Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Machado e Wisnik: popular, erudito e acadêmico

Alexandre Amorim

Pestana é um pianista, compositor de polcas célebres e frustrado por não conseguir compor obras clássicas. À primeira vista, o resumo do conto Um homem célebre não parece muito sedutor. Parece que lhe falta um gancho que chame a atenção do leitor e mesmo um toque de originalidade. Machado de Assis publicou o conto na Gazeta de Notícias em 1888 e, em livro, oito anos mais tarde. Pode-se dizer que a narrativa das angústias de Pestana seja em si motivo de interesse, uma vez que o estilo de Machado já estava amadurecido e a escrita fluía com domínio pelas mãos mulatas do escritor.

A descrição do protagonista andando pelas ruas suburbanas do Rio de Janeiro enquanto ouve suas famosas polcas serem tocadas e assoviadas é uma aula de narrativa, assim como a cena de Natal. Mas não é apenas o modo de narrar que faz do conto uma obra a ser considerada. Um reconhecido compositor de música popular que sofre por não conseguir compor temas clássicos define de maneira bastante arguta um complexo modelo cultural brasileiro: a perseguição ao erudito como índice de superioridade, mesmo que esse perseguidor seja fruto e habitué do popular.

Por que sofre Pestana? Por que sua frustração acontece mesmo com o reconhecimento de uma obra popular de qualidade? A resposta parece fácil, mas passa pela formação cultural brasileira, pela questão racial e social, e nos atinge hoje, quando pensamos na eterna disputa entre a cultura de massa e a cultura de elite, entremeada pela luta acadêmica em se fixar como ponto de referência em um país de perspectivas tão díspares.

José Miguel Wisnik, pensador e músico paulista, professor de literatura na USP, escreveu um ensaio que analisa as nuances envolvidas no texto do escritor mulato: Machado maxixe: o caso Pestana. A começar pela distinção entre glória (“ligada à imortalidade dos clássicos”) e sucesso (“afeito ao mercado e ao mundo de massa nascente”), Wisnik infere ao protagonista ao mesmo tempo o êxito e o fracasso, uma vez que sua celebridade se dá através de polcas compostas com maestria e qualidade.

Não é que Pestana seja um infeliz apenas por não saber escrever sonatas ou réquiens. Ele o sabe, mas não o faz, porque sua força criativa se volta para o popular. Em uma época em que a mercantilização da arte surge como força motriz de uma determinada indústria, o pianista serve como mão de obra para uma máquina maior do que ele: o capitalismo nascente. Nesse capitalismo, a celebridade é uma moeda de troca e Pestana não se nega a usar seu talento para ganhar a vida, mesmo porque, apesar de transformadas em mercadoria, suas polcas têm valor e genialidade musicais. Suas músicas são reconhecidas e requisitadas, mas um seu desejo se mantém guardado como segredo, porque não se realiza.

A polca, no entanto, é sua produção real, desejo materializado naturalmente, mas frustrante porque o faz se lembrar de que um desejo de compor de forma erudita continua guardado, somente como desejo. O músico é conhecido pela sua realização, mas não se reconhece nela enquanto esta for o espelho de uma não realização sua.

Wisnik classifica de “logro complexo” o pendular fracasso e sucesso sentidos pelo personagem. Utilizando o termo logro em sua totalidade, o teórico paulista expõe o logro de Pestana como engano, mas também como obtenção de um desejo. A ambivalência desse termo é a ambivalência proposta por Machado no conto analisado.

Leitor de uma reconhecida e variada biblioteca, Machado de Assis tenta em sua última fase miscigenar a leveza e a seriedade ou, como afirma John Gledson, o “local brasileiro” com o “tradicional europeu”. Entre o erudito e o popular, o escritor opta pelos dois e demonstra essa opção em sua própria obra escrita. Não é sem ironia que Machado pinta as cores de Pestana, ainda que cite nas entrelinhas sua leitura de Schopenhauer. Mas também não é sem um apelo à reflexão, mesmo que sutilmente inserido no conto.

Por isso, esse escritor que funda a Academia Brasileira de Letras é também o fundador de uma nova escrita e de uma nova visão da cultura nacional. Machado já vislumbrava as influências europeias, africanas e locais na formação cultural do brasileiro. Já dava à polca (ou à obra popular) e à sonata (ou à obra erudita) as dimensões que elas teriam em nossa composição. Se essa composição é ainda hoje problemática e indefinida, Um homem célebre é quase uma análise da gênese desse problema. Ou, como quer Wisnik, dessa solução, em um ciclo constante, já que o cruzamento entre o popular e o erudito causa um conflito que pode se apresentar como resposta. Cíclico, porque essa resposta não apazigua nem estabiliza esse conflito. O escritor se personifica, então, como negociador entre a cultura de massa e a erudita, ao mesmo tempo que aponta o desnível entre elas.

Embora a “alta” e a “baixa” cultura, principalmente musical, tenham sempre convivido em salões nobres e casas mais humildes, o preconceito já é visível na frustração de Pestana. A aspiração a um alto clero cultural passa pela aceitação de que o erudito é a excelência e o acadêmico é seu fiel intérprete. Se Pestana aceita a polca, o faz como o intelectual de hoje aceita o samba: vê nele a qualidade de ter se submetido a um feroz exame elitista, às harmonizações europeias e às teses poético-literárias. Talvez porque não se encontre nessa elite um olhar artístico o suficiente para compartilhar o olhar machadiano, a ironia de Pestana acaba passando despercebida e a complexidade cultural acaba dando em praias rasas. Mas também a manifestação popular radicaliza sua repulsa ao que é clássico, adjetivando de “difícil” o que não lhe é comum.

A academia se fecha para manifestações artísticas não eruditas, assim como o popular se fecha para o que não se massificou. Se o piano de Tom Jobim soa em casas populares, é porque se tornou aceito como comum. E se toca em casas de elite, é porque se encontra ali uma sofisticação apontada pelo intelectual de plantão. Fato é que esse preconceito parece ter sido gerado juntamente com a hiperfagia do mercado cultural, que a tudo engole e digere se for possível lucrar com ele.

Claro está, também, que não é apenas o mercado que dita as regras estéticas de um povo. Se o escravo trouxe em si uma cultura pré-brasileira, também o europeu trouxe a sua, e o mercado é apenas mais uma variável nessa equação. A potência humana e artística de cada variável está somada e aplicada numa fórmula que parece não parar de se desenvolver. Se a polca era uma música de salão de origem europeia, o maxixe fez a polca se modificar para conter nela os elementos negros e se manter assim nos salões.

A arte e o elemento humano estão presentes como força motriz e, nesse caso, invasora. A “iniquidade social” que Wisnik aponta no conto é um panorama nacional que Machado tenta decompor ao mostrar criticamente que cada cidadão não é apenas popular ou erudito, mas formado por uma complexa teia que jamais será definida a contento. Pestana sofre e goza com suas polcas e suas impossibilidades. O popular e o erudito sofrem em si de necessidades externas, e, se a iniquidade está demonstrada, cabe torná-la menos dolorosa assumindo essas necessidades recíprocas, mesmo porque não se trata apenas de necessidade, mas de realidade: o erudito bebe nas águas populares e vice-versa. A cultura se amalgama, mas não se cristaliza. Pestana é o ícone artístico e social dessa complexidade.

Leia o conto Um homem célebre no endereço: http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn005.pdf

Publicado em 6 de julho de 2010

Publicado em 06 de julho de 2010

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.