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Turmas indisciplinadas: uma questão de ponto de vista

Mariana Cruz


Os professores podem reclamar de tudo: do baixo salário, do excesso de trabalho, dos alunos bagunceiros, do diretor autoritário, mas tem uma coisa de que eles nunca poderão se queixar: de tédio. Para quem não é chegado a uma rotina, gosta de enfrentar desafios, superar obstáculos (desculpem pelas sentenças lugar-comum), ser professor é a profissão ideal.

Assim como ocorre no teatro, onde os atores vivem repetindo nas entrevistas que uma apresentação nunca é igual à outra, o mesmo ocorre em sala de aula. Cada aula é única. Cada vez que o professor adentra a sala de aula é um novo acontecimento. Seja porque mudam os espectadores, quer dizer, os alunos, seja pelo estado de espírito do professor, que pode se alterar de uma aula para a outra. Mesmo que ele dê a mesma aula no mesmo dia, elas terão muitas coisas diferentes entre si: o professor pode se demorar mais em um ponto, não comentar outro ponto, criar novos exemplos para melhor explicar o que pensou ter ficado obscuro ou subtrair algo que ficou redundante, pegar emprestado uma piada de um aluno (como os “cacos” nas peças teatrais que são incorporados ou não à encenação). Prova dessa imprevisibilidade é que existem aulas que funcionam maravilhosamente bem em uma turma e em outra, mesmo que seja uma turma considerada atenta, não desperta o menor interesse. Tal semelhança com o teatro para por aqui, pois em termos de plateia, por mais que no mundo das artes cênicas a interatividade esteja em alta, isto é, a tal da extinção da quarta parede esteja cada vez mais em voga, nunca será como na sala de aula, onde o aluno é também diretor e ator de espetáculo. Ele também cria as cenas. Ele também escreve o roteiro junto com o professor. Às vezes uma mera dúvida de um aluno muda todo o curso da aula.

A teoria de Heráclito (o filósofo pré-socrático que, para explicar seu pensamento de que tudo muda o tempo todo, diz que não se pode mergulhar duas vezes no mesmo rio porque novas águas caem sobre aquele que mergulha) pode ser aplicada ao dia a dia do professor: ele nunca dá duas vezes a mesma aula porque está sujeito a variáveis intrínsecas e extrínsecas que impossibilitam que isso ocorra. A própria turma se modifica o tempo todo, alunos faltam, alunos abandonam os estudos (principalmente nas escolas públicas), alunos mudam de turma, de escola. Cada uma dessas ausências modifica a relação com a turma. Além disso, há os fatos inesperados que ocorrem. Por vezes acontece algo com aquela turma cujo professor tem ótima sintonia, um desentendimento com um aluno e tudo cai por terra. Ou aquela turma tida com bagunceira e indisciplinada, quando bem direcionada, pode fazer com que a aula se torne dinâmica e interessante. Cabe ao professor tentar reverter ou não a situação, pois nem todos têm paciência ou disposição para tentar melhorar a lida com a turma. Como um professor de português, amigo meu, que é radical na lida com as turmas indisciplinadas. Ele tenta conversar uma vez, se não tiver melhora ele “corta o mal pela raiz”, não tenta a menor aproximação: chega na turma, escreve no quadro, explica a matéria e “tchau”, nada de gracinhas, sorrisos e simpatia com os alunos.

Este ano peguei uma turma do terceiro ano (do ensino médio) cujos alunos falam sem parar, riem de qualquer besteira, levantam toda hora para fazer não sei o quê. As primeiras aulas foram realmente estressantes, saía rouca. A matéria estava sempre atrasada em relação à outra turma da mesma série (onde eu também dou aula no mesmo dia). O motivo de tal descompasso era claro: gastava parte do tempo de aula pedindo atenção, silêncio, discutindo a postura dos alunos, esperando-os pararem de rir das gracinhas que eles soltavam em voz alta (confesso que por vezes tinha de me controlar para não rir de tais piadinhas infames). Esta situação começou a me incomodar a tal ponto que quando ia chegando a hora de dar aula para a tal turma, começava a ficar sem paciência, torcendo para que algo acontecesse e não tivesse aula, sentia-me quase como indo ao dentista. Mas a ida ao dentista resume-se a uma vez por ano (sei que deveria ser de seis em seis meses, mas ...) e meu encontro com a turma é semanal. Desse modo, tinha que arrumar uma solução para não passar o resto do ano naquele estado. Diante dessa minha Tensão Pré-Aula, decidi tomar certas medidas para amenizar minha rejeição em relação a tal turma. Primeiro ponto: observar quem eram realmente os alunos bagunceiros, isto é, os estopins da balbúrdia, como era o rendimento deles, a disposição deles em sala de aula e após os dados coletados traçar um caminho a ser seguido (no melhor estilo estrategista de guerra). Mas nem precisou de toda essa sofisticação. Qual não foi minha surpresa logo nas primeiras aulas como dublê de professora-investigadora ao constatar que o grupo restringia-se a quatro alunos (parecia que eram uns oito) e o restante era apenas a claque (que não deixa de ter sua parcela de culpa na bagunça, pois é o alimento dos bufões). Constatei também que todos os quatro faziam os trabalhos pedidos e que suas notas não eram ruins (também não eram maravilhosas). Ao prestar atenção no conteúdo das suas gracinhas, percebi que sempre tinham a ver com que estava sendo dito em sala de aula, ou seja, eles prestavam atenção na aula, mas eram espalhafatosos, expansivos e, além disso, eram vizinhos, o que significava que tinham uma intimidade grande e, inevitavelmente, traziam tal relação para dentro da sala. Pude perceber mais claramente a tal forma torta de participação nas aulas quando comecei a trabalhar um texto sobre indústria cultural. Na outra turma pedi para os alunos alternarem a leitura em voz alta e, vez ou outra, eu interrompia para explicar uma parte um pouco mais complexa, logo depois escrevi umas questões no quadro e pedi para que se reunissem em grupos de três para respondê-las enquanto eu ia de grupo em grupo tirar dúvidas e auxiliar no desenvolvimento das respostas. Tudo fluiu tranquilamente. Na turma dos acelerados, mal deu tempo de terminar de ler o texto. Todo mundo queria falar ao mesmo tempo, debater o assunto, dar exemplos para mostrar que haviam entendido. Foi quando fiz uma rápida comparação entre as duas turmas: a primeira é mais calma, mais compenetrada, mais obediente, o que não significa dizer que é melhor do que a outra. A outra é mais caótica, barulhenta e, invariavelmente, fica com a matéria atrasada em relação à primeira, por outro lado, é mais questionadora, mais comunicativa, mais crítica e mais descontraída. Eles interrompiam toda hora o texto porque não concordavam com o que estava sendo dito, davam exemplos tirados da cabeça deles, perguntavam-me o que eu achava. Aí um começava a contar uma longa história que havia acontecido com ele sobre o assunto e pelo jeito engraçado e espontâneo com que fazia seu relato, todo mundo caía no riso. E a algazarra estava formada. Concluí que a intenção deles não era atrapalhar a aula. São de fato barulhentos, porém, muito mais por serem ansiosos, afoitos, exibidos e por quererem participar a todo momento da aula, a ponto de não me deixarem concluir uma frase. O que pode ser algo bastante positivo se bem trabalhado. Lembrei-me que logo no começo do ano resolvi passar o filme “Sociedade dos poetas mortos” para dar início a uma discussão sobre educação e liberdade. Reuni as duas turmas na sala de vídeo. Dei diversos avisos para que não fizessem barulho, caso contrário encerraria o filme no ponto onde estivesse. Tudo correu bem até que, ao final do filme, quando acontece a cena clássica dos alunos subindo, um a um, em suas mesas como uma atitude de apoio ao Mr. Keating, comecei a escutar umas risadinhas abafadas vindas do fundo da sala, quando olho para trás, estão os quatro elementos de pé em cima das suas mesinhas fazendo a mesma expressão solene que os rapazes do filme. Não tive como segurar o riso. Tal atitude ilustra bem a atitude deles em sala de aula: eles sabem o que está acontecendo, participam sempre de forma exagerada, querem tomar parte da cena o tempo todo. Pois, por mais bufa e caricatural que tenha sido a atitude deles, mostra que estavam prestando atenção no filme. Juntando as pecinhas, vi que a zorra deles não é desafiar, constranger o professor ou aparecer gratuitamente, é a forma deles se colocarem nas aulas.

Depois de praticamente um semestre com eles, vejo que há muita coisa para ser trabalhada em nossa relação: as aulas expositivas ainda são difíceis de serem dadas, entretanto, as aulas em que lhes são pedidas tarefas, trabalhos em grupo, debates, apresentação oral, criação coletiva de textos, a despeito dos altos decibéis, têm funcionado bem. Além disso, passei a dar-lhes funções: peço para um deles fazer chamada, para o outro distribuir e recolher os textos e trabalhos da turma, para lerem em voz alta os textos, a escreverem as questões no quadro e outras tarefas que surjam. As aulas têm melhorado e tenho conseguido manter o mesmo ritmo nas duas turmas. Claro, que com essa turma mais agitada é sempre mais difícil. A aula acaba se estendendo um pouco mais. A turma continua sendo barulhenta, mas com essa distribuição de funções houve uma grande melhora, claro que não virou uma turma exemplar, mas a Tensão Pré-Aula, que me acometia antes de entrar na turma, sumiu de vez. Passei a gostar de dar aula para eles e não me privo de rir das piadas infames.

Isso me serviu de lição para perceber que, por vezes, com aquele aluno ou com aquela turma que parece não ter jeito, em vez de ser vista como antagonista, pode-se usar a própria energia dela para modificar a situação. O aluno que gosta de aparecer pode ser um grande leitor da turma, a aluna que gosta de desafiar pode ser uma grande aliada nos debates.

Neste caso, é inevitável lançar mão de mais um lugar-comum: se você não pode ir contra eles, junte-se a eles. Pode ser bom para todos.

Publicado em 29 de junho de 2010

Publicado em 29 de junho de 2010

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