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Vida artificial

Alexandre Amorim

Quando era criança, queria ser cientista. Achou no quarto de empregada uma coleção antiga de livros de eletrônica e, antes dos dez anos de idade, já sabia dar choque no irmão mais velho usando pilhas e fios desencapados. Ganhou brinquedos que simulavam laboratórios, misturou soluções químicas, chorou com o cheiro do enxofre, riu das moléculas de açúcar se separando pela água, no microscópio. Quando começou a namorar, ainda falava de química e do sistema circulatório do corpo humano, mas as meninas achavam estranho ou bobo. Aos poucos, se esqueceu da ciência, até que, com quinze anos, ganhou uma coleção ilustrada de Mitologia greco-romana. Não entendia muito bem como aqueles deuses faziam o que bem entendiam com a humanidade. Os homens eram usados, enganados e castigados por Zeus e sua trupe. Até que chegou ao capítulo sobre Prometeu.

A expressão “brincar com fogo” ainda repercutia na cabeça dele como uma coisa infantil. Associava brincadeiras com fogo com fazer xixi na cama, e a voz de sua mãe aparecia em sua cabeça com conselhos para que ele não se tornasse piromaníaco. Prometeu brincou com fogo e foi castigado. Roubou o fogo dos deuses e acabou tendo o fígado comido diariamente por um pássaro enorme. Ele ainda não conseguia entender bem aquela fábula, mas simpatizava com o sujeito que havia desafiado os deuses e ajudado a criar os homens.

Até que cresceu, leu Frankenstein, estudou muito para passar no vestibular e cursou seus seis ou sete anos de Medicina. Aí sim, já sabia que roubar o fogo divino era uma maneira de ser divino. Resolveu se dedicar à genética, fez mestrado, doutorado, pós-doc, tornou-se um respeitado homem das ciências. Sua esposa não o achava bobo, mas começou a achar estranho que ele passasse noites em claro no laboratório da faculdade. Ele aparecia em casa com olhos inchados, barba malfeita e cada vez mais magro. Dizia que estava criando a vida artificial e a mulher começou a chamá-lo de Frankenstein. Eles riam, ele voltava para o laboratório da faculdade e ela foi ficando cada vez mais cansada de ficar sozinha e acabou indo embora.

Aí, sim, ele não saía mais do laboratório. As pessoas pensavam que ele vivia entre cabos elétricos e cadáveres, tentando ressuscitá-los com choques, mas não é bem assim que se trabalha com genética ou vida artificial. Apesar da cara de cientista maluco, ele andava com um jaleco branco bem arrumado, em um laboratório muito limpo e organizado, cheio de tubos de ensaio, microscópios poderosos e células que precisavam ser manipuladas da forma mais delicada possível. Seus colegas admiravam seu esforço em fazer uma célula daquelas – umazinha que fosse – se transformar em algo novo. Ele dormia, acordava, tomava café, tomava banho, andava, lia jornal, falava com as pessoas, ligava para a mãe, ia até o cinema. Mas não deixava de pensar naquela celulazinha que ia ser sua maior descoberta, ia ser seu fogo particular: a célula que ele ia criar sozinho, sem ajuda divina.

E voltava ao laboratório, manipulava mitocôndrias, nucléolos, mexia com o genoma da célula, mas não conseguia fazer com que ela se tornasse uma nova vida. Ele voltava para casa triste, dormia bem pouquinho e acordava mais triste ainda. Mas não desistia.

Até que, um dia, sua equipe veio com uma notícia estranha: a última célula, que ele havia tirado de um caramujo e em que havia inserido o genoma de uma pulga, saíra pulando e dando um show de saltos ornamentais no microscópio. Caramujos são seres muito sérios, bisonhos mesmo, e jamais dão shows ao vivo, especialmente no microscópio, onde tudo fica muito maior e mais fácil de ver. Era a prova de que aquela célula de caramujo tinha se tornado uma nova célula. Nosso cientista passou meses comemorando, dando entrevistas, viajando pelo mundo, até que voltou ao laboratório, porque alguém perguntou: “mas isso não é criar vida, é só trocar uma vida por outra, não é?”. Ele tinha que admitir que sim.

E passou mais um tempo enorme até que descobriu como programar um genoma e como inserir esse genoma programado numa célula qualquer. Dessa vez, ele usou a célula de uma banana, colocando um genoma programado para cheirar a morango e para falar como um italiano. Ele mal conseguia entender o que aquela célula dizia, porque não entendia italiano, mas sabia que era italiano e que sua experiência era um sucesso. E voltou a comemorar, dar entrevistas, viajar pelo mundo. Alguns diziam que aquilo ia contra a religião, que não se pode criar vida sem a ajuda de Deus, mas ele dizia que podia, sim, que ele tinha o fogo da vida nas mãos. E provava, botando a célula para as pessoas sentirem o cheiro de morango e ouvirem aquele italiano com sotaque de Milão. Ele estava feliz com sua célula. Tinha criado vida.

Mas a vida traz surpresas para todo mundo. A surpresa que a vida trouxe para ele foi o mesmo sujeito que tinha feito aquela pergunta chata, anos antes. Em uma palestra com cheiro de morango e feita em italiano, que ele aprendera em um cursinho rápido, o mesmo sujeito apareceu e perguntou: “mas você só trocou o genoma, né? Criou um genoma novo, mas a célula já existia, não foi?”. Ele achou que o sujeito tinha implicância com ele, mas foi obrigado a concordar. A célula já era viva antes de ele mexer nela. Ele podia se orgulhar de ter criado um genoma e feito uma célula funcionar do jeito que ele queria, mas não podia se orgulhar de ter criado vida. Voltou ao laboratório e ficou pensando se podia mesmo disputar com Deus, se é que ele existia. E ficou pensando que, se Deus não existia, qual era então o segredo de criar a vida?

Aí o cientista se lembrou de que não lia um romance ou um bom livro de contos ou poesia desde que entrara para a faculdade de Medicina, há décadas. Comprou a coleção completa de poemas de Fernando Pessoa. Passou uns meses lendo. Sua equipe ficava preocupada de ele não ir mais ao laboratório, mas sabia que ele era dado a excentricidades. Deixou que ele lesse os poemas e ficasse quieto por um tempo. Ele merecia mesmo descansar.

No primeiro dia da primavera deste ano, ele apareceu no laboratório. A equipe ficou feliz, fez uma festa para ele e perguntou qual ideia nova e genial ele tivera para desafiar os religiosos e provar que o homem pode criar vida. Ele pegou o livro de poemas de Pessoa e leu:

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassossegos grandes.”

E aí riu com cara de que estava sossegado e disse: “criar a vida artificial é nosso objetivo, mas até hoje nos preocupamos em desafiar deuses que nem sabemos se existem ou se são frutos de nossa imaginação. Vamos deixar que a vida natural seja natural, não importa se feita por deuses ou não. A vida é maior do que isso. E maior do que nós. Nós, que somos vida, tentemos imitá-la e recriá-la. Criar em laboratório a vida natural não é lutar contra divindades, é lutar contra sua graça. E não vale a pena”.

Publicado em 22/06/2010

Publicado em 22 de junho de 2010

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