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Cânone e poder na literatura feminina

Juliana Carvalho

Segundo o E-Dicionário de Termos Literários (2007), o termo cânone deriva da palavra grega kanon, que designa uma espécie de instrumento com funções de medida. Mais tarde, seu significado evoluiu para padrão ou modelo a ser utilizado como norma. Outra definição para cânone seria sua origem na tradição bíblica, designando historicamente um suporte de verdades e constituindo-se por um conjunto de textos globalmente compreendidos como verídicos, uma vez que encontravam em Deus seu autor e nas comunidades e na tradição a respectiva confirmação.

Porém, o mais importante para o conceito de cânone nos dias atuais é a ideia de seleção de textos ou indivíduos adotados como lei em uma determinada comunidade e que permitem a reprodução de valores e a imposição de critérios que possibilitem diferenciar o legítimo do ilegítimo, o permitido e o proibido.

Falar sobre cânone é sempre delicado e complexo. Em primeiro lugar, porque supõe discutir a identidade cultural de uma nação. Em segundo lugar, debater cânone compreende questionar tudo aquilo que o formou: os pressupostos, os valores e, naturalmente, as instituições que o sustentam. Essas instituições sempre procuram controlar o cânone, censurando os textos que o desafiavam; a história mostra inúmeros exemplos. Com o mesmo objetivo – manter sua estabilidade –, as instituições não hesitaram em premiar os textos que as apoiassem.

Qualquer dos mecanismos de eleição, tanto a inclusão como a exclusão, transforma o cânone em um registro parcial, que estanca os valores, interesses e antagonismos de uma ideologia. O cânone ocidental, por exemplo, assimilou facilmente valores masculinos, heterossexuais, brancos e cristãos; rechaçou as mulheres, os homossexuais, repudiou os membros de outras etnias, ignorou outras culturas e silenciou opções políticas que não estavam em vigor. Assim sucedeu com a literatura feminina na América, cuja questão está intimamente vinculada ao poder.

Os textos de determinada época não podem ser separados da ideologia vigente na sociedade da mesma época, e isso ocorre também com os textos literários. Até hoje, muitos cursos de literatura e cultura seguem centrados em autores do sexo masculino, brancos e mortos.

Por muitos séculos, os textos femininos foram vistos como secundários, marginais, apartados do cânone, representantes somente da produção de um grupo sem voz. Não havia lugar para esses textos no cânone de uma sociedade que tinha valores patriarcais, inspirados no poder do homem, seus gostos e preferências. Essa sociedade determinava o espaço da mulher somente dentro da casa, na cozinha ou cuidando de seus filhos, não permitindo que participasse das reuniões de homens, que saísse para as ruas e que participasse das decisões que dariam rumo ao grupo em que viviam. Não era costume que as mulheres fossem alfabetizadas; apenas umas poucas tinham acesso à escrita. Assim, a própria constituição da sociedade afastava as mulheres das letras, tornando escassos os textos femininos. Acerca disso, Constância Lima Duarte (1996, p. 25) acrescenta:

A educação da elite feminina do século XVIII resumia-se mais numa preparação mundana que em educação propriamente dita. Bastavam, para elas, aulas de catecismo, de costura, da arte de agradar, de como se compor bem e de como fazer referências. Mesmo ao longo do século XIX (...) perdurava ainda a noção de que elas eram inferiores intelectualmente e que, portanto, eram incapazes de pensar como os meninos.

Podemos incluir também nessa noção a capacidade para escrever, o fato de que não foram motivadas a tal coisa. Isso transforma os textos feitos por homens maioria em número. À pouca produção feminina restava a reclusão, o esquecimento, já que não representava os interesses da maioria detentora do poder.

Esse modelo canônico do colonizador perdurou, sem ser contestado, até os anos 1970, quando a voz dos movimentos das minorias começou a ser escutada, e esses grupos enfim tiveram a atenção da sociedade. O movimento feminista foi o primeiro a manifestar-se em oposição às regras do cânone e a denunciar a criação de personagens femininos sob visão machista, incapazes de representar fielmente a visão da mulher e representando uma falsa voz feminina. Assim, há uma ruptura com o discurso masculino para que a mulher possa criar personagens femininos verdadeiros, baseados em sua própria experiência.

Nas décadas que sucederam essa ruptura, foi possível perceber uma especial tendência das mulheres autoras em dialogar com o discurso masculino anterior. Assim, são abundantes os temas considerados femininos e domésticos, como as mulheres na cozinha ou mostrando a criação dos filhos como tema principal.

A mulher atual transcende os limites do lar, ingressou no mercado de trabalho e está presente nas grandes empresas. O poder não está mais centralizado nas mãos masculinas; passou também às mãos femininas. Ser mulher hoje já não é o mesmo que ser mulher nas décadas anteriores, e é fundamental que os textos femininos acompanhem essas mudanças. Segundo Luiza Lobo (1997,p. 22),

o cânone da literatura feminina se modificará muito se a mulher retratar vivências resultantes não de reclusão ou repressão, mas sim a partir de uma vida de sua livre escolha, com uma temática, por exemplo, que se afaste das atividades tradicionalmente consideradas “domésticas” e “femininas” e ainda de outros estereótipos do “feminino” herdados pela história, voltando-se para outros assuntos habitualmente não associados à mulher até hoje.

Assim, já verificamos diferenças dentro da própria literatura feminina, porém o mais razoável é que a necessidade da descoberta de uma identidade própria, mais semelhante à da mulher atual, leve as autoras a um segundo estado da literatura feminina, o que já ocorre nos textos mais recentes.

Na época atual, as instituições continuam a construir e a controlar o cânone literário. As academias, por exemplo, desempenham um papel fundamental nesse processo, já que os docentes selecionam as obras a estudar, produzem um corpus crítico sobre determinados autores e centram sua investigação em áreas específicas. Os críticos literários interferem na avaliação e divulgação das obras, sobretudo em periódicos de grande circulação.

Também as editoras contribuem para a seleção dos livros do cânone criando estratégias de divulgação que fazem da obra um produto para consumo. De qualquer maneira, parecemos caminhar para o fim do cânone como o conhecemos. Cada vez mais, textos de grupos distintos têm lugar na sociedade e se vive em uma época de modismos, na qual sempre há um grupo em evidência. Parece que chegou ao fim aquele cânone estabelecido a partir da visão limitada de um grupo ou de um único indivíduo que detém o poder, mas ainda hoje existe disputa pelo poder.

A literatura parece ser um espelho da sociedade, na medida em que reflete sua estrutura e organização. Alguns subgrupos sociais despontaram também na literatura, como grupos paralelos ao cânone principal. Com o intuito de fazer pronunciar sua voz na sociedade, surgiram então a literatura feminina e a literatura negra, que seguiram afastadas do cânone literário, assim como as minorias que as representam seguem afastadas do poder social. Isso se dá porque o cânone permanece, até hoje, intimamente vinculado ao poder. São muitos grupos e culturas em silêncio por séculos e que agora querem ser ouvidos.

Socialmente, a mulher tem sido a principal atuante no processo de revisão das normas canônicas. Sua luta chama a atenção dos novos críticos, que, utilizando argumentos como a discriminação das mulheres e das minorias étnicas, demonstram ser necessário rever o cânone e incorporar obras, autores e culturas antes esquecidas pela cultura dominante.

O melhor seria que essa ampliação do cânone considerasse a realização formal da obra e a capacidade de fazer-se compreender por outros povos, transpondo barreiras culturais, étnicas ou de gênero, pois limitar os textos a esses campos é restringir a literatura a um campo muito pequeno de visão, como aponta Constância Lima Duarte (1995, p. 23):

seria reduzir drasticamente a importância de Virgínia Woolf ou Clarice Lispector se considerássemos a literatura que produziram apenas como feminista, ou a de Lima Barreto como literatura negra, apenas porque os autores puseram em destaque uma luta específica.

Além disso, a existência de uma literatura feminina é discutida até hoje, o que faz necessário estabelecer outros parâmetros para a avaliação das obras.

Bibliografia

BRAVO, Rosa Maria Reyes. Identidad y subjetividad femenina. In: Mujer, creación y problemas de identidad en America Latina. Compilador: Roland Forgues. Merida: Editora de la Universidad de Los Andes, 1999.

DUARTE, Constância Lima. Estudos de mulher e literatura: história e cânone literário. In: Anais do IV Seminário Nacional Mulher e Literatura. Rio de Janeiro: NIELM, 1996.

LOBO, Luiza. A literatura de autoria feminina na América Latina. Acesso em 21 de novembro de 2007.

PFEIFER, Erna. Estereótipos patriarcales y autoafirmación de la mujer en la literatura latinoamericana. In: Mujer, Creación y problemas de identidad en America Latina. Compilador: Roland Forgues. Merida: Editora de la Universidad de Los Andes, 1999.

Publicado em 22 de junho de 2010

Publicado em 22 de junho de 2010

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