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Os games e o cinema: quem influencia quem

Juliana Carvalho

Cada vez mais o cinema, principalmente os filmes americanos, têm apresentado uma estética parecida com a dos games. Isso sem falar de filmes inspirados em jogos de sucesso. Por sua vez, a indústria de games se aproveita do sucesso de alguns filmes para lançar jogos inspirados neles. Muitas vezes os games são lançados simultaneamente ao filme, como foi o caso recente de Alice no país das maravilhas, filme de Tim Burton. Mas, na verdade, quem influencia quem? O cinema influencia a criação de videogames ou os games influenciam o cinema?

Para o professor francês André Blanchard, diretor da Universidade Internacional de Multimídia (UIM) e professor da Universidade do Quebec em Abitibi-Témiscamingue (UQAT), que esteve na Universidade Federal Fluminense em 24 de maio falando sobre o tema, nada se constrói do nada. Para Picasso se tornar o grande pintor que foi, inspirou-se nos mestres que vieram antes dele, como Cézanne e Renoir. Acredita-se que ele tenha tentado reproduzir a tela As Meninas, de Velásquez, por 40 vezes e não chegou a uma cópia perfeita. Todos os sucessos da telona que acompanhamos nas últimas décadas foram inspirados em algo mostrado antes no cinema. Para criar o visual do Chapeleiro de Alice, o próprio Tim Burton Inspirou-se no filme que confessa ser sua eterna inspiração, The Cabinet of Dr. Caligari. Veja a semelhança:

O filme Sin City foi inspirado na estética noir da década de 1940:

Para Blanchard, é importante inspirar-se no que já foi feito, mas o sucesso também depende da introdução de algo novo e fresco.

Os avanços tecnológicos (que são responsáveis pela mudança de hábitos do público jovem) podem ser apontados como um fator-chave para a influência que os videogames exercem atualmente sobre a produção de filmes. Podemos afirmar que o cinema passa por um período de ajuste estético e narrativo; só não podemos dizer que já é um processo consolidado devido à rapidez com que surgem novos games, com novas características estéticas, apoiados em tecnologias cada vez mais inovadoras. Parece evidente a absorção de características de jogos eletrônicos, tanto na estética (fotografia, montagem, música e efeitos sonoros) quanto na narrativa (roteiro). Essas mudanças parecem se tornar mais evidentes a cada nova safra de filmes lançados por Hollywood.

Apesar das inovações, o cinema americano é tão popular porque é clássico. Tanto os games quanto os filmes possuem os três atos da estrutura dramática definidos por Aristóteles: no primeiro, a problemática é exposta; no segundo, há o desenvolvimento; e no terceiro o desfecho. Em um estudo feito com os maiores sucessos das bilheterias norte-americanas das últimas décadas, 95% dos filmes apresentaram a seguinte estrutura narrativa:

A estrutura proposta por Aristóteles é básica, e hoje já existem vários outros modelos baseados nela. Um dos mais comuns é este:

  1. A exposição (do conflito e seus protagonistas)
  2. O incidente deslanchador (um erro, algo que faça o personagem principal passar da felicidade para a infelicidade)
  3. O desenvolvimento (dos conflitos e tentativa dos protagonistas de contornar os obstáculos)
  4. O clímax
  5. A resolução (o conflito maior encontra sua resolução, positiva ou negativa).

Entretanto, a partir do primeiro filme da saga de Indiana Jones, o ritmo começou a se acelerar. As novas gerações de cineastas que passaram a atuar na indústria cinematográfica nos Estados Unidos procuraram melhorar e consolidar novos modelos narrativos, embora ainda seja possível perceber a estrutura clássica dividida em três atos que sempre caracterizou o cinema comercial. Podemos tomar como exemplo o segundo filme da série, Indiana Jones e o Templo da Perdição. Dirigido por Steven Spielberg, o filme mantém a divisão em três atos, mas adota estruturas narrativas mais frágeis entre os eventos que compõem a trama. O longa-metragem de 1984 mostra o personagem enfrentando, em sequência, obstáculos cujo grau de dificuldade vai se tornando mais alto, exatamente como num jogo eletrônico. Os primeiros consoles, como o Nintendo, surgiram naquela mesma época, o que não deve ser coincidência. Desde então, a linguagem cinematográfica está presente nos jogos, no uso de várias câmeras, câmeras objetivas, closes... No início, os jogos tiveram como inspiração os modelos narrativos utilizados no cinema. Depois, se desenvolveram paralelamente à narrativa cinematográfica, acabando por influenciá-la também:

Diferentes criadores de jogos evocam agora sequências de filmes conhecidos, introduzem cenas ditas “cinemáticas” e não passíveis de serem jogadas, buscam efeitos propriamente estéticos e poéticos, utilizam enquadramentos tomados do cinema, procuram contar histórias a fim de fazer viver, de certo modo, uma experiência total. Inversamente, muitos filmes de ação e blockbusters com efeitos especiais precipitam seus heróis em corridas, perseguições, que são tratadas formalmente como o desenrolar dos percursos com obstáculos oferecidos pelos videogames (Lipovetsky; Serroy, 2009, p. 273).

O caminho inverso: games – cinema

A influência dos videogames na linguagem dos filmes pode ser constatada ao examinar principalmente o plano estético. O visual de Matrix, por exemplo, é claramente inspirado nos games, desde a caracterização dos personagens, a presença de universos paralelos e a composição dos planos-sequência. Para Rodrigo Carreiro, um plano-sequência, segundo a definição clássica, consiste de tudo o que acontece entre dois cortes (ou seja, todas as imagens captadas entre os gritos de “Ação!” e “Corta!” pelo diretor):

Essa própria definição talvez já não seja mais suficiente. O plano (...) contém uma série de alterações abruptas – ângulo de visão, velocidade de projeção, ponto de vista da tomada – que correspondem a cortes na percepção do espectador. A responsabilidade por essa mudança de paradigma é o uso das imagens geradas por computador (chamadas de CGI, ou computer generated images). Com elas, torna-se possível “cortar” sem que seja possível visualizar os cortes. A evolução tecnológica dos processos de captura e revelação de imagens ocorreu de forma tão evidente, nas últimas quatro décadas, que o uso da película fotográfica já pode ser dispensado, de forma que os filmes, na verdade, nem deveriam mais ser chamados por este nome. Filmes, na prática, muitas vezes não são mais filmes, pois são produzidos a partir de imagens que não existem fisicamente.

O personagem de cinema, assim como o do game, tem um objetivo, uma meta. Nós acompanhamos o personagem marchando em direção ao objetivo, mas muitas vezes não sabemos qual é ou onde fica. Nessa marcha, as informações que vão surgindo influenciam o caminho do personagem/jogador. A diferença é que no game o jogador decide o caminho; no cinema não há como mudar o curso da história. Na ficção, para que ocorra a identificação do espectador com o herói, é preciso que haja algum traço de semelhança entre os dois, ainda que aproximadamente. No jogo é a interação que permite ao jogador encarnar o personagem. As emoções nascem das provas que o jogador ultrapassa graças ao seu controle. Segundo o professor André, a série americana Prision break, feita para a TV, é muito influenciada pelos games e isso pode ser comprovado já desde o primeiro episódio. Ele ressaltou as seguintes características da série em comparação com os jogos:

  • meta do protagonista: sair de um lugar inviolável
  • encarceramento: o cenário da prisão como arena do game
  • diferentes níveis. O herói vai superando obstáculos e subindo de nível
  • tema mais forte: a sobrevivência
  • o efeito catártico da violência: os games geralmente são muito violentos.

O herói clássico, segundo Aristóteles, precisa ter algum traço de caráter que lhe dê qualidade superior. Nos games, os heróis são os próprios jogadores, e para forçá-los a tomar decisões, os roteiristas criam obstáculos em níveis cada vez mais altos. No cinema, como não é possível tomar decisões, os roteiristas tentam tornar os obstáculos bem interessantes. Em Avatar, temos um protagonista que é diminuído no começo, mas seus fortes traços de caráter, como ética e solidariedade, falam mais alto no decorrer do filme, o que ressalta suas características de herói clássico. Assim como ele adquire habilidades físicas especiais por meio do avatar, ocorre a transformação de um soldado frustrado por estar preso a uma cadeira de rodas e que chega a trocar suas convicções pela esperança de voltar a andar, tornando-se parte do projeto de exploração (e destruição) do planeta Pandora no herói clássico protagonista da salvação do planeta.

Algumas diferenças na constituição de games e filmes:

  • O jogador quer ação, é apressado; o roteirista de cinema sabe que para desenvolver o personagem é preciso construir emoções, o que não é possível no game.
  • O jogador tem o poder de decisão; no cinema não há como mudar o curso da história.
  • A liberdade de ação do jogador é apenas uma ilusão. Ele está sujeito às regras do jogo, à estrutura narrativa e ao cenário (arena).
  • O autor é uma vantagem do cinema em relação aos games. O expectador ama entrar no mundo do autor, um universo mais desenvolvido, onde a emoção é longa e demora a ser criada.
  • Nos filmes, a construção dos personagens e dos obstáculos é mais complexa.
  • A finalidade do jogo não é desenvolver uma visão de mundo (como a do autor), e sim apenas chegar a um objetivo.

Segundo o professor André, o cinema influencia os games e os games influenciam o cinema, trazendo uma nova estética, um novo patamar. O jogador tem participação muito ativa e objetiva, mas o expectador de cinema também participa ativamente antecipando o que vai acontecer no filme. É outra espécie de ação, mais intelectual do que a exigida nos games, embora a participação nestes solicite mais atenção do que assistir a um filme. Para saber mais sobre as adaptações de jogos famosos para o cinema, visite a página adrenaline.

Leitura sugerida

CARREIRO, Rodrigo. A influência dos videogames na linguagem cinematográfica: o caso 300 e a estética Playstation. Disponível em: www.cchla.ufpb.br/ppgc/smartgc/uploads/arquivos/6d6767a3dd20100603124228.pdf

Publicado em 06/07/2010

Publicado em 06 de julho de 2010

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