Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.
Filho da... professora
Mariana Cruz
Como escrevi aqui algumas semanas atrás (no texto Globalização dos idiomas), desisti de ficar irritada com a indiscrição das pessoas que utilizam o celular nos espaços públicos; ao contrário, as narrativas da vida alheia passaram a ser um ótimo passatempo nas minhas viagens de ônibus. É a síndrome do big brother auditiva. Poucas vezes, porém, o ditado “é melhor escutar isso do que ser surdo” caiu tão bem como em relação à conversa que escutei semana passada. No começo até simpatizei com a moça. Pela voz, pelo vocabulário e pelo tipo de papo, ela devia ter cerca de 30 anos. Conversava com uma amiga, a quem agradecia o apoio naquele momento tão difícil de sua vida, dizia que ela era seu “anjo da guarda”.
Até então, eu estava achando o reconhecimento e valorização de uma amizade entre mulheres algo bonito de se ver, digo, de se ouvir, uma vez que as más línguas teimam em dizer que isso não existe. Balela. A única coisa que me incomodou era seu criativo hábito de chamar a amiga de... amiga. Nada contra quem faz isso, eu inclusive; o problema era a constância com que repetia o termo, e o pior é que sempre vinha antecedido de um “ai”. Assim, a cada cinco palavras ela soltava um “ai, amiga”. Parecia até jargão de programa humorístico. Foi então que começou a catarse (razão provável de ela atribuir à sua “amiga” o título metafísico supracitado). A moça estava bem chateada porque o namorado havia terminado com ela. Quem é que não fica chateado por tomar um pé? Para se sentir melhor, ela começou com aquela exaltação dos defeitos do ex.
É normal querermos diminuir alguém que nos magoou. Somos humanos. Mas até para falar mal de alguém é preciso ter classe. Há formas e formas de se convencer de que uma separação definida pelo outro foi “a-melhor-coisa-que-me-aconteceu” sem, no entanto, apelar. E foi justamente o que ela não fez. Assim que começou a falar com seu “anjo da guarda” sobre o término, foi dizendo que o que impressionava a ela era o fato de o rapaz não se tocar da besteira que tinha feito, de não perceber que ela era “muita, mas muita areia pro caminhãozinho dele”.
Aí eu já comecei a não ficar mais tão solidária com a mocinha abandonada. Acho meio esquisito esse lance de alguém se achar muita areia pro caminhão de alguém. Uma superioridade atestada por quem? Quais os critérios hierárquicos? Onde está a tábua de valores que cataloga certas pessoas como melhores ou piores que outras? Nessa hora fiquei com vontade de virar-me só para ver a pinta daquela imensa duna em forma de mulher. Mas me contive. De repente foi só um deslize provocado pela dor de cotovelo. Eis que ela começou a tecer um rosário de motivos que mostravam sua superioridade perante aquele “caminhãozinho”: “ele não tem berço”, disparou.
Achei que eu estava ouvindo uma sinhazinha da época do Brasil Colônia apresentando os motivos que a impediriam de casar-se com um dos escravos do engenho de seu pai. De volta ao século XXI: o que significa não ter berço? Ela continuou: “ele tem uma autoestima baixa”. Tal motivo até pode ser compreensível para o término de uma relação, o problema é que quem terminou com ela foi ele, e não ao contrário. Ela então justificou a falta de autoestima de seu ex-namorado: “ele vai malhar até quando está doente, gripado”. Não entendi a relação: isso mostra que o cara gosta de malhar, não liga para gripe, não se abate pelo cansaço do corpo – mas não que sua autoestima seja baixa.
Eu estava começando a achar que o fulano tinha lá seus motivos de ter rompido o namoro. Principalmente quando ela saiu com a pérola: “o cara, ainda por cima, é suburbano”. Agora eu tinha certeza de que o rapaz tinha se livrado de uma boa. Como pode uma pessoa sentir-se muita areia para o caminhãozinho de alguém pelo fato de morarem em zonas diferentes da mesma cidade? Ela o considera inferior pelo fato de não ter berço (seja lá o que isso queira significar) e ser suburbano.
Não satisfeita, a garota-zona-sul soltou o último insulto dirigido ao suburbian boy, justamente o que me motivou a escrever este texto. Conto alguns detalhes para melhor contextualizar a cena. Ela contou que, ao relatar para o pai o “fora” que levara, ele começou a tecer as impressões que tinha do ex-futuro genro; sem saber a profissão da mãe do rapaz, quase acertou: um rapaz com aquele perfil (deveria estar se referindo ao fato de ser suburbano e sem berço), e sendo filho de pai militar, devia ser filho de professora de história. Tal julgamento do pai serviu para fortalecer em mim aquela máxima de que “quem sai aos seus não degenera”, isto é, tal pai, tal filha.
Foi quando a moça soltou sua primeira gargalhada, para em seguida elogiar seu pai: “ele é fogo, sabe tudo, quase acertou: a mãe dele é professora de Português!”. Falou como se fosse mais um grande defeito do “caminhãozinho”; afinal, era o que faltava para completar a tríade: sem berço, suburbano e filho de professora.
Eu, como professora, confesso que fiquei mexida. Quer dizer que ser professor agora virou motivo de chacota? Tudo bem que tal menina não é um bom parâmetro, mas, se fosse um pouco coerente, ela e seu pai só poderiam falar assim, isto é, fazer galhofa dos professores, se ambos fossem autodidatas e jamais tivessem tido aulas com algum professor.
Aliás, qualquer que fosse a profissão da mãe do garoto – dona de casa, engenheira química, prostituta, empresária, gari –, que problema teria, desde que exercesse eticamente seu ofício, o que isso teria de desmerecedor? Provavelmente, se o pai do menino fosse um advogado milionário e antiético, aí, sim, ele seria considerado alguém com berço.
Ser professor: o que antes era motivo de orgulho agora é usado para desmerecer, desqualificar uma pessoa; pior ainda, o filho dessa pessoa. Claro que tal observação, vinda de uma pessoa com uma mentalidade preconceituosa, pode soar até como elogio para alguns, mas o demérito dessa profissão não deixa de ser grave, seja lá feito por parte de quem for. Não falta muito para dondocas falarem assim de quem é filho de médico.
Do jeito que esses profissionais estão sendo maltratados tanto pelo governo quanto pelos planos de saúde (a mesma dobradinha que desqualifica os profissionais do magistério: escola pública e privada), é fácil imaginar a cena: as dondocas dizendo “ele até é um carinha legal, mas não tem berço, o pai dele é médico!”. Professor, já há algum tempo, é apontado assim pelos integrantes das classes média e alta. Eu sei disso porque quando digo que sou professora algumas pessoas perguntam: “você dá aula em que faculdade?”. Quando digo que dou aula para o ensino médio (professor universitário ainda tem algum status), invariavelmente sinto um olhar de pena. Outro dia um conhecido disse, com pesar: ”eu sei bem como é isso, minha irmã também dá aula em escola”, como que me consolando.
Apesar das dificuldades, dos baixos salários, da tentativa constante de desvalorização da profissão, vamos lá: é uma profissão dinâmica, que nos faz estar sempre em contato com pessoas diferentes, estar sempre renovando nosso conhecimento, nos dá a possibilidade de exercer nossa criatividade, de trocar experiências com os adolescentes e, principalmente, de poder ajudar a melhorar a vida de muitos jovens, abrindo suas mentes para um novo mundo. Um bom professor, mesmo que tenha renda infinitamente menor do que a de um político antiético ou um advogado corrupto, é muita areia para o caminhãozinho de tais profissionais-com-berço.
Quando eu estava em meio a tais reflexões, o ônibus parou. Instantes antes estava curiosa para ver como era a fulana, torcendo para que fosse horrorosa. Bobagem. Resolvi descer antes que ela passasse por mim. Não queria saber quem ela era, olhar sua roupa, sua bolsa, seu cabelo. Seu discurso já era suficiente. Não sei seu nome, nem rosto. Realmente o mundo é injusto, pensei, com uma irresistível ironia que por vezes me acomete: tão injusto que fez com que um ser tão inferior como um suburbano-caminhãozinho-sem-berço-filho-de-professora-de-português desse um fora numa dondoca-zona-sul-com-berço e ainda a fizesse ficar chorando suas mágoas em alto e bom som pelos transportes coletivos. Existe coisa mais sem berço do que isso?
Publicado em 13 de julho de 2010
Publicado em 13 de julho de 2010
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.