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Palpitante I

Cláudia Dias Sampaio

MATILDA, primeira carta

"Quero que minha escrita tenha o silêncio de um grito do ventre."

Sentada à mesa, Matilda pousa a caneta sobre a caderneta de anotações e derrama o olhar para o horizonte; na direção dele há os pássaros, a Central do Brasil, uma sorte de verdes árvores e um aroma de um dia que não morreu porque foi escrito. O desejo dela? Celebrar o encontro: palavras, pontos e linha. E como ela já não sabia mais de nada, quis brincar, voltar pra antigamente; assim começou o desenho:

RJ, 19 de março de 2010.

Querido mío,

aqui estou tentando fazer o que vc me sugeriu: observar, imaginar e fazer o que é possível. Não é fácil, mas o que é? Essa mania imperiosa de querer fazer logo uma obra-prima, e achar que sei de tudo. Como aceitar e desfrutar o desconhecido? Não saber aonde isso vai me levar? Nada preconcebido para este desenho, e quero ficar neste lugar. Já estou te ouvindo, seguindo teus conselhos, mas sou medrosa, não sei nadar, eu te falei que não sei nadar. E por agora este é o ponto desde que posso começar. Te quero desenhar primeiro algo de muito palpável, com começo meio e fim, uma história reta e terna. Nela, sim, posso controlar cada evento e não sofrer da angústia de não saber o que vai nos acontecer. Com carinho, da tua Matilda.

MATILDA, carta 2

Gabriel, meu eleito.

Hoje de manhã, no ponto de ônibus, encontrei a Estela, amiga de escola. Naquele tempo, a gente usava saia azul marinho, com quatro pregas, duas atrás e duas na frente, blusa de tergal, meias brancas e um sapato preto de verniz. Estela sempre teve mania de querer ganhar dinheiro, então vendia umas empadas de queijo na hora do recreio. Um dia, não esqueço, a mãe da menina mais gorda da sala, Odelita, começou a falar mal das empadas da Estela. Dizia: "meu Deus, quem tem coragem de comer essas empadas sujas?". E eu, cá com meus botões da blusa de tergal, pensava: "que maldade colocar o nome da filha de Odelita, deixar ela tão gorda tão gorda e ainda falar mal da empadinha da minha amiga". Ora!

Bem, nesse dia Estela ouviu o comentário maldoso que a mãe de Odelita disseminava entre as outras mães que estavam no pátio esperando por seus filhos. Achei que ela fosse chorar ou xingar aquela chata, mas nem deu tempo. Quando ela se deu conta já não havia nada na pequena caixa onde suas empadinhas se acomodavam em camadas, todas vendidas. Adorei reencontrar Estela e ver em seus olhos ainda o brilho daquela caixinha vazia.

Logo te escrevo mais.
Com abraços ternos,
Matilda

MATILDA, carta 3

Defeito na máquina –

Meu cada vez mais amado desconhecido:

Hoje roupas sujas gritavam de cima do tanque, acumuladas de um mês inteiro, abandonadas, assim como todo resto da casa e do meu corpo entregues à falta que assombra. Não entendo o porquê do sono, e o vento da ilha a te carregar justo quando estavas tão perto de casa? Também se chegasses logo não teríamos o que contar. Tampouco existiriam as rendas de bilro que daqui acaricio sobre os ombros de Sofia, incríveis desenhos nos vazios. E ainda o exercício do manejo com os pretendentes: tudo isto experiência, meu caro, que me leva agora a deitar as roupas na margem deste rio claro e a lavá-las, cuidadosamente, como as valentes mulheres que choram por seus homens e tecem fios secretos, à luz dos antigos bordados de ausências. Da tua, Matilda

MATILDA, carta 4

Rio, 21 de abril de 2010

Ai, Gabriel, hoje cedo abri as janelas e um sol incrível amaciou os tristes pensamentos que agora me ocorrem neste dia, chegam com este vento carregado das ruínas de há três séculos: um homem enforcado, esquartejado e com a cabeça posta numa gaiola no centro de Vila Rica! Não, Gabriel, é o império dos miseráveis! Nenhum livro didático dá conta desse drama. E bem sabemos que a tarefa de decorar fatos e datas a que fomos fadados na escola ajudou, e muito, a fazer de Tiradentes e da Inconfidência mais um compartimento da história do Brasil, em arquivo morto e enterrado. Ah, mas os pedaços desse homem ainda estão aqui dissolvidos nesta clara manhã, como uma nova chance para sonhos de transformação. Até breve, querido. Matilda

MATILDA, carta 5

Por que me chamo Matilda?

Gabriel: finalmente volto a lhe escrever. Sigo fiel às palavras que trazem a fibra do vivido, mas, com a exceção do Ungaretti, que escreveu sua obra entre as trincheiras da Primeira Guerra, acho mesmo que, do centro do vulcão, as breves anotações na caderneta florida já são um tesouro. E por que te escrever mais cedo? Com tantas coisas melhores pra fazer quando estamos juntos...  Agora sim, em sua ausência, volto à caderneta.Poderia recolher os fragmentos do que capturei dessa nossa experiência de amor, dos presentes belíssimos às frases trêmulas dos dias mais terríveis. E foi tanto que v. me falou, me perdoe, mas só agora posso te ouvir: porque o som das ondas que tomavam conta da minha barriga, e aquela dor (impossível de ser dita) parou de gritar. Acabou a guerra, meu querido, restaram as cinzas e o silêncio dos canhões.

E meu nome.

Sabe, descobri hoje nas coisas de minha mãe uma carta que ela escreveu à minha avó 15 dias após eu ter nascido. Meus pais não estavam no Brasil, tinham escapado dos militares antes do pior, e assim nascemos eu e meu irmão em solo italiano. E foi de lá que mamãe escreveu a carta que, não sei por qual motivo, nunca enviou à minha avó. Nela vejo entrelaçada uma outra Matilda. Até então, nas histórias de família que ouvi, escolheram me chamar assim por causa da canção romântica Où vas-tu Mathilda, que a Jeanne Moureau cantou nos anos sessenta. É bela, doce e exata, a preferida de mamãe. Mas sempre me incomodou somente essa referência, o que pulsa aqui não combina com o refrão reticente da Moureau. Algo faltava para se entrelaçar nesta fibra. E veio a carta esquecida na gaveta: iluminou meus dias daqui por diante. Há uma outra canção! Mathilde, de Jacques Brel. E é dessa Mathilde maldita, que faz um homem implorar para que suas mãos não tremam, que descubro de onde saem as lavas deste vulcão.

Obrigada, meu querido. Espero por suas boas notícias.

MATILDA, Carta 6

Petrópolis, 2 de junho de 2010.

Por que Gabriel?

Meu querido, me encantou a beleza de suas palavras, que me chegaram em dia de nublada alegria. Adoro quando v. decide vir com o melhor dos seus eus. Foi realmente uma prova de delicadeza e de amor v. também ter me contado a história do seu nome, ainda mais por envolver sonhos. Te amo com fervor: v. me deu este brinquedo, presente belíssimo e, com ele, nunca mais estou sozinha.

p.s.: quando eu chegar aí, vamos passear de bicicleta e tomar banho de mar?

Além do vulcão, tem praia aí na Ilha do Fogo?

p.s. 2: ah, vim passar o feriado de Corpus Christi aqui em Petrópolis, logo mais te escrevo algo sobre esta cidade que encantou o imperador D. Pedro I.

Muitos beijos e enorme saudade de nossos dias azuis,

da tua Matilda.

MATILDA, carta 7

De amor e desamor

Pois sim, Gabriel, o feriado de Corpus Christi já se foi: não tive repouso, o meu arde da saudade do calor dos teus abraços fortes. Tenho vontade de nada. Por que contar sobre o passeio de charrete, a visita ao Museu Imperial? Distrações dos dias sem você. Nada, Gabriel, nada disso importa agora. Aqui não tem filosofia nem paisagens de fora. Petrópolis é este nada congelado pelas lágrimas frias da lembrança do que teu cheiro produzia em mim.

Conheci uma mulher que passou sete anos escrevendo cartas para o seu amado. Eles nunca se encontravam, imagina só! Ela dizia que era feia, por isso ele não a queria, mas era mentira, Gabriel, no fundo ela sabia que nem com todo amor e ternura, demasiados, que ela tinha por ele, ela poderia lhe dar o que ele queria: felicidade. É o que todos queremos. Talvez ela fosse feia mesmo, sei lá, e acho que sou capaz de aceitar, mas definitivamente não entendo como amor e ternura não dão em felicidade.

Perdoe esta carta tão louca.

Mas acho que já fiquei tempo demais nesta cidade e daqui não consigo receber notícias tuas, isso atormenta meus pensamentos. Estou partindo de volta.

Com carinho,

sua M.

Publicado em 22/06/2010

Publicado em 22 de junho de 2010

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