Eles tinham o ar de quem sabe, de quem pode, de  quem tem.
   Como era fácil, para quase todos, ter aquele ar.
   Era como se fossem feitos de pretensão e empáfia.
   Eram todos jovens e todos sábios.
   Hoje eu me pergunto onde estão os meninos maus da  minha escola.
   Eles hoje são donos, são poderosos, são  respeitados.
   Já na escola tinham o instinto de seus privilégios.
   (Como é possível, eu penso, que os mais psicopatas  se tornem os mais bem-sucedidos?)
Os meninos da minha escola me pareciam selvagens.
   Mas eram de uma selvageria que eu tinha que chamar  ordem.
   Cada um queria cotovelar e exibir tudo que tinha.
   Aprenderam no berço a morder quem não morde e fugir  de quem é grande.
   Aprenderam que quem pode deve poder e quem não pode  deve perder.
   E aprenderam tudo isto, lição difícil, sem nunca  vacilar, nunca titubear.
   Aprenderam a controlar os outros antes de  aprenderem a controlar as mãos.
   Eu, entre eles, procurava o roteiro cheio de  minúcias que eles seguiam;
   procurava porque sem o roteiro tudo que eu fazia  parecia muito errado.
   (Como é possível, eu pensava, que estes preguiçosos 
   que não conseguem lembrar a data de 1917 
   podem lembrar de um roteiro com tantas minúcias?)
   Eu nunca li o roteiro e agora sei que eles todos  improvisavam.
   Cada um copiava de quem parecia ter nariz mais  levantado.
   Hoje eu me pergunto onde estão os meninos maus da  minha escola.
   Hoje eles educam; eles hoje são exemplos.
   Ainda não desaprenderam a copiar quem é forte ou  firme.
   (Como é possível, eu penso, que os que mais  imitavam são os mais imitados?)
Os meninos da minha escola me pareciam torpes.
   Mas eram de uma torpeza que eu tinha que achar  social.
   Cada um dedicava toda a sua originalidade a serem  invejados.
   Os outros, eu pensava com medo, serviriam apenas  para admirá-los?
   E admiravam para serem admirados, conheciam os  preços uns dos outros.
   Eu tinha apenas dúvidas, vivia de hesitações,  tremia de incertezas,
   e eles pareciam ter razão mesmo quando estavam  errados.
   Cada um fingia não poder ser desprezado pelos  outros.
   E eram homens, não mulherzinhas; não faziam coisas  de mulherzinhas,
   não gostavam de quem parecia mulherzinha e, talvez  para provar isso,
   falavam em comer as mulherzinhas, o que me parecia  coisa canibal. 
   (Como é possível, eu pensava, que estes meninos  asseados queiram devorar gente?)  
   Eles ensinavam às meninas encabuladas que eram elas  as mulherzinhas,
   ensinavam com as mãos, com os lábios, com os olhos. 
   E quem estivesse com uma mulherzinha sem beliscá-la
   tornava-se também mulherzinha, era contagioso,  parecia. 
   Hoje eu me pergunto onde estão os meninos maus da  minha escola. 
   Eles hoje estão casados com alguém que saiba como  ser uma mulherzinha. 
   E eles ensinam seus filhos e filhas quem deve  mandar e quem serve para admirar. 
   Ainda têm muito medo de, por distração, parecerem  mulherzinhas.
   (Como é possível, eu penso, que esses canibais  medrosos queiram esbanjar poder?) 
Os meninos da minha escola me pareciam desumanos.
   Mas eram de uma desumanidade que era um parâmetro  de humanidade.
   Batiam, brigavam, esbravejavam e gostavam de fazer  os outros
   apanharem, socarem e chutarem em um espetáculo de  porrada,
   esperado como o acontecimento que dignifica o dia.
   Contorciam-se para enxergar uma fresta da diversão  pura
   e se entretinham ainda mais quando corria sangue ou  quebrava algum osso.
   Ninguém queria estar sendo socado, estar sendo  esmurrado,
   mas dedicavam-se apenas a não serem os que apanham  jamais.
   Aprendiam nas rodas de pontapés que tinham que  anunciar porrada
   ou dar porrada. E todo o resto eram detalhes.
   (Como é possível, eu pensava, que estes meninos educados  gostem
   tanto de ossos partidos?)
   Eles contavam uns para os outros dos espetáculos  que deram,
   dos espetáculos que viram, e não importava que  mentissem,
   que contassem vantagens que não tinham: apenas  queriam olhares com medo.
   Hoje me pergunto onde estão os meninos maus da  minha escola.
   Estão rodeados de olhares com medo, sentados em  poltronas confortáveis,
   longe da escola. Mas fazem de tudo o que fazem ou  assistem
   a uma representação fiel das barulhentas rodinhas  de porrada.
   (Como é possível, eu penso, que gente que passou  anos uivando por sangue
   tenha crescido para ser respeitável?)
Os meninos da minha escola me pareciam bárbaros.
   Mas eram de uma barbárie que eu tinha que achar  civilizada;
   já sabiam que seus direitos eram diviníssimos
   e que quem não tinha esses direitos para sempre  adquiridos
   merecia um sacolejo de ombros ou insultos com  gargalhadas.
   Tinham um conhecimento vasto sobre como roupas e  modos
   revelavam quem devia mandar e quem devia se  humilhar.
   No fundo, sabiam tudo: no fim das contas valem  apenas os músculos.
   Eu tentava imaginar onde eles guardavam todas as  aulas
   que tínhamos sobre justiça, paz e respeito aos  outros
   que nunca eram longas demais para mim mas que  sempre eram improvisadas
   e sempre pareciam pouco importantes e sobre temas  menores.
   (Como é possível, eu pensava, que esses meninos já  saibam
   o que deviam aprender e o que devia parecer que  aprendem?)
   Nada ameaçava eles, nada importava a eles, eles  seriam poderosos
   quaisquer que fossem os princípios ou as regras dos  jogos.
   Eles me pareciam todos predestinados.
   Hoje me pergunto onde estão os meninos maus da  minha escola.
   Estão defendendo a civilização com os princípios 
   de sacolejos de ombros e demonstração de músculos
   que aprenderam bem na escola. Direitos e justiça
   eles deixaram nos cadernos da escola. E eles  mofaram.
   (Como é possível, eu penso, que a civilização  esteja na mão
   de quem deixou os melhores cadernos mofarem sem  serem lidos?)
Os meninos da minha escola me pareciam arrogantes.
   Mas eram de uma arrogância que eu tinha que achar  legítima.
   Eles tinham palavras cheias de ódio e  ressentimento,
   cheias de conotações obscuras, ditas com asco,
   palavras que todos temiam, ninguém entendia 
   e com as quais todos aprendiam a suspeitar.
   Antes de sabermos que as pessoas se desejavam
   e que os poderosos tinham o que desejavam,
   sabíamos que as putas eram tortas, os bichas  desprezíveis.
   (Como é possível, eu pensava, que algumas pessoas  possam ser,
   assim de cara, tão erradas?)
   Parecia que todos traziam um sinal de destino na  cara:
   estes foram feitos para galhofa, foram feitos para  se envergonhar.
   Pelos gestos contavam o que eram para todos com  precisão,
   em um código que eu não interpretava mas que os  outros
   compreendiam melhor do que compreendiam seus  pensamentos.
   Hoje me pergunto onde estão os meninos maus da  minha escola.
   Estão cheios de certezas e cobertos de pretensões  toleradas.
   Ainda se enojam com os gestos dos bichas, ainda se  acham melhores que as putas.
   Mas agora, convictos de que são admiráveis, eles  decidem a vida de todos.
   (Como é possível, eu penso, que os rabiscos nos  banheiros da escola exprimam tudo que temos que desejar?)
Publicado em 15/06/2010
Publicado em 15 de junho de 2010
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.
