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Tradução e versão: transferência.
Alexandre Amorim
Vamos começar pelo básico. O que é versão? O que é tradução?
Nos dicionários, são termos sinônimos, uma vez que “traduzir” tem como significado original no latim “conduzir além, transferir”, e o termo “verter” pode ser entendido como “desvio, traslado”. Assim, a transferência de uma língua para outra seria trasladar os significados contidos em palavras de um idioma para outro. Transferimos do inglês o significado da palavra cat para a palavra “gato”, em português.
Os tradutores profissionais, no entanto, julgam haver uma diferença e, talvez com a finalidade de organizar seu trabalho, utilizam o termo tradução para a passagem de um texto em língua estrangeira para a língua nativa. E o termo versão é o contrário disso: passar um texto da língua nativa para uma língua estrangeira. No nosso caso, brasileiros que somos, traduzir seria passar cat para “gato”, e verter seria passar “gato” para cat. Existe até uma tabela de preços diferenciados entre os tradutores para esses serviços.
Traduzir ou verter seriam, então, um exercício de transferir, de passar, de trazer de um lugar a outro. E pode-se mesmo chamar de exercício o ato de trazer as palavras de um mundo estrangeiro para um mundo nativo (ou vice-versa), porque essas palavras dão um trabalho danado.
Quase sempre é necessário compreender o contexto da situação em que as palavras aparecem. Por exemplo: podemos traduzir o termo party, do inglês, para “festa” ou “partido (político)”. Se esse termo estiver inserido em um contexto em que há convidados, bebida e um bolo de aniversário, party muito provavelmente vai significar festa. A não ser que os membros do partido estejam dando uma festa, o que vai tornar tudo bastante confuso para o tradutor.
Verter palavras é mais do que apenas saber sua descrição no dicionário e traduzi-la para outra língua. É preciso saber o contexto, a origem, o uso cotidiano e erudito em seu idioma original... É preciso experiência com as palavras das duas línguas a serem traduzidas.
O trabalho do tradutor já foi comparado ao de um garimpeiro. Ele procura a pedra preciosa que vai complementar seu ofício. Em uma tradução técnica, o termo preciso, definidor daquilo que ele quer significar. Traduzir steel wool como “lã de aço” vai atrapalhar a vida de todos os leitores de um manual de mecânica: em português, a palavra wool significa mesmo lã, mas a expressão steel wool é o que qualquer mecânico brasileiro conhece como palha de aço. A precisão da tradução depende, também, do conhecimento em cada área – e um tradutor não pode ser especialista em todas as áreas de conhecimento. Na prática, acontece uma mini-investigação e o tradutor se especializa, pelo menos teoricamente e por certo tempo, na área a ser trabalhada.
Além disso, traduzir não é apenas passar cada palavra de um texto para outro idioma. O leitor já deve ter se deparado com traduções feitas por tradutores automáticos, como o do Google, em que algumas frases são completamente ininteligíveis, mesmo na nossa língua. A sintaxe de uma língua difere da das outras, o que significa que não basta verter cada termo; é necessário observar a frase, o parágrafo, a ideia do texto. Antes de tudo, deve-se traduzir o conceito original, mesmo que seja preciso cortar ou modificar alguma palavra do texto. Traduzir e verter, neste caso, têm o mesmo significado: passar o conceito de maneira correta, e não apenas passar palavras de um idioma para outro.
Mas existe outra diferença entre tradução e versão. Não podemos esquecer que versão é uma palavra que, no senso comum, denota subjetividade. Minha versão de um fato pode ser diferente da sua – aqui, versão é sinônimo de interpretação. Por isso existe outra diferença a ser considerada entre tradução e versão. A tradução passa a ter um sentido objetivo, em que não ocorre adaptar o texto original. Nesse sentido, é praticamente impossível traduzir uma obra poética. É comum nas rádios populares que o locutor traduza músicas românticas, e essas traduções são muitas vezes bastante risíveis, apesar de quase sempre estarem corretas. Elas se tornam ridículas porque não é razoável traduzir uma obra literária ao pé da letra, sem dar importância a seu significado poético, que inclui, além do conceito, a construção frasal, a escolha das palavras e do seu ritmo.
Vamos usar, como exemplo, dois versos da canção She’s leaving home, de John Lennon e Paul McCartney:
She goes downstairs to the kitchen
clutching her handkerchief
A tradução literal desses versos pode muito bem ser:
Ela desce as escadas até a cozinha
Apertando seu lenço
É uma tradução literal dos versos. Cada palavra está corretamente traduzida e o tradutor tomou até o cuidado de traduzir “goes downstairs” como “descer as escadas”, ao invés de um possível (e grotesco) “vai escadas abaixo”. Mas podemos notar como a quase totalidade da intenção poética dos versos se perdeu, ignorando aliterações bem trabalhadas e encaixadas (downstairs-to-the, kitchen-clutching-handkerchief, her-handkerchief). Assim, versões de letras de músicas e poemas usam muitas vezes palavras e até imagens diferentes das originais para que se possa conservar a intenção original daquela obra e para que o poema mantenha seu ritmo, sua forma literária, enfim.
Mesmo que, no jargão profissional, tradução e versão sejam considerados e até cobrados como trabalhos diferentes, a transferência de uma ideia em uma língua para outra é sempre um trabalho de percepção daquela ideia, um garimpo cuidadoso do conteúdo de um texto para que sua passagem linguística seja feita da forma mais neutra possível. E essa transferência precisa de cuidado e paciência.
Existe um ditado italiano que diz: “tradutor, traidor”. Ele pode valer como advertência, porque não há total neutralidade de qualquer tradução, mas também pode ser visto como um exagero, quando a técnica da tradução se aproxima da técnica de um artesão, que traz o texto de um de um ambiente linguístico para outro. O tradutor é o condutor dessa transferência.
Publicado em 20 de julho de 2010
Publicado em 20 de julho de 2010
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