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O desvio da norma como estilo em Adoniran Barbosa
Beatriz Fontes
Professora e jornalista
Juliana Carvalho
Professora e redatora
Muitas são as possíveis definições para aquilo que se costuma chamar, simplesmente, de Estilística. Definições, estas, mais abrangentes, ou mais restritivas; definições que se somam ou que se opõem umas às outras. Importa apenas que fique claro o que determinado autor considera Estilística em seu texto, qual a definição que está sendo usada naquele momento. Sendo assim, que fique claro para o leitor que o termo Estilística no presente texto está sendo empregado no seguinte sentido: A Estilística como desvio da norma. Ou seja, aqui serão tratadas somente as características textuais que impliquem num desvio do padrão gramatical culto da Língua Portuguesa, transgressões intencionais com o objetivo de criar um estilo.
Para isso, nada melhor que escolher um texto de Adoniran Barbosa. Pouca gente sabe, mas o compositor de Trem das Onze sequer se chamava Adoniran. Seu nome era João Rubinato e, antes de se tornar compositor e cantor, trabalhava como ator no rádio, criando tipos. Adoniran Barbosa era um desses personagens. Com o passar do tempo, João Rubinato foi incorporando cada vez mais esse tipo, de forma a quase confundir-se com ele.
Sabendo disso, fica mais fácil compreender o porquê de boa parte de suas músicas fugir a um registro formal da língua. Afinal, Adoniran procurava cantar o povo de sua cidade. Observem a letra de Samba do Arnesto:
Samba do Arnesto
Adoniran Barbosa
O Arnesto nos convidô prum samba, ele mora no Brás
Nóis fumo e não encontremos ninguém
Nóis vortemo cuma baita duma reiva
Da outra veiz nóis num vai mais
Nóis não semos tatu!
Outro dia encontremo com o Arnesto
Que pidiu descurpa mais nóis não aceitemos
Isso não se faz, Arnesto, nóis não se importa
Mais você devia ter ponhado um recado na porta
Anssim: "Ói, turma, num deu prá esperá
A vez que isso num tem importância, num faz má
Depois que nóis vai, depois que nóis vorta
Assinado em cruz porque não sei escrever Arnesto"
Letras como a de Samba do Arnesto são ricas em exemplos e retratam, fielmente, a linguagem típica do Bexiga. Adoniran usou deste artifício para contar, de forma singela, pequenas tragédias cotidianas das favelas e dos subúrbios de São Paulo. Muitas vezes sem muito conhecimento de causa, como no caso do já citado Trem das Onze, quando alguém lhe perguntou por que havia escrito “moro em Jaçanã” e não no Jaçanã... E ele simplesmente respondeu que nem sabia onde é que ficava esse lugar!
No caso de Samba do Arnesto, suas incorreções gramaticais começam já pelo título, já que o nome do personagem Arnesto é uma derivação popular de Ernesto. É de conhecimento geral que é muito comum às classes sociais menos favorecidas trocarem algumas letras ao registrarem seus filhos (por desconhecimento do nome dito correto ou por mera criatividade). É assim que Ernesto vira Arnesto, portanto. Além disso, chama a atenção no samba os tempos verbais utilizados. Todos remetem ao emprego popular, rico em “fumos”, “encontremo”, “fiquemo”, “vortemo”... O curioso é que quase todos respeitam de algum modo a formação do plural, há uma certa conjugação (mesmo que capenga). A únicas exceções seriam “(...) nóis num vai mais” e “nóis num se importa”. Também é muito criativo o emprego de “ponhado” ao invés de “posto”, apropriando-se da conjugação de um verbo regular como colocar” ou “botar”. É sempre interessante lembrar que esse é um recurso muito comum em crianças ainda nas primeiras etapas da alfabetização...
Outra característica que dá sotaque ao texto é a troca do fonema /l/ pelo /r/ em algumas palavras, como em “vortemo” ou “descurpa”. Ou ainda, a colocação do “i” entre a vogal e o “s” final das sílabas (como em “nóis”, “mais” – no último verso da primeira estrofe, “veiz”). Ou o “anssim”, “reiva” e “pidiu”... São várias as marcas da oralidade neste samba. O curioso é que, com exceção do já citado “anssim”, não há registro de grandes erros ortográficos (talvez o acento em “prá”). Isso só vem a reforçar o fato de Adoniran não ser de fato aquilo que aparenta. Ainda que ele declarasse: pra escrever uma boa letra de samba, a gente tem que ser, em primeiro lugar, anarfabeto.
Tudo que foi escrito até aqui tem por intuito mostrar o quanto o desvio da norma pode ser importante para a formação de um estilo de escrita. Inegavelmente, as músicas de Adoniran não teriam tido a mesma repercussão se tivessem sido escritas em um português castiço, cheio de floreios de linguagem. Suas músicas não representariam aquilo que representam: o povo. Mesmo que a intenção de seu autor não fosse a de denúncia social e, sim, a de levar entretenimento a esse povo do qual faz parte. Fazê-lo rir. Eis o grande objetivo de Adoniran: o humor.
Bibliografia:
MARTINS, Nilce Sant’anna. Introdução à Estilística a expressividade na língua portuguesa. 3a. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2000.
FARIA, Arthur. Adoniran Barbosa. Minibiografia presente na seção “Artistas do Samba & Choro”, na “Agenda do Samba & Choro” (www.samba-choro.com.br).
Publicado em 29 de junho de 2010
Publicado em 29 de junho de 2010
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