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Um aluno marcante: Ricardo tempos depois

Alexandre Rodrigues Alves

Na semana retrasada, eu vasculhava minhas gavetas procurando um documento quando encontrei dois caderninhos daqueles de fotografias – dos tempos em que se via foto impressa, e não no computador ou na telinha da própria máquina fotográfica.
Encontrei várias fotos da turma da Antônia, aluna de quem já escrevi aqui. O que me impressionou, além do grupinho das quatro senhoras que eu havia mencionado (Graça, Nevinha, Inês e Antônia), sempre juntas, foi o Ricardo. Sentado sempre no meio da sala, era procurado pelos colegas o tempo todo.

Era um líder que conseguia apaziguar os ânimos dos contrários, trazia soluções que agradavam a todos os envolvidos, sabia argumentar com os professores de forma veemente sem parecer enfrentamento. Estava sempre atento a um ou outro colega faltoso para avisar ou recordar o prazo de entrega de um trabalho ou uma prova marcada.

Uma vez, antes da aula, Ricardo veio falar comigo no corredor: “Professor, a turma está enfurecida com as notas do Felipe. O sujeito não aparece e só tem nota acima de cinco! Em todas as matérias, inclusive na sua!” Era fato: o aluno faltava mais do que mau deputado no plenário e estava com nota suficiente para passar em todas as matérias. No meu caso, alguém havia colocado o nome dele num trabalho em grupo – e aí sua nota aumentou.

Ao final da aula, depois de ver a situação, chamei o Ricardo. “Olha só, no meu caso, ele participou desse trabalho em grupo; por isso ele conseguiu média”. Ricardo retrucou: “mas ele não fez nada!” Foi a minha vez: “Bem, então o problema é de quem colocou o nome dele...” Levei o caso dele ao conselho de classe, para uma avaliação única dos colegas professores. Sei que, no final do ano, por falta e por insuficiência de nota em várias disciplinas, Felipe foi reprovado. Só conseguiu concluir o Ensino Médio três anos depois, porque se matriculava em março e começava a faltar já em abril, matriculava e faltava...

Aproveitando a mobilização da Copa do Mundo de 2006, usamos informações dos países participantes (história, cultura, idioma) como ponto de partida de um projeto que valorizava as diferenças. Ricardo já tinha montado seu grupo – e eram os melhores alunos da turma, com mais disponibilidade de tempo e de acesso a recursos de pesquisa, inclusive à internet. Mandei desmembrar o grupo e ele ficou muito bravo comigo por isso. Não entendia. “Mas a gente sempre trabalhou junto, todo mundo no grupo vai trabalhar...” “Eu sei, mas eu quero aproveitar que vocês trabalham bem para espalhar essa experiência por toda a turma”. E aí apareceram vários trabalhos bons – e não apenas um excelente – o que iria acontecer se eu não agisse.

No sorteio (pré-arranjado) dos países, Ricardo queria ficar com a Alemanha, porque já tinha algumas informações, havia separado o jornal, a filha estava pesquisando na sua escola. “Não, aí não tem graça, em qualquer canto você encontra informações sobre a Alemanha. Seu grupo vai pesquisar Angola, um país africano que fala a nossa língua. Como eu sou professor de português...” Ele ainda tentou argumentar, mas eu usei o argumento definitivo: “Se estou falando pra pesquisar Angola é porque eu sei que vocês têm capacidade de encontrar informações relevantes sobre ela. E sobre a Alemanha vocês vão trazer aquilo que todo mundo já sabe”.

No dia da apresentação, além de aspectos geográficos, demográficos, históricos e esportivos do país africano, um cartaz continha fotos de trajes típicos e uma espécie de dicionário de termos usados além-mar.

No terceiro ano, Ricardo liderou a recolha de recursos para fazer uma festa de formatura com salgados, doces, música e refrigerantes – não pode entrar bebida alcoólica no colégio. Foi um dos mais aplaudidos ao receber o certificado das mãos da diretora. Mais do que a festa, conseguiu organizar um jantar numa churrascaria – “se é pra jantar fora tem que ser coisa boa”, com direito a acompanhantes dos alunos.

Em sua página no Orkut, Ricardo volta e meia coloca uma poesia de Fernando Pessoa ou Drummond... E link para as páginas de diversos alunos daquela turma.

Semana passada, eu ia entrando numa turma para passar um questionário quando recebi um tapinha nas costas. Era Ricardo. “E aí, meu mestre, tudo bem? Só vim dar um abraço. Passei na escola, perguntei quem estava em turma e me disseram que você estava aqui”.

Enquanto os alunos respondiam ao questionário – o que, com razão, me fez interromper a conversa várias vezes, Ricardo e eu colocamos as notícias em dia, relembramos algumas histórias engraçadas... A almofada do Antônio, os biscoitinhos que a Sheila comia escondido, a gravidez da Carol, os bolos da Sueli e da Ana Cleia, as fotos da turma que o Pará tirava no celular, e aquele casal que estava sempre junto.
Comentou que não aparecia mais porque tinha se mudado para o subúrbio; era mais distante, porém mais tranquilo. “Tenho filhas pequenas, você sabe como é...”

Relembrei a pesquisa sobre Angola. “Naquele dia eu fiquei muito irritado: pô, dividiu o grupo e ainda mandou fazer uma pesquisa muito mais difícil!”. Fez uma pausa, pra concluir em seguida: “Mas hoje eu acho que você estava certo de fazer assim. Foi bom pra nós também”.

Publicado em 03 de agosto de 2010

Publicado em 03 de agosto de 2010

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