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Clarice Lispector e a Poética do Ovo
Bianka Barbosa Penha
Editora do Dicionário de Poética e Pensamento
Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?
Tal pergunta pode num primeiro momento parecer ingênua, mas em seu interior carrega todos os pressupostos determinados enquanto realidade do real, pela lógica do pensamento metafísico. Ou seja, ao optarmos por uma das alternativas excluímos a outra, desconsiderando-a. Esta, lançada no esquecimento, não mais é digna de ser efetivamente re-pensada, pois a afirmação de uma implica necessariamente a anulação das possibilidades da outra. Pois, em verdade, o “ou” expresso na pergunta não nos aponta dois caminhos possíveis, mas apenas um previamente estipulado. Resultado? Resposta dada, conceito criado e, por fim, cristalização do movimento natural de todo o pensamento que, incessantemente, convoca-nos a renascer.
Sem respostas, a arte irrompe como memória, fazendo-nos lembrar que, originariamente, o homem é sua grande questão. E que, porque está continuamente sendo, oceana no horizonte do não saber, isto é, destino.
Para haver o desdobramento de tais questões, foi selecionada como corpus do presente trabalho a obra Legião Estrangeira, de Clarice Lispector, publicada pela Ática, numa edição de 1983. Sendo assim, nosso ponto de partida será a interpretação do conto O ovo e a galinha.
O “objetivo” deste artigo se concentra na seguinte questão: de que maneira a imagem-questão do ovo emerge, enquanto o atravessar do destino no e pelo homem, durante seu incessante movimento de ondear? O que se procura investigar, em verdade, é a maneira pela qual a palavra poeticamente proferida por Clarice Lispector empreende o questionamento sobre existir do homem enquanto sentido, a saber, mundo.
Rumo à desaprendizagem do olhar
Quero o tempo presente que não tem promessa, que é, que está sendo. Este é o núcleo do que eu quero e temo. Este é o núcleo que eu jamais quis (Lispector, 1998a, p. 88).
No impulso de querência e temor, surgiu o presente trabalho. Tentativa de conservação do mistério através de uma interpretação que se deixasse conduzir pelo núcleo do tempo presente figurado verbo na escrita clariciana. Sem promessas, somos conduzidos ao querer que, em verdade, experimenta-nos à medida que funda no temor a sua morada. Querer e temor são o tempo presente de uma escrita-núcleo cujo sentido concentra a não querência do destino que a atravessa.
Dito isso, o conto O ovo e a galinha será o ponto central de toda a reflexão aqui empreendida. Pois a questão que nos impulsiona diz respeito à maneira pela qual sua palavra irrompe enquanto tessitura do existir do homem. Tal corpus foi selecionado por haver nele a concentração máxima da dinâmica poética da autora à medida que nos apresenta claramente sua abismal investida rumo à desaprendizagem de olhar que lhe permite, verdadeiramente, ver.
É necessário, portanto, esclarecer que, ao nos referirmos à obra clariciana, não nos restringimos a um determinado romance ou conto, mas à teia significativa criada pela escritora em seu obrar. Sendo assim, o claricear é ofertado enquanto círculo hermenêutico, isto é, potencialização do todo nas partes, e doação da possibilidade das partes no todo, pois é na ressignificação que surge a magia da arte desde sempre presente nelas. A relação da parte com o todo fica clara se pensarmos esse todo como a própria arte. Uma imbricada na outra como possibilidade máxima de obrar que subverte o que consideramos ser a realidade, à medida que nos desvela a fragilidade da noção de fragmentação quando diante da criação artística. Por isso, o conto em questão não nasce somente a partir de seu registro linguístico, mas é presença desde Perto do coração selvagem. Ou melhor, aquecido pela galinha-escrita de Clarice, que pacientemente o chocou, pôde irromper no momento certo.
Nas gavetas do existir estão todas as obras a serem escritas. Em uma delas, Clarice descobriu que, na verdade, havia fundos falsos. E, a partir daí, como grande depositária do ovo, passou a tecer sua obra. Os fundos falsos são o que conhecemos como romances e contos, mas o que importa mesmo é a gaveta. Ao olharmos cuidadosamente para ela, iniciamos o grande sono de ser galinha: intervalo para o silêncio, palavra; e convite à aprendizagem do chocar. Tudo e nada a um só tempo.
Afastado do existencialismo, o verbo clariciano inaugura a possibilidade criativa de relação entre o homem e a realidade. Imerso na coisa das coisas, conduz-nos ao recôndito da memória onde o homem jaz esquecido. Mais do que simples tema, a existência na obra de Clarice é a própria palavra que, desenhada na folha branca do papel, não é apenas representação, mas percurso de existir.
A palavra é mundo, ou seja, doação como possibilidades de acontecência. Abismar-se na coisa das coisas não implica busca pela explicação do que venha ser a existência de determinada subjetividade, pois, como afirma G.H., mais importante que viver a nossa vida, seria viver a vida. Com isso, podemos afirmar que sua escrita não representa a busca, mas é o próprio buscar ondeado em palavras.
O grande vazio em mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade. Tenho que me violentar até não ter nada, e precisar de tudo; quando eu precisar, então eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a quem pede mais, minha exigência é meu tamanho, meu vazio é minha medida (Lispector, 1998a, p. 151).
É a partir de uma exigência-tamanho contemplada num vazio-medida que surge o que chamaremos aqui de “a poética do ovo”. Ao refletirmos sobre a imagem-questão do ovo, lançamo-nos de imediato na impossibilidade de apreendê-lo. Tão antigo quanto o mundo, o ovo é justamente o violentar que experimenta toda e qualquer coisa na inexatidão do nada, possibilitando-a enquanto tudo, neste caso, escrita.
O ovo nos convoca a pensar o corpo à medida que se configura doação de possibilidade. Nas formas mais ínfimas, podemos ver seu registro. Enquanto forma, o ovo é o delirante e imperfeito núcleo de toda a coisa perfeita. Seu contorno nos afasta da exatidão do círculo e nos convoca a perceber o desajuste errante de sermos o caminho no qual ele pode empreender sua travessia. Como marca na forma das coisas, o ovo registra o seu percurso e nos lança no mistério de ser o que não sabemos mas sentimos e, de certa forma, vemos sem contudo conseguir explicar, pois “ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido” (Lispector, 1983, p. 49).
A ilusão de poder dominar o ovo é o que conhecemos por existencial. O que entendemos pela expressão “existência humana” é, na verdade, a tentativa ingênua de aprisionamento do ovo. Domínio do ser do homem que, contrário ao que pensamos, nunca pousou.
A aprendizagem do chocar
Sartre, ao defender e propagar o existencialismo, afirma que o primeiro esforço de tal doutrina filosófica “é o de pôr todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência” (1973, p. 12). Com isso, sem perceber, o filósofo irrompe no mundo como um dos maiores agentes já vistos do ovo. E, distraidamente preocupado em explicar a complexa subjetividade humana, manteve-se sonolento diante da presença indomável do ovo, que pôde tranquilamente seguir seu caminho. Talvez por devoção ao ovo, Sartre o esqueceu, pois como dominar o algo que nos possibilita? Como dominar o que supostamente somos, se o único horizonte ofertado é o abismo inexplicável do sendo que nos presentifica? Como poderemos ter domínio sobre algo que jamais saberemos? Como nos responsabilizar por um destino que nos atravessa, o destino de sermos fatalmente humanos?
Concedida por amor a participar um pouco mais, Clarice Lispector inaugura no ovo a poética do existir cuja caminhada vai de encontro a tal pensamento. Mais do que busca pela significação da existência humana, sua escrita figura a desilusão do amor que o ovo lhe oferta. Oferta da pobreza enquanto superação da subjetividade. Superar, nesse sentido, não nos clama a negação, mas mergulho profundo na realidade na qual desde sempre estamos inseridos. No conto, a subjetividade presente na imagem-questão da galinha potencializa a possibilidade de perpetuação do ovo. Com isso, a autora nos aponta não um lançar-se para além do subjetivo, mas nos convoca para seu interior, de modo que o superemos dentro.
Assim, vemos traçado um caminho inverso ao do existencialismo sartriano, principalmente quando este afirma que o sentido de sua doutrina consiste na consciência da “impossibilidade para o homem de superar a subjetividade humana” (Sartre, 1973, p. 12). Sartre entende superar como negar, e não é isso que Clarice ensina. Por estar mergulhada na subjetividade humana é que a escrita clariciana pôde, enfim, suplantá-la. Sua busca está concentrada na infinda possibilidade de ser sendo, assim como e com todas as coisas. É por intermédio da realidade subjetiva que Lóri, G.H. e, até mesmo, a galinha são convocadas a proteger o ovo. Dessa maneira, a realidade do real se apresenta como um susto, suspendendo-as da descrença de viver. Viver que, fundado na descrença do não relatável, se alimenta da morte no momento da criação para prosseguir.
Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo (Lispector, 1998a, p. 21).
É fora da imaginação existencialista que Clarice Lispector anuncia, em seu conto, o entendimento criativo do ovo. Reunião de presente, passado e futuro, o ovo é desenhado como a escrita-vida desejosa de um olhar-escuta. Isso significa que, para nos colocarmos diante dele, devemos nos despir do humano e nos iridescer com a potência de ser inumano, a saber, coisa das coisas apenas. Assim, a subjetividade, ou o que chamamos de existência humana, apresenta-se somente como o disfarce do ovo na pele da galinha. Entender criativamente isso é correr o grande risco de ser real. Arriscar-se em ser agente perpetuador do ovo, distraidamente, de modo que não haja obstáculos para o que está sendo feito através da fatalidade existencial da qual fazemos parte.
Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter a própria vida é, para quem já viu um ovo, um sacrifício [...], meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver [...]. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem (Lispector, 1983, p. 54).
O existir é a maior de todas as questões. Quando nos reportamos a ela, experienciamos a proximidade daquilo que, até então, pensávamos estar distante: a singularidade de termos, cada um, uma única vida, consumida pelo destino que a transpõe.
Todo o nosso corpo registra a presença do ovo. O coração bate sem precisar de uma subjetividade que o domine. O fígado nos purifica de nossos pecados mais imundos sem exigir penitências por isso. Os pulmões arrastam vida e morte para dentro de nós e nos fazem perceber que, por sermos corpo, somos sendo. Por isso, como indicia Clarice, cabe-nos somente a modéstia de viver.
Nesse sentido, podemos perceber que a repetição da palavra ovo ao longo de todo o conto não é apenas um recurso estilístico; trata-se do processo imediato de consumação registrado em palavra que, ao evocar incessantemente a coisa das coisas, a saber, o ovo, desvela a tentativa clariciana de penetração na realidade do real através do verbo, isto é, palavra enquanto poíesis.
O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo [...]. Se soubesse que tem o ovo em si mesma, perderia o estado de galinha (Lispector, 1983, p. 51-52).
Ser galinha é justamente estar lançada no mistério de estar sendo, mesmo sem saber. Ser galinha é ser o caminho pelo qual o ovo pode empreender permanentemente sua travessia. Por isso, “a galinha vive como em sonho” (1983, p. 52), distraída e ocupada apenas com a clara e a gema, pausas-núcleo da vida. E nisso consiste a leal deslealdade da galinha, pois, sendo agente, ela no fundo sabe que “ter casca é dar-se” (1983, p. 50).
A herança do ovo é o sacrifício do prazer e da dor que, mais do que aquilo que recebemos, é aquilo de que não conseguimos nos livrar. É com ternura aceitar o mistério de ser viva (Lispector, 1998b, p. 113). Esse é o movimento que concentra a inaugurabilidade do verbo clariciano. Ser galinha e agente é permanecer esquecido das explicações, frutos da superficialidade errante do pensar, rumo ao caminhar que nos abraçará dentro das águas
Referências
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a.
LISPECTOR, Clarice.O ovo e a galinha. In: LISPECTOR, Clarice.Legião Estrangeira. São Paulo: Ática, 1983.
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1973, p. 7-38.
Publicado em 03 de agosto de 2010
Publicado em 03 de agosto de 2010
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