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Bens comuns e bem viver

Cândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

A crise climática, de algum modo percebida pelas mais diferentes pessoas a partir de seu cotidiano, virou senso comum. Com isso, vivemos um daqueles momentos raros da história humana em que é possível instaurar um debate sobre os próprios fundamentos do nosso modo de vida. Basta extrair do senso comum o bom senso transformador, no exato sentido que lhe deu Gramsci falando da constituição de movimentos irresistíveis de transformação com capacidade de conquista de hegemonia na sociedade – reconhecimento e convencimento político e cultural da legitimidade e justeza da causa por amplos setores no interior da sociedade civil, o berço da cidadania.

A civilização dominante, em que a riqueza de um povo é medida pelo ter sempre mais e mais bens, pela renda per capita, pela acumulação e crescimento do PIB, foi feita a pau e fogo, literalmente, durante alguns séculos da recente história humana. Conquista e colonização, com escravidão, de povos inteiros, Revolução Industrial e um modo de vida baseado no produtivismo e consumismo sem limites. Imperialismos e guerras, mudando de mãos e territórios, foram se sucedendo na medida da necessidade, para garantir a dominação da tal civilização até hoje. Com a globalização capitalista das últimas décadas, ela virou referência para praticamente toda a humanidade.

Apesar do seu fascínio, conquistando corações e mentes quase sem fronteiras, o fato é que o estilo de vida desta civilização tem a exclusão social e a destruição ambiental como pressuposto incontornável. Daí a importância do senso comum sobre a crise ambiental. Começa a surgir a consciência de que assim não dá, o planeta não suporta. Seriam necessários cinco planetas para a humanidade inteira (os sete bilhões que somos) ter o nível médio dos norte-americanos. Pior: o tal footprint – a pegada ecológica aponta que o planeta nem tem recursos para prover a humanidade inteira se o padrão fosse a média brasileira. Ou seja: definitivamente, assim não dá. O jeito é mudar. Mas eticamente não dá para salvar o planeta e esquecer a humanidade. Como conciliar agenda da justiça social e da justiça ambiental? Eis a grande questão para a cidadania e a democracia. Este é o bom senso a extrair como agenda transformadora do momento histórico que vivemos.

Precisamos mostrar a própria crise de civilização que está por trás da crise climática. Temos que começar questionando os princípios e valores que embasam a ideia da qualidade de vida produzida pelo produtivismo e consumismo da atual civilização. Mais: temos que reconstruir o elo perdido com a biosfera e a ética, que a ciência e a tecnologia romperam. É indiscutível o enorme poder de domínio da natureza e da vida da ciência e tecnologia materializadas em meios de produção e na industrialização de todos os setores da atividade humana. Mas seu avanço se deu às custas da natureza, usando-a de forma destrutiva, não sustentável, em termos ambientais e em termos sociais. Esta civilização intensiva em carbono e matéria está provocando o desastre climático. Precisamos começar por descarbonizar, desmaterializar, relocalizar a economia – produzir aqui, com as possibilidades daqui, para consumir aqui. Trata-se de parar de buscar o crescimento a todo custo e voltar-se mais à felicidade humana, reencontrar-se e reinserir-se como parte de toda a vida natural e do seu ciclo regenerativo. Estamos diante de um imperativo ético, da vida no planeta, de toda a vida, desta e das gerações futuras. A condição é sair de uma civilização do ter e acumular e buscar o bem viver, com todos os direitos humanos para todos os seres humanos, respeitando os direitos da própria mãe natureza, patrimônio comum da vida.

Essa mudança de mentalidades e práticas traz ao centro da questão os bens comuns, os bens que são de toda a coletividade. O bem viver tem como pressuposto o compartir entre todos e todas os bens comuns, como condições mesmas da vida. Organizar a sociedade em torno dos bens comuns é revalorizar a coletividade como condição da própria sustentabilidade. Cabe à coletividade zelar pelo acesso de todos e pela conservação e uso sustentável de seus bens comuns. Mais: é na participação em igualdade de condições de todos os integrantes da coletividade, democraticamente, que a gestão de seus bens comuns torna-se garantia de manutenção de seu caráter de bens comuns e do bem viver coletivo. Estamos diante de uma junção fundamental entre bases da vida e democracia, entre justiça ambiental e justiça social, com participação ativa da cidadania.

São bens comuns o que recebemos como dons da natureza: a água e a chuva, as nascentes, os rios e os mares, os ventos e o sol, o clima e a atmosfera como um todo, a biodiversidade, os solos e sua fertilidade, os minerais. A lista dos bens comuns naturais é imensa, e o modo de acesso e uso deles é questão fundamental da qualidade de vida, com sustentabilidade e justiça, na perspectiva do bem viver. São condições naturais da própria vida. Alguns são finitos, como os recursos minerais – entre eles o carvão mineral, o petróleo e o gás, fruto de decomposição de matéria orgânica ao longo de milhões de anos. Outros são em estoque dado, como a água. Outros, como o sol e os ventos, são recursos ilimitados. Acontece que os bens comuns naturais, como patrimônio de toda a humanidade, estão desigualmente distribuídos no planeta. Isso marca as possibilidades e as diferentes culturas dos povos. Mas impõe uma questão ética e de justiça: como compartir entre todos e todas os bens comuns naturais? Um absurdo inventado pela humanidade e particularmente expandido pelo capitalismo capturou grande parte dos bens naturais como propriedade de indivíduos, grupos e povos. Na origem, propriedade dos mais fortes, virada direito garantido pelas leis e tribunais.

Alguns bens comuns são únicos, como as belezas naturais e os grandes ecossistemas que regulam o próprio clima na Terra, como as grandes florestas tropicais, as estepes, os polos, as cordilheiras geladas. Sua divisão ou mau uso pode levar à destruição, afetando o conjunto da vida e da humanidade. Sua gestão como patrimônio da humanidade é incontornável. Mas tal imposição é também necessária na exploração e uso de energia fóssil, na medida em que sua queima descontrolada e desigual afeta o clima de todos e revela injustiça climática.

Bens comuns, porém, não são só os naturais, por mais fundamentais que eles sejam para a própria vida. A genialidade coletiva da humanidade gestou, ao longo do tempo, bens comuns produzidos de fundamental importância para o bem viver. São as diferentes manifestações culturais, as línguas, as filosofias e as religiões, a educação, a informação e a comunicação, a ciência e a técnica. São bens comuns ilimitados que quanto mais se compartem mais crescem. Eles são a fronteira de expansão do bem viver, da felicidade humana. O desafio central que ameaça os bens comuns criados é a propriedade intelectual, um artifício do capitalismo para tornar escasso e vendável o ilimitado. O exemplo mais notável, no momento, é o que se passa com a revolução das tecnologias de informação e comunicação, em particular a internet e o software. A luta entre software livre e software proprietário – Linux contra Microsoft – é entre o bem comum e a propriedade intelectual. Extensivamente, pode-se dizer que, nesta era de comunicação, a mídia em geral está diante da possibilidade de expansão ilimitada da “mídia cidadã”, livre, pautada pelo bem comum, versus a “mídia proprietária”, dos donos privados dos meios.

Gostaria de concluir este ensaio exploratório sobre as possibilidades de um novo paradigma transformador, pautado pelo bem viver, falando das cidades como bem comum. A tragédia que se abateu sobre o Rio de Janeiro, particularmente sobre aquelas comunidades excluídas de algum modo e condenadas a viver sobre lixões, nas encostas íngremes ou nas áreas inundáveis baixas, próximas de rios, nos deve fazer pensar como tratamos nosso grande bem comum, a cidade.

As cidades são um bem comum em permanente mudança e, ao seu modo, bens únicos. Já temos as reconhecidas cidades históricas, tratadas como patrimônio cultural da humanidade. Mas as cidades, todas as cidades, são bens comuns, bens de todos os seus moradores. Por isso a reivindicação da cidadania ativa do direito à cidade para todos e todas que aí vivem. Não basta considerar as vias de comunicação, as ruas e avenidas, as praças e parques, bens públicos fundamentais, como os únicos bens comuns das cidades. Como conjunto, as cidades são um bem comum. As capacidades aí existentes, as instituições criadas ao longo do tempo, a sinergia criadora do coletivo, enfim, são muitos os aspectos que tornam a cidade um bem coletivo, comum, de todos e todas. Seu usufruto coletivo, o compartir a cidade, só aumenta seu valor como bem comum. Mas existem os problemas, não só os evidentes – como estes durante a tragédia do Rio – mas os que se gestam por privilégios, por exclusões, por segregações, enfim, pelas práticas privatistas, discriminatórias e individualistas de seus habitantes e pelas políticas públicas construtoras e reguladoras da cidade como bem comum, quase sempre orientadas segundo os interesses dos mais poderosos. A cidade como um bem comum e território único, como sítio natural em simbiose com a construção humana ao longo de gerações, é o fundamento de uma nova economia e novo poder, localizados para construir as bases do bem viver, democráticas e sustentáveis.

Publicado em 06 de julho de 2010

Publicado em 06 de julho de 2010

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